O ato convocado por Jair Bolsonaro na Avenida Paulista serviu para duas coisas: juntar um grupo cada vez mais restrito de pessoas apartadas da realidade e mostrar quem vai disputar o espólio de um bolsonarismo em decadência: Nikolas Ferreira, Ronaldo Caiado e Michelle Bolsonaro – cada um com seu público-alvo.
Apesar de ter reunido centenas de milhares de pessoas, o bolsonarismo parece ter encontrado seu ocaso na Paulista. Quem se reuniu para celebrá-lo e defender Jair Bolsonaro é o próprio sintoma de sua derrocada.
Os dados não mentem: o fenômeno parece confinado ao chamado “núcleo duro” de seus antigos apoiadores. Homens brancos, acima dos 45 anos, radicalizados e, em sua maioria, católicos. Um grupo que oscila entre a ignorância do momento político que vivem e a frustração de constantemente se depararem com o que consideram uma falta de “pulso firme” de sua maior liderança.
Uma massa que aguarda ansiosamente a proclamação de uma nova revolução conservadora, mas que, em troca de toda essa fidelidade, recebe apenas o anúncio de um curso de formação política comandado pelos filhos de Bolsonaro.
Na Paulista foi ainda pior. No lugar da revolução, ganharam um líder político assustado, que implorava por anistia ao som de uma música triste.
Me parece inegável que estamos diante da decadência do movimento que não apenas elegeu um presidente da República – e quase o reelegeu –, como fagocitou a maior parte da direita brasileira e outros grupos conservadores, ao mesmo tempo que praticamente reinventou a forma como as campanhas políticas eram feitas no país.
Mas o que o anúncio do declínio de Bolsonaro nos diz sobre o atual estado da arte da política nacional? Que o movimento se tornou uma força irrelevante? Que os movimentos progressistas estão avançando sobre os seus antigos domínios?
Eu não apostaria em nada disso.
O desmantelamento do bolsonarismo expresso pela manifestação na Avenida Paulista emerge como sintoma visível de três movimentos intestinos.
O primeiro é o fato de que as antigas ramas da direita, fagocitadas pelo bolsonarismo em meados de 2018, agora reivindicam a sua antiga autonomia, até mesmo para se beneficiarem de cargos e dos benefícios de pertencerem à base do atual governo Lula.
O Partido Progressista e o União Brasil talvez sejam os exemplos mais flagrantes desse processo.
O segundo movimento vem, justamente, de setores e grupos conservadores que não são necessariamente políticos no estrito senso da palavra e que, agora, e por razões distintas, buscam se dissociar do bolsonarismo.
Por exemplo, muitas igrejas e lideranças evangélicas não apenas têm ignorado os apelos de Bolsonaro, como deliberadamente buscam se afastar dele.
Isso fica evidente nas atitudes do pastor André Valadão. Ele, que já foi considerado o “pastor 02” do ex-presidente, não apenas se negou a participar do ato na Avenida Paulista, como declarou, por meio de sua assessoria, que “nunca foi bolsonarista”.
O resultado desse afastamento pode ser visto no perfil do ato. A despeito da presença e do apoio de algumas outras lideranças, em especial Silas Malafaia, apenas 29% dos presentes se declaravam evangélicos. Pouco, muito pouco para o segmento que lhe entregou mais de 70% dos seus votos em 2018 e cerca de 60% em 2022.
Por fim, temos um terceiro movimento, que é a emergência de ramas independentes e, friso, concorrentes do próprio bolsonarismo. Grupos que nem se deram o trabalho de esperar a prisão de Bolsonaro para se reivindicarem como herdeiros do seu legado.
Só no palanque da Paulista havia quatro: os governadores Ronaldo Caiado, de Goiás, e Tarcísio de Freitas, de São Paulo; a ex-primeira dama, Michelle Bolsonaro; e o deputado federal Nikolas Ferreira. Cada qual com suas agendas, cada qual com o seu estilo, cada qual com o seu público-alvo.
Nikolas Ferreira é quase um caso à parte, pois vem sendo preparado pelo Partido Liberal, em especial pelo próprio Valdemar Costa Neto, como o próximo grande líder da direita brasileira.
No presente, o deputado é responsável pela manutenção e agitação de toda uma base de apoiadores mais jovens do bolsonarismo. Em certa medida, assume o papel que o MBL teve nas eleições de 2018.
Caiado busca estreitar laços com a velha política, Michelle com os evangélicos e Tarcísio com a Faria Lima.
Contudo, seu crescimento é visto com certa desconfiança por algumas figuras próximas a Bolsonaro.
No mundo idílico e paranoico do bolsonarismo, Nikolas só poderá concorrer à presidência em um cenário onde os direitos políticos de Bolsonaro já estiverem restituídos. Enquanto isso não acontece, ele emerge como um adversário direto do ex-presidente.
Se Nikolas representa o futuro do bolsonarismo, Caiado representa, justamente, o seu encontro com o passado. Ele é um legítimo representante da “velha política”, dessa direita composta por lideranças regionais e “eternos deputados” que, a despeito de suas posições, ocuparam cargos em praticamente todos os governos brasileiros desde a redemocratização.
Não por coincidência, o União Brasil, partido de Caiado, pertence à base do governo Lula, ocupando o Ministério das Comunicações.
O atual governador de Goiás jamais escondeu o seu desejo de concorrer à presidência em 2026. E não seria a primeira vez. Pouca gente se lembra, mas Caiado concorreu ao cargo em 1989, quando obteve menos de 1% dos votos.
A sua presença na Paulista é claramente uma tentativa de pavimentar o caminho para essa segunda candidatura. Mas ele tem dois obstáculos imediatos: o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, e a própria ex-primeira dama, Michelle Bolsonaro.
O primeiro encarna a velha política do management, da aplicação de modelos de gestão empresarial ao estado, enquanto acena sem nenhuma contradição para a extrema direita, especialmente no que diz respeito ao campo da segurança pública.
Michelle, por sua vez, apela para um modelo teológico da política, apostando no entrelaçamento definitivo do púlpito da igreja com o palanque eleitoral.
Pode não parecer, mas um vai de encontro ao outro. E isso ficou muito claro em seus discursos na Paulista.
Enquanto Michelle praticamente pregava o esboço de uma teocracia, Tarcísio focava nos feitos materiais do governo Bolsonaro, especialmente aqueles ligados a sua atuação enquanto Ministro da Infraestrutura.
Questão de fundamento: as políticas de austeridade pregadas pelo governador de São Paulo e, por incrível que pareça, seu discurso sobre segurança pública, não costumam ser muito bem recebidos no seio da população evangélica, formado especialmente por mulheres negras e pobres.
Por sua vez, a pregação de Michelle não encontra bons ouvidos em uma parcela importante da classe empresarial brasileira, aquela que apoiou massivamente a candidatura de Bolsonaro por conta da presença de Paulo Guedes nos quadros de seu futuro ministério.
É fundamental olhar para isso e notar que cada um desses “bolsonarismos” busca reatar ou estreitar os laços do movimento com setores específicos – Caiado com a “velha política”, Michelle com os evangélicos e Tarcísio com a Faria Lima.
Por meio destas alianças, querem sufocar seus concorrentes dentro do próprio bolsonarismo e, assim, garantir a viabilidade de sua própria candidatura em 2026.
O problema – para eles – é que nesse processo, nessa guerra intestina, algo se perde: justamente a relação mais íntima do bolsonarismo (no singular) com alguns desses setores.
Não por coincidência, nenhum deles esteve na Paulista para apoiá-los. E esse talvez seja o maior sintoma da derrocada do bolsonarismo, no presente e no futuro.
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