A igreja Zion Church, a associação religiosa Dunamis Movement, o Instituto Akachi e os pastores evangélicos Lucas Hayashi e Teo Hayashi estão ameaçando processar todas as pessoas e veículos de imprensa que os criticarem ou levantarem dúvidas sobre seu interesse nas recentes denúncias de exploração sexual infantil no arquipélago do Marajó, no Pará.
A ordem, desde a última semana de fevereiro, é que seus advogados monitorem posts em redes sociais e reportagens para enviar notificações extrajudiciais, exigindo remoção dos conteúdos críticos.
O assunto viralizou a partir de 21 de fevereiro, alguns dias depois da apresentação da cantora Aymeê Rocha em um reality show gospel. A artista aproveitou a ocasião para denunciar abuso sexual contra crianças no Marajó, dando a entender que o cenário no arquipélago é especialmente grave.
O vídeo da cantora foi compartilhado massivamente por líderes evangélicos, como os pastores Lucas Hayashi e Teo Hayashi, além de artistas e influenciadores como Juliette, Rafa Kalimann, Hugo Gloss e Jade Picon.
Muitas informações, porém, eram falsas ou descontextualizadas, seguindo moldes semelhantes aos conteúdos divulgados pela extrema direita há alguns anos. Em 2022, quando ainda era ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a senadora Damares Alves, do Republicanos, divulgou mentiras sobre exploração sexual de crianças na região.
O Ministério Público Federal chegou a pedir indenização de R$ 5 milhões à senadora e à União por danos sociais e morais coletivos à população do Marajó.
Já agora, Damares divulgou um vídeo de crianças dentro de um caminhão, como se fossem vítimas de exploração sexual no Marajó. As imagens, porém, eram do Uzbequistão.
O uso de desinformação como estratégia de divulgação da campanha levou perfis de esquerda nas redes sociais e veículos de imprensa a apontarem indícios de ação orquestrada e até financiada por bolsonaristas.
Segundo Lívia Reis, doutora em Ciências Sociais e pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião, o caso Marajó é emblemático, porque está ligado à tentativa de consolidar a pauta da proteção da infância como sendo do campo conservador.
“É um tema que envolve noções de família, infância e projetos de futuro. Mexe com imaginários de um Brasil que se quer. Por isso, a campanha acaba tendo um engajamento orgânico, depois do impulsionamento inicial”, explicou.
Entidades evangélicas alegam perseguição religiosa
O escritor Ale Santos recebeu uma notificação extrajudicial em 29 de fevereiro. Ele tinha 24 horas para excluir os posts feitos uma semana antes no X, sobre a relação da extrema direita e dos movimentos ligados à igreja Zion Church com “o pânico que se criou em torno do Marajó”.
A notificação também pede que o escritor publique uma nota de esclarecimento escrita pelas entidades evangélicas. Caso contrário, enfrentará uma ação judicial.
Ale foi o primeiro, mas não o único a ser notificado, segundo o advogado Thiago Gebaili, que representa os pastores Lucas Hayashi, Teo Hayashi e as entidades evangélicas lideradas por eles.
“Estamos com uma equipe de oito advogados fazendo todas as verificações e triagens, para não deixar passar uma publicação em branco”, me disse em um áudio de WhatsApp.
De acordo com Gebaili, cinco notificações extrajudiciais tinham sido preparadas em 28 de fevereiro, mas ainda faltavam muitas. Além do post de Ale, as entidades evangélicas mencionam os veículos Revista Fórum, Isto é e UOL.
“Nós estamos coibindo”, disse o advogado.
Entre os argumentos para exigir a retirada das publicações, sob ameaça de processar judicialmente quem não o fizer, estão o de bullying cibernético, violação do princípio da liberdade de crença e perseguição religiosa.
Para a pesquisadora Reis, publicações em redes sociais e na imprensa não configuram intolerância religiosa, desde que não atuem contra a liberdade de crença, não incentivem a invasão de espaços de culto, ou a violência contra pessoas por causa da religião que professa.
“Todo o resto é garantido pela liberdade de expressão, sendo certo que as pessoas são responsáveis também pelo que falam”, afirmou.
A narrativa de perseguição não é novidade, segundo a pesquisadora. “O judiciário se transformou num lugar por excelência dessa disputa. Não à toa, estamos vendo uma maior organização de associações jurídicas católicas e evangélicas”.
No entanto, estudos como o que foi divulgado em 2023, no II Relatório sobre Intolerância Religiosa: Brasil, América Latina e Caribe, comprovam que os afrorreligiosos são os mais perseguidos – em 2021, foram notificados 244 casos de intolerância contra religiões de matriz africana.
Reis acrescentou que a pauta do Marajó ajuda a consolidar a narrativa de perseguição, porque passa a ideia de que cristãos estão tentando proteger crianças, a despeito do esforço da esquerda para impedi-las.
“Ignora-se que o reconhecimento da criança como sujeito de direitos é uma conquista que só se tornou possível por conta da luta de muitos movimentos sociais e de organizações da sociedade civil”, concluiu a pesquisadora.
Zion Church cresceu quase 4.000% desde 2008
A Zion Church é uma organização religiosa fundada e sediada em São Paulo em 1977. Até 2008, porém, ela se chamava Igreja Monte Sião e tinha pouco mais de 200 membros.
Sob o comando de Teo Hayashi, além da mudança de nome, a igreja aumentou de tamanho e, hoje, teria quase 10 sub-sedes ou filiais e cerca de 8 mil membros – um aumento de quase 4.000%. As informações são da própria entidade.
Teo também representa a Dunamis Movement – associação religiosa criada em 2008, voltada à evangelização dos jovens – e o Instituto Akachi, organização missionária criada em 2019 e mantida por meio de doações e pelas entidades ligadas à Zion Church.
De acordo com o site do instituto, seu trabalho no Marajó é acolher “crianças e adolescentes vítimas de exploração sexual, violência e abuso”.
Em fevereiro, as postagens feitas no Instagram da entidade, que também tem um projeto social no Vale do Ribeira, em São Paulo, foram praticamente todas sobre a região paraense – 11 das 12 publicações no feed.
No dia 18, o Akachi publicou um vídeo do pastor Lucas Hayashi falando da apresentação da cantora Aymeê e reforçando as denúncias de tráfico de pessoas e prostituição infantil.
Na legenda, é indicada uma chave pix para doações. “A Ilha de Marajó clama por ajuda e nós podemos ser agentes de transformação na vida dessas pessoas”, diz o texto.
Três dias depois, com o reforço de artistas e influencers, alguns deles pedindo doações para o instituto, o termo “Ilha do Marajó” foi o mais pesquisado no Google no Brasil. Esse interesse econômico foi uma das questões apontadas por quem agora está sendo alvo das ameaças de processo.
Outro interesse apontado é o político. O diretor presidente do Akachi é Henrique Krigner. Em seu perfil no Linkedin, ele diz que tem se dedicado a “aproximar jovens da política”. Em 2018, assumiu a direção do programa avançado de desenvolvimento de líderes do Dunamis Movement.
Em janeiro de 2023, a cantora Aymeê esteve na Dunamis Farm, uma comunidade que treina missionários e futuros líderes “para alcançar as nações e as sete esferas da sociedade trazendo transformação e reforma”, segundo o site da entidade.
Liderança do Marajó critica atuação de entidades evangélicas
O Instituto Akachi chegou ao território do Marajó em novembro de 2023 e, desde então, tem anunciado ações contra a exploração sexual infantil, como a reforma de um abrigo para as vítimas, doações de cestas básicas e atendimentos médicos e psicológicos.
Mas quem vive na região e já tem um longo histórico de luta em defesa de mulheres e crianças, como é o caso de Marie Henriqueta Ferreira Cavalcante, presidente do Instituto Dom José Luís Azcona, desconhece um trabalho consistente dessas entidades evangélicas.
Cavalcante está incluída no programa de proteção para defensores dos direitos humanos há mais de 10 anos, devido às ameaças que sofre pelo seu trabalho no enfrentamento da violência sexual e do tráfico de pessoas na região do Marajó.
Ela e o bispo Dom Azcona foram essenciais durante a CPI da Pedofilia, em 2009, ajudando a identificar abusadores.
Segundo Cavalcante, se existe alguma ação de entidades evangélicas no Marajó, é de forma isolada e sem envolvimento. “Ninguém deveria usar um tema tão sensível como trampolim, ou para se promover às custas do sofrimento de crianças e adolescentes”, criticou.
Ela ainda defende que a população do Marajó não precisa de assistencialismo, mas de políticas públicas integradas entre município, estado e governo federal. Não foi o que aconteceu no governo Jair Bolsonaro, segundo Cavalcante.
“Tivemos foi um verdadeiro desmonte de políticas que já estavam sendo engatadas. O programa Abrace o Marajó [criado pela Damares], foi desconectado da realidade local. Nasceu de cima para baixo e eu desconheço seus efeitos”, disse ela.
Em 2023, a Controladoria-Geral da União identificou irregularidades em ações do programa que causaram prejuízo de R$ 2,5 milhões aos cofres públicos.
No governo Lula, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania revogou o Abrace o Marajó e criou o Programa Cidadania Marajó, voltado para o enfrentamento à exploração e ao abuso sexual de crianças e adolescentes, em parceria com a sociedade civil, as comunidades locais e outros órgãos do poder público.
Para Cavalcante, somente políticas públicas articuladas com as outras instituições têm força de transformação da realidade. Do contrário, são apenas ações assistencialistas.
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