PL da Uber: ‘Governo abriu um precedente histórico, o fim do salário mínimo’

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PL da Uber: ‘Governo abriu um precedente histórico, o fim do salário mínimo’

Para economista, projeto apresentado pelo governo atende principais desejos das plataformas – e não dos trabalhadores.

PL da Uber: ‘Governo abriu um precedente histórico, o fim do salário mínimo’

O governo federal apresentou no início deste mês um projeto de lei que regulamenta a profissão de motoristas de aplicativo. A iniciativa acontece depois de 15 meses de atuação de um grupo de trabalho anunciado ainda no governo de transição. O texto é resultado do debate entre o Ministério do Trabalho e Emprego, plataformas de serviços de transporte e entregas e representantes de trabalhadores.

Na teoria, o projeto – que deixou de lado motociclistas que trabalham com entregas com a promessa que serão contemplados em regulamentação futura – insere no sistema de proteção social todos os motoristas de aplicativo. Mas, para David Deccache, doutor em economia pela Universidade de Brasília, diretor do Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento e assessor econômico do Psol na Câmara dos Deputados, o projeto, se aprovado, piora a vida dos trabalhadores. 

Antes desamparados por uma legislação, motoristas de aplicativo estavam sujeitos a desmandos das plataformas, mas poderiam recorrer judicialmente contra eles. Nos nove anos de atuação da Uber no Brasil, esse entendimento sobre vínculo empregatício nunca havia chegado a um consenso. Com esse projeto de lei, não há mais dúvida. O PL apresentado por Lula sacramenta a criação de uma nova categoria profissional no país: o autônomo plataformizado.

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O projeto se propõe a regulamentar determinadas condições de trabalho. Uma delas trata de remuneração. Motoristas deverão receber no mínimo R$ 32 por hora de trabalho efetivo – isto é, em viagens pela plataforma. Desse valor, R$ 24 corresponderiam a gastos previstos, como combustível, e R$ 8 seriam, de fato, o salário do trabalhador. Considerando uma carga mínima de 44 horas semanais, isso garantirá aos trabalhadores, como piso salarial, um salário mínimo.

Sobre os R$ 8 mínimos por hora efetivamente trabalhada incidirão 27,5% de contribuição ao INSS – 20% pago pela plataforma em que o serviço foi prestado, e 7,5% pelo trabalhador. 

É o pagamento desse valor que garantirá aos motoristas direitos como aposentadoria, auxílio-doença e licença-maternidade. Se o trabalhador receber mais de R$ 8 reais por hora de serviço prestado, os 27,5% de contribuição ao INSS acompanharão o aumento, fazendo com que o motorista e a plataforma contribuam mais com o governo.

Para Deccache, a medida pode criar um ímã ao piso salarial, fazendo com que as plataformas, que seguirão com o controle de quanto cobrar e pagar aos motoristas por corridas, prefiram manter os salários perto do piso para diminuir os gastos tributários. “Vai ter maior estímulo para a empresa caminhar em direção ao piso na sua estratégia de margem de lucro”, disse o economista ao Intercept Brasil.

Deccache também argumenta que, ao escolher remunerar motoristas apenas pelo tempo em que efetivamente estão em viagens, o governo abre um precedente histórico e virtualmente permite o fim do salário mínimo.

Conversamos com David Deccache sobre os principais pontos do projeto de lei apresentado por Lula, os benefícios que ele traz às plataformas de transporte e como as propostas podem ressoar em outros trabalhadores.

Leia abaixo os principais trechos:

Intercept – Quais são os principais pontos do PL de regulamentação dos motoristas de aplicativo?

David Deccache – O principal ponto do PL é a segurança jurídica da ausência de vínculo de emprego que foi concedida às plataformas. Ou seja, a partir de agora os trabalhadores não terão a mínima chance de recorrer à Justiça do Trabalho com base na CLT. Isso é um rompimento explícito com a relação de trabalho, uma legalização da uberização no Brasil.

Os trabalhadores de plataforma também terão direito à contribuição individual, mas hoje eles já podem ser contribuintes individuais. É difícil ver qual a diferença. Eles serão o que hoje já podem ser.

Haverá direito à transparência das taxas pagas pela empresa, dos cálculos de tarifa dinâmica, esse tipo de coisa, então a empresa vai ter que ter transparência, isso é outro ponto. Mas transparência com base no contrato da plataforma. Esse contrato supostamente é negociado entre as partes, quando o trabalhador baixa o aplicativo da Uber. Ele negociaria com a empresa os termos, como se fosse uma relação simétrica. Mas, a meu ver, o trabalhador só tem a possibilidade de aceitar, não de interferir nesse contrato, então até a transparência fica subordinada a algo assimétrico.

Toda a subordinação permanece presente. As plataformas podem dar as diretrizes de trabalho, dizer como o trabalhador deve se portar, quanto tempo ele deve esperar o passageiro. Eles podem fazer tudo, desde que esteja no contrato – que a própria plataforma elabora.

Para o governo, o principal ponto é garantir a previdência – que hoje já é garantida, desde que a pessoa faça a opção por MEI ou por contribuição individual. Pelo PL, a plataforma pagaria 20% em cima de um piso de R$ 8 por hora efetivamente trabalhada, e os trabalhadores arcam com 7,5% desses mesmos R$ 8 por hora. Esses R$ 8 é o valor mínimo a ser recebido por motoristas por cada hora que eles passarem trabalhando, mas isso não é uma novidade, porque hoje os motoristas já ganham bem mais do que isso.

Isso levanta um ponto importante. Agora que há um piso, e que é sobre ele, no mínimo, que as empresas deverão recolher 20% a título de previdência social, qual será o estímulo econômico dela: pagar acima do piso ou tornar o piso um teto para ela pagar menos tributos? 

Hoje as empresas não pagam, então elas não têm esse custo. Agora elas passarão a ter, então elas têm um estímulo econômico para remunerá-los o mais próximo possível do piso.

Outra projeção possível é que, como hoje as plataformas pagam mais do que o piso, elas têm espaço, então, para repassar esse custo previdenciário ao próprio trabalhador, diminuindo a remuneração dele. Elas têm espaço e poder de mercado para isso. 

Fora que vai ter maior estímulo para a empresa caminhar em direção ao piso na sua estratégia de margem de lucro, o que pode tornar a situação do trabalhador pior. O piso vira um ímã. Os novos custos previdenciários também podem ser repassados aos consumidores finais.

Há muito tempo há uma discussão sobre hora trabalhada e hora à disposição das plataformas. O que o PL apresentado consolida sobre esse tema?

Esse é o tema central do mundo do trabalho nessa especificidade do neoliberalismo baseado na uberização. O que as empresas querem é tornar o trabalhador 24 horas disponível para elas sem remunerar a hora em que ele está em espera, remunerando só a hora efetivamente trabalhada. Isso é o sonho de consumo, tratar o trabalhador como uma máquina, que só usa combustível quando está ligada. As empresas conseguiram isso nesse PL para uma categoria específica.

Ou seja, você pode ficar disponível para o trabalho 16 horas por dia, mas você só vai rodar aproximadamente 12 horas, e eu só vou te pagar 12 horas. Essas outras quatro horas que você perdeu esperando cliente, esperando chamada, parando para ir ao banheiro, bebendo uma água, se alimentando, essas coisas que os seres humanos fazem, você não ganha. 

Todo esse período, desde o período em que o trabalhador para pra abastecer o carro, pra lavar o carro, para encher um pneu, para almoçar, ir ao banheiro, tudo isso não é remunerado.

O que isso significa na prática é o fim do salário mínimo no Brasil – para uma categoria específica. Porque se o cara só ganha a hora efetiva de trabalho, ele vai trabalhar uma hora e só vai ganhar 40 minutos, por exemplo. 

Nesses 40 minutos, ele vai ganhar o equivalente ao salário mínimo de 40 minutos. Ele certamente vai ganhar menos que o salário mínimo por hora. Isso está legalizado no projeto de lei. Ele não tem acesso à CLT e ele pode receber menos que o salário mínimo por hora de forma totalmente legal, sem violar absolutamente nada.

Até o recolhimento para a previdência social, nesse PL, é apenas sobre a hora efetivamente trabalhada. Ou seja, se o motorista trabalhar como qualquer outro trabalhador, 44 horas por semana, certamente ele não vai ter 44 horas efetivas. Então, ele vai trabalhar como qualquer outro e a empresa não vai nem precisar contribuir em cima de um piso de salário mínimo. Isso é uma aberração.

Qualquer empresa contribui sobre a hora em que o trabalhador está disponível. Um atendente ou um caixa de mercado, por exemplo, está trabalhando e está recebendo quando tem cliente passando no caixa ou não. A empresa está remunerando ela, e remunerando a previdência dela, em todo esse tempo. Até na questão previdenciária o projeto propõe uma deterioração.

Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

E as corridas, que contabilizam horas efetivamente trabalhadas, são distribuídas pela própria plataforma.

Exato. O trabalhador pode ficar disponível quanto tempo a plataforma quiser. Ela aloca as horas efetivas do motorista. Isso é um aumento do controle e da rigidez que falam que a CLT tem.

Tem também um ponto importante sobre as horas de trabalho. O PL coloca um teto de 12 horas trabalhadas, mas esse período é por plataforma. O trabalhador pode, então, trabalhar 24 horas, se quiser – 12 horas na Uber e 12 horas na 99, por exemplo. Isso significa um risco imenso à vida do motorista e do passageiro, além da segurança do trânsito. Porque, com uma redução esperada de remuneração, ele vai ter que trabalhar cada vez mais horas para receber ao menos o salário mínimo, e pode ser que ele não obtenha o salário mínimo em 12 horas.

O PL prevê algum tipo de regulamentação ou fiscalização dos valores de corridas propostos pela plataforma?

Na verdade, a metodologia estabelecida para a divulgação de dados das plataformas será negociada entre o consumidor, seja ele motorista ou passageiro, e a plataforma, que agora será oficialmente uma prestadora de serviços. 

Toda essa parte de transparência que há no projeto é com base no contrato firmado entre as partes. O detalhamento é contratual, o que implica riscos, já que há uma assimetria enorme entre as partes. Até o ganho que seria ter essa transparência não é 100%. A metodologia de divulgação pode ser muito problemática, e obviamente as plataformas vão alegar que isso estava no contrato que foi acordado, um contrato em que o motorista não tem nenhum tipo de interferência.

O PL prevê contribuições adicionais aos trabalhadores, como adicional noturno ou valor de depreciação e manutenção do veículo de trabalho?

Sim, prevê, porque o cálculo que foi realizado parte do seguinte pressuposto: quanto um motorista precisa receber para ficar com R$ 8, que é a hora do salário mínimo efetivamente trabalhado? Ele precisa receber R$ 32, eles definem, porque ele tem um custo de R$ 24. Esse foi o cálculo feito. Esses R$ 24 incluem esse conjunto de custos, como depreciação de veículo, combustível, esse tipo de custo, que o trabalhador já tem.

Isso é interessante para explicitar para os trabalhadores o cálculo que alguns têm dificuldade de visualizar porque são coisas que se materializam no médio e longo prazo. Custo de manutenção, depreciação, parte do juro da compra do veículo. Eu não conheço os cálculos, eu não sou do setor, então tenho alguma dificuldade para saber se, de fato, isso é suficiente para sobrar o salário mínimo que eles falam. Mas, teoricamente, sim, estariam incorporados nos custos da hora bruta.

Só esse cálculo, suponhamos que ele esteja correto, vale hoje, em março de 2024, porque os custos do trabalhador são muito voláteis. Ele ganha R$ 32, e o custo dele hoje é de R$ 24. Se o custo dele sobe para R$ 30, por exemplo – por uma elevação do preço da gasolina, preço de peças de veículos por um distúrbio do mercado internacional ou pelo câmbio, de maneira geral –, isso impacta diretamente no custo desse trabalhador. Se sobra R$ 8, ele pode perder muito, a depender do choque que aconteça.

Para ser justo, eles colocam uma indexação ao salário mínimo. Isso vai sendo corrigido ano a ano. Porém, custos específicos, como combustível e peças, podem não se refletir na valorização real do salário mínimo, que é feito somando inflação e crescimento do PIB. A inflação desses setores pode ser muito mais alta, especialmente em momentos de elevação do preço de combustíveis. Além disso, se você tem um choque no início de um ano, você tem que esperar até o outro ano para recompor. O trabalhador vai sofrer por um ano.

Portanto, não se garante salário mínimo. Se garante um salário mínimo, supondo que o cálculo esteja certo, com base apenas no dia de hoje.

O PL define algum limite para as taxas de serviço cobradas dos motoristas pelas plataformas?

Não. A questão toda gira em torno da remuneração mínima para o motorista. 

O Intercept fez uma reportagem em 2022 analisando os esforços jurídicos da Uber para evitar ter o vínculo empregatício com motoristas da plataforma reconhecido. Isso ainda será um risco para as plataformas?

Não. Nós diminuímos, e muito, o custo da empresa ao garantir plena segurança jurídica. Isso vai ter um custo muito menor. Nós estamos ampliando a margem de lucro deles, e isso certamente vai mais do que compensar a suposta contribuição de 20% ao INSS. 

20% de R$ 8 é R$ 1,60 por hora efetivamente trabalhada pelo motorista. O motorista vai andar uma hora, sem parar, aí a plataforma contribui com R$ 1,60. Isso se ela não repassar esse R$ 1,60 para o  próprio motorista.

O custo com serviços jurídicos zera a partir de agora. Talvez tenha um estoque para trás do que ainda está sendo decidido pelo STF, mas o STF vai zerar o estoque para trás e o PL impede que novas ações venham para frente. De forma muito sincronizada, o judiciário cuida de todas as ações já existentes e o executivo com o legislativo cuida daqui pra frente.

Por que o iFood e as plataformas de entregas com motociclistas ficaram de fora do PL?

Muito provavelmente porque os trabalhadores de entrega rejeitaram a proposta construída pelo iFood junto ao governo. Há um posicionamento oficial do iFood de que foi fechado com o governo um valor de R$ 17 bruto, por hora. Se o governo aceitou e o iFood aceitou, cabe concluir que essa proposta, por enquanto, está sendo rejeitada pelos trabalhadores. Isso é uma obviedade que deve ser deduzida.

E eu diria que, em vez de um enfrentamento ao iFood, o governo poderia falar, por respeito à lógica, que agora vai encher o saco até os trabalhadores toparem, usando a frase que o presidente falou, e não do iFood.

Perceba que esse acordo que o iFood afirma ter fechado com o governo é praticamente metade do pago pela Uber. E a empresa explicita, ainda, que isso não avança também porque houve uma tática de preferência para a questão da Uber agora. Dada a discrepância de valores, teriam que ser separadas as duas categorias. Elas vão ser submetidas à mesma forma de exploração, mas os entregadores com uma intensidade ainda maior.

Como o PL apresentado impacta os demais trabalhadores plataformizados, não inclusos nessa primeira tentativa de regulamentação? E como as demais profissões também podem ser afetadas?

Em primeiro lugar, nós criamos um precedente histórico. Uma nova forma de superexploração do trabalho, totalmente legalizada. Nós criamos um modelo totalmente aderente à uberização do trabalho, legal, que na aparência tem o acordo da classe trabalhadora. 

Dito isso, como a uberização avança por todo o mundo do trabalho, para todas as profissões, obviamente as outras plataformas irão buscar, por decorrência, se colocar também como uma prestadora de serviços para o trabalhador.


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Isso irá, gradualmente, ser estendido para uma ampla gama de categorias. Primeiro as mais precarizadas, e quanto maior é o desespero, maior é a desorganização da classe, mais fácil é avançarem para cima dela. Conforme isso for se estendendo a motoristas, entregadores, pode chegar o dia em que tenhamos professores, arquitetos. Vão começar a procurar professor para dar aula em escola por plataforma. Isso é possível, e seria considerado uma relação entre iguais. Isso é um sonho anarcocapitalista e um pesadelo para a classe trabalhadora. Estamos voltando ao século 19 em termos de relação trabalhista.

Há um mito de que os trabalhadores não querem mais a subordinação da antiga CLT, eles querem um modelo novo. E aí eles vendem esse projeto como esse modelo novo, que dá mais autonomia e liberdade. Mas, como a gente conversou aqui, o trabalhador vai ter liberdade para trabalhar 14 horas sem parar e ganhar um salário mínimo. Ele tem 24 horas e total liberdade para alocar 14, 16 horas da forma que ele quiser. Essa é a liberdade dele.

Todo o vínculo de subordinação permanece. Inclusive, o controle do patrão em cima do trabalhador aumenta, se comparado com a CLT. O monitoramento é muito mais agudo, muito mais constante. O próprio PL garante explicitamente esse controle total da plataforma, por exemplo, em avaliações. Também na preparação dele para dirigir, na forma como ele deve se portar. Toda a lógica de subordinação do mundo do trabalho na qual a CLT era regra permanece. 

É uma ilusão achar que o fim da CLT é o início da liberdade, como alguns estão vendendo. O motorista tem que acatar, porque ele fez esse acordo com a plataforma quando assinou o contrato. Eu vi muita gente dizendo isso, que os trabalhadores hoje em dia preferem o empreendedorismo à subordinação. O que eles têm é o pior dos dois mundos. Eles continuam com a subordinação e com a vigilância, inclusive intensificadas, porque a uberização do trabalho é uma forma de gestão brutalizada da força de trabalho, porém sem os direitos antigos.

Correção – 14 de março de 2024, 11h54

O trecho sobre recolhimento de INSS na fala do entrevistado estava impreciso. Ele foi suprimido do texto.

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