Uma pesquisa inédita revela que as instituições federais de ensino do Brasil criaram diversos mecanismos para não implementar a Lei de Cotas Raciais para Concursos públicos, que em 2024 completa exatos dez anos.
Das 46.300 vagas abertas em concurso na última década, 9.996 não foram reservadas e nem preechidas por candidatos negros.
Os dados são da pesquisa “A implementação da Lei nº 12.990/2014: um cenário devastador de fraudes”, realizada pelos pesquisadores Ana Luisa Araujo de Oliveira e Edmilson Santos dos Santos, ambos da Universidade Federal do Vale do São Francisco, a Unifasv. Também fez parte Alisson Gomes dos Santos, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e do Núcleo de Estados Raciais do Insper, em parceria com o Movimento Negro Unificado, o MNU.
Organizações de trabalhadores e do movimento negro ingressaram com uma ação contra alguns dos institutos federais analisados pelo estudo.
No estudo, os pesquisadores analisaram, durante três anos, cerca de dez mil editais, publicados no período de 10 de junho de 2014 a 31 de dezembro de 2022, distribuídos em 61 instituições. Foram 56 institutos federais de ensino, os IFEs, e seis instituições de diversos segmentos do serviço público federal.
Dos editais, 3.135 foram de concursos públicos. Outros 6.861 de processos seletivos simplificados, que também devem atender a lei nº 12.990/2014, sancionada pela ex-presidente Dilma Rousseff.
A partir da leitura dos editais e de pedidos realizados para as instituições, a equipe de pesquisadores realizou um cálculo do potencial de vagas que deixaram de ser ofertadas para pessoas negras e identificou mecanismos de burla que foram aplicados, de forma intencional ou não, para impedir a aplicação da reserva de cotas já nos processos iniciais dos concursos, em decisões tomadas pelas instituições da administração pública.
A reserva de vagas, conforme consta no texto da lei, passa a acontecer quando a oferta é igual ou superior a três candidatos. As vagas são associadas ao cargo e não à área de atuação. Nesse caso, 20% dos aprovados devem ser obrigatoriamente cotistas.
No estudo, foram identificadas seis categorias de padrões comumente adotados para burlar esse número. A principal delas era o fracionamento – quando as vagas para o mesmo cargo eram distribuídas, impedindo que fossem apresentadas no mesmo edital.
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O edital desta forma não alcança o mínimo necessário para a aplicação das leis das cotas, o que isenta a instituição de responsabilidade para contratar mais profissionais negros.
Um dos exemplos desta prática foi encontrado na Universidade Federal do Espírito Santo, a Ufes. Lá, os pesquisadores encontraram cargos que foram fracionados por localidade ou por editais oferecidos de forma contínua.
Mais de R$ 3,5 bilhões deixaram de ser pagos a profissionais negros que seriam contratados caso os editais respeitassem a lei de cotas.
No primeiro modelo, os cargos eram fracionados por diferentes campus da instituição. No segundo, a vaga para o mesmo cargo foi aberta em diferentes editais, publicados com poucos dias ou semanas entre si.
“Estamos falando da aplicação de uma lei que tem investimento da população brasileira. Ela merece saber o que aconteceu. É um recurso público que poderia ter entrado para uma comunidade negra, ter mudado famílias negras, mas observamos que isso não aconteceu”, destacou a coordenadora da pesquisa, Ana Luisa Araujo de Oliveira.
Procurada pelo Intercept Brasil, a Ufes negou as “ações de burla”, alegando que atendia às “demandas dos departamentos”, sob o conhecimento do Ministério Público Federal.
A universidade também destacou que, a partir de 2024, implementará ações afirmativas nos editais para Ampla Concorrência, Pessoa Preta ou Parda e Pessoa com Deficiência.
Outro exemplo de burla à Lei de Cotas Raciais identificada pelos pesquisadores aconteceu nos editais da Universidade Federal do Sergipe, a UFS. As cotas para concursos de docentes estavam sendo destinadas apenas a uma área de conhecimento em um mesmo concurso, escolhida a partir de um sorteio.
O Ministério Público Federal chegou a abrir uma ação contra a UFS solicitando a reabertura de vagas, dessa vez para cotistas, referentes a demandas de editais publicados entre 2014 e 2019.
No processo, a procuradora Martha Figueiredo, da Regional dos Direitos do Cidadão, pediu a reposição de 41 vagas para a reserva de cotas, e menciona o julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade 41, de 2017, em que os ministros indicam que o fracionamento de vagas de acordo com a especialização não pode acontecer.
Procurada, a Universidade Federal de Sergipe não retornou nossos contatos até o fechamento desta reportagem.
Prejuízo é de mais R$ 3,5 bilhões para profissionais negros
Além do cálculo das vagas que não foram oferecidas pelos editais, a equipe de pesquisadores também buscou calcular o déficit financeiro para profissionais negros que não conquistaram a reserva para os editais.
O cálculo foi realizado a partir das informações dos editais sobre o salário inicial dos candidatos, sem considerar benefícios que poderiam ser acumulados durante a vigência do cargo.
Atualizando os salários de cada edital proposto por instituto, chegou-se à conclusão de que, ao todo, pouco mais de R$ 3,5 bilhões deixaram de ser pagos a profissionais negros que seriam contratados caso os editais respeitassem a lei de cotas.
A reparação pela Lei de Cotas Raciais que tardou, também falhou.
Coordenadora Nacional do Movimento Negro Unificado, Rosa Negra destaca que os resultados da pesquisa indicam uma solução a desigualdades sociais que está longe da eficácia comparada ao tempo que levou para sair do papel, após décadas de mobilização.
“A Lei 12.990 se apresentou como uma luz para o acesso de negras e negros ao mercado de trabalho, especialmente nos cargos de maior prestígio social na burocracia estatal brasileira. No entanto, os anos passaram e não percebemos as mudanças que almejamos. Isso indica que a reparação que tardou, também falhou”, conclui.
Entre as recomendações do estudo, os pesquisadores sugerem a criação de uma Comissão da Verdade seja instituída para entender por que a lei não tem sido cumprida nas autarquias federais.
“Em muitos casos, observamos que as reservas das cotas foram atribuídas na etapa final dos processos, e por meio de sorteio de área. Ou seja, o edital, quando oferece a mesma vaga para áreas de conhecimento diferentes, decide por sorteio qual delas vai atribuir reserva para seus candidatos negros. Isso significa que, para alguém que vai conseguir uma vaga, outro candidato não teve a oportunidade de ter acesso à reserva de cotas”, explicou a pesquisadora.
Projeto pretende atualizar a Lei de Cotas Raciais
Com a chegada do final do prazo da implementação da lei – exatamente de dez anos –, o Senado conta com propostas para ampliar o prazo da sua validade, e trazer mais ferramentas para as cotas nos concursos públicos.
O PL 1958/2021 prorroga a lei por 25 anos e amplia para 30% a reserva de vagas para negros. O projeto iria ao plenário na última quarta-feira, mas a votação foi adiada para esta semana.
Com os resultados da pesquisa, a União Geral dos Trabalhadores, com o Instituto Afroamérica, abriu uma ação contra alguns dos institutos federais analisados pelo estudo. Até o momento, as organizações não confirmaram detalhes do processo.
A pesquisa completa pode ser encontrada aqui. Às 19h, os pesquisadores vão realizar uma live para o lançamento oficial do estudo e para debater os resultados com o público.
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