O jornalista Richard Sanders dirigiu o documentário ‘7 de outubro’. Para ele, histórias contadas por Israel são aceitas sem análise crítica.

A máquina da morte da extrema direita está literalmente botando fogo em nosso país, enquanto muitos fingem que não.

Ela tem trilhões de reais para gastar em propaganda, e a grande mídia está muito feliz em aceitá-los.

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Israel mentiu sobre bebês mortos e estupros sistemáticos no 7 de outubro, afirma diretor de documentário

Em entrevista, diretor do documentário inédito '7 de outubro' revela como apurou se histórias chocantes de Israel sobre mortes de bebês e estupros eram reais.

O jornalista Richard Sanders dirigiu o documentário ‘7 de outubro’. Para ele, histórias contadas por Israel são aceitas sem análise crítica.

O dia 7 de outubro de 2023, estopim do genocídio palestino por parte de Israel, já havia sido amplamente coberto pela mídia quando o jornalista Richard Sanders decidiu convencer a Unidade de Investigação da Al Jazeera que era preciso se aprofundar mais nos acontecimentos da data.

Dois fatores o motivaram: a questão do fogo-amigo, em que as forças de Israel mataram civis israelenses, e a proporção que tomou a versão de que o Hamas havia realizado uma campanha de estupro sistemático, além do ataque a Israel que matou cerca de mil pessoas. 

“Algumas dessas histórias, que estavam sendo aceitas sem crítica pela mídia ocidental, pareciam merecer um pouco de escrutínio e análise”, me contou Sanders.

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Assim nasceu o documentário “7 de outubro”, lançado hoje em português, em uma parceria entre a Al Jazeera e o Intercept Brasil. Ele se debruça na investigação de sete horas de filmagens de câmeras de corpo do Hamas, uma compilação inédita dos mortos na data e entrevistas com agentes que estiveram nos locais. 

A produção de Sanders coloca os ataques do Hamas no enquadramento – muito apropriado – do confronto colonial entre palestinos e israelenses. Ou seja, evento e contexto se conjugam para mostrar a versão mais completa possível dos fatos, descortinando muitas das histórias israelenses que tentam fortalecer o discurso ideológico em defesa dos ataques que já mataram mais de 30 mil palestinos desde então. 

Leia abaixo uma entrevista exclusiva com o diretor de “7 de outubro” – e assista ao documentário aqui.

Intercept Brasil – No início do documentário, há um breve contexto histórico da questão palestina, explicando como os primeiros colonizadores sionistas tinham a função de definir a fronteira, inclusive ao redor de Gaza. Qual a importância desse tipo de conhecimento para explicar o dia 7 de outubro? 

Richard Sanders – É difícil fazer isso na mídia tradicional ocidental porque, no momento que você contextualiza, as pessoas dizem que você está justificando. 

Mas, obviamente, é impossível compreender o que ocorreu em 7 de outubro, se você não compreender o contexto, ou seja, a limpeza étnica da Palestina em 1948 e a criação da Faixa de Gaza como um enclave para refugiados. Por volta de 70% da população vêm de famílias expulsas em 1948. 

A outra parte vital do contexto – e fiquei surpreso como a mídia cobriu isso – é a Grande Marcha do Retorno de 2018. Houve protestos pacíficos de massa em que os israelenses responderam simplesmente atirando nas pessoas. A marcha expôs os limites das possibilidades de protesto pacífico contra o estado de Israel e a total falta de apetite que havia no Ocidente para realmente perceber essas coisas. 

Há uma frase no documentário: “Os combatentes do Hamas e outros [palestinos] cometeram crimes em 7 de outubro. A mídia mundial, no entanto, não se concentra nos crimes que eles cometeram, mas nos crimes que não cometeram”. O quanto estamos em um debate distorcido e por quê?

Do lado palestino e dos que os apoiam, há um elemento de negação. Eu, pessoalmente, assisti a todo tipo de vídeo daquele dia. Não há dúvida de que o Hamas cometeu extensos abusos de direitos humanos. Civis desarmados foram mortos pelo Hamas e por outras pessoas que entraram em Israel pela cerca rompida. 

Mas o interessante é que semanas depois, mesmo hoje, há uma ênfase enorme em dois temas específicos. Um é o assassinato de bebês e, depois,a violência sexual. Há um motivo para as pessoas focarem nesses temas. São gatilhos, provocam indignação. 

Quando olhamos para outros levantes, seja o motim indiano em 1857 ou as rebeliões dos nativos americanos no século 19 nos Estados Unidos, quase sempre [os povos colonizados] são acusados da mesma coisa: violar mulheres, assassinar e mutilar bebês. 

Isso serve a uma função: desumaniza povos, dessensibiliza e facilita a violência genocida contra essas pessoas.  


ASSISTA AO DOCUMENTÁRIO EM PORTUGUÊS


Como vocês investigaram a alegação de que dezenas de bebês haviam sido assassinados e decapitados por palestinos? 

Foi simples, porque fizemos uma lista muito detalhada dos mortos. Havia dois bebês na lista, uma criança de 10 meses do kibbutz Bee’ri, que morreu por um tiro através da porta, e uma criança que morreu depois de uma cesariana de emergência na mãe alvejada. 

Mas as histórias que ouvíamos, dos 40 bebês, muitos deles decapitados, ou os oito bebês roubados, eram claramente inverdades. Não é complicado. Se não há bebês na lista de mortos, essas histórias são claramente inverdades. 

E a questão da violência sexual? 

A violência sexual é mais complicada. A cobertura da mídia mais tradicional é chocante. Ela simplesmente acreditou no que os israelenses disseram, o que, dado seu registro passado, é algo extraordinário. Se há algo que aprendemos ao cobrir Israel nos últimos 30 anos é fazer uma checagem dupla de tudo que eles afirmam. 

Não estamos dizendo que não houve violência sexual, que não houve estupros. O que claramente não houve foi o tipo de uso sistemático e generalizado do estupro como tática. Porque haveria muito mais evidências do que há. Não há evidência forense. 

No caso do dia 7, evidências não poderiam ter sido coletadas de forma correta, mas há pouquíssimas testemunhas. 

O documentário investiga sete horas de filmagens de câmeras de corpo de combatentes do Hamas, além de uma compilação inédita dos mortos na data e entrevistas com agentes que estiveram nos locais dos ataques.

Qual procedimento de investigação vocês realizaram para o caso dos estupros? 

A violência sexual que se alegou ter ocorrido acontece centralmente no festival de música, realizado em uma grande área aberta. E ainda que centenas de pessoas tenham sido assassinadas no festival de música, outras milhares não foram, há muitos sobreviventes. Então, o fato de haver basicamente duas testemunhas é muito estranho. 

Novamente, é claro que as pessoas estão traumatizadas, levam tempo para falar. Mesmo assim, o senso comum diz que há algo errado se há apenas duas testemunhas. 

A outra coisa que me impressionou é que analisei sete horas de filmagem e não há nada que indique violência sexual, mesmo nas milhares de fotografias tiradas por organizações israelenses. Claro, há muitos corpos de mulheres mortas, mas nada que realmente indique especificamente violência sexual. 

Por exemplo, foi lançado um relatório da ONU meio estranho, em que os israelenses efetivamente escolheram seu próprio investigador. A relatora claramente se apoia quase que inteiramente nos relatos de oficiais israelenses e dos primeiros atendentes a chegarem nos locais. 

O texto menciona bastante uma mulher encontrada amarrada a árvores com suas roupas íntimas removidas. Mas não há qualquer imagem disso. 

Nós mostramos no filme os primeiros momentos em que forças israelenses chegam a um local de ataque ainda não mexido. É uma visão terrível, o local está repleto de cadáveres, mas não vemos pessoas nuas ou amarradas a árvores. Portanto, a ausência quase total de qualquer evidência visual é reveladora. 


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Em determinado momento, o documentário afirma que a imprensa ocidental ignora a história de Bee’ri. O que aconteceu em Bee’ri que é simbólico para o dia 7? 

Bee’ri é o maior kibutz da região, com uma população de mais de mil pessoas. Algo em torno de 10% da população de Bee’ri foi morta no dia 7 de outubro. Ali foi um cenário de muitos combates, já que o Exército e a polícia israelenses chegaram relativamente cedo. 

Mas em Bee’ri temos o seguinte: havia uma casa com mais corpos mortos do que em outras, e grande parte da imprensa gravitou ao redor dessa casa. A maioria das histórias mais horrorosas se relacionam a essa casa específica. A mídia israelense, dando o crédito, revelou essa história. 

O que ficou claro é que certamente havia 12 pessoas que estavam naquela casa, digo 12 reféns israelenses, que quase certamente foram mortos por fogo israelense. Eles abriram fogo contra a casa com projéteis de tanques. E isso levanta a questão: esse padrão aconteceu em outro lugar? 

Algumas casas eram queimadas, já que o Hamas colocava fogo nas casas para forçar a saída das pessoas de seus quarto-seguros. As casas totalmente queimadas muito provavelmente são uma ação do Hamas. 

Mas muitas delas não foram totalmente incendiadas, elas foram destruídas por armamento pesado [diferente do que possui o Hamas]. Muitos corpos foram descobertos sob as ruínas das casas e não sabemos como essas pessoas morreram.  

Como você acha que seu filme contribui de forma mais geral para o debate sobre Palestina e Israel? 

Há duas coisas que podem ser feitas com uma população subjugada. Na África do Sul, a população subjugada era importante, porque era uma força de trabalho explorável. A questão assustadora sobre a Israel moderna é que palestinos não têm um papel no sionismo moderno a não ser o de desaparecer, o que faz do projeto sionista, nesse estágio pelo menos, algo mais assustador do que o projeto do apartheid sul-africano. 

Eu não sei como é no Brasil. Em países que têm sua própria experiência de colonialismo e também não são afetados por uma culpa histórica sobre o tratamento dos judeus, você sabe o que é Israel, um estado étnico racista, cuja característica definidora é ser estruturado para garantir a dominação de uma etnia sobre outra. 

A complicação de falar, confrontar e relatar isso no Ocidente se relaciona exatamente a essa característica, que você não tem permissão para descrever. Não se trata apenas do fato de as pessoas discordarem. Você forçadamente não tem permissão para dizer isso. 

Essa é a lógica da cláusula 7 da definição de antissemitismo da Associação Internacional de Rememoração do Holocausto [IHRA, na sigla em inglês]. Você não pode se referir a Israel como um empreendimento racista. E isso basicamente significa que, no Ocidente, não é possível ter uma conversa adequada sobre Israel, porque a verdade central da situação é proibida de ser articulada, o que dificulta muito uma conversa construtiva. 

Continuamos a ter que falar sobre o assunto como se fosse uma espécie de disputa de terra complicada e intratável, o que não é o caso.

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