Um grupo de destacados economistas internacionais está aplaudindo a decisão recente da presidente hondurenha, Xiomara Castro, de se opor a cripto investidores americanos, que buscam se apropriar de bilhões em dinheiro público da nação da América Central.
A turma do cripto está se aproveitando de um mecanismo interno de contestação do Banco Mundial, criado por uma cláusula obscura do Acordo de Livre Comércio da América Central.
A presidente Castro considera que o foro do Banco Mundial, chamado de Centro Internacional para Resolução de Disputas sobre Investimentos (ICSID, na sigla em inglês), promove uma usurpação ilegítima da soberania hondurenha. Ela, então, encontrou uma solução elegante: tomou medidas para retirar Honduras do ICSID. A legião do cripto resolveu protestar.
A espetacular batalha que se desenrola em Honduras e no interior de instituições financeiras globais mistura a diplomacia e o republicanismo de bananas, legados americanos do século 19, com um toque contemporâneo: o principal grupo de investidores combatendo Honduras ao se aproveitar de instituições financeiras internacionais é formado por um bando de criptolibertários.
A disputa envolve um cenário quase inacreditável: um grupo de investidores libertários se associou a um governo anterior de Honduras — ligado a narcotraficantes e que chegou ao poder depois de um golpe militar apoiado pelos EUA.
Eles querem implementar a política pública libertária mais radical do mundo, que transferiu partes significativas do país para tais investidores por meio de chamadas “zonas econômicas especiais”. Em protesto, a população hondurenha derrubou o regime apoiado pelo narcotráfico e o novo governo revogou a legislação libertária. Os criptoinvestidores agora estão usando o Banco Mundial para forçar Honduras a cumprir as medidas chanceladas pelo governo ligado ao narcotráfico.
Desde que Castro tomou posse em 2021, investidores apresentaram no ICSID nada menos do que dez casos contra seu governo. O maior, ingressado pela empresa americana Próspera Inc., pede mais de US$ 10 bilhões em indenização, o que equivaleria a cerca de um terço do PIB do país.
Com raízes no mundo das criptofinanças, a Próspera se define como uma “plataforma que potencializa o desenvolvimento de novas cidades em zonas econômicas especiais e maximizam a prosperidade generalizada e a criação de riqueza”. A empresa criou uma cidade em Honduras e adotou os bitcoins como moeda oficial.
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Numa carta aberta publicada em 18 de março, os economistas defenderam que a decisão de Castro foi uma medida inteligente. “Enxergamos a retirada como uma defesa crítica da democracia hondurenha e um passo importante em direção ao seu desenvolvimento sustentável”, diz a carta, organizada pela coalizão de esquerda Internacional Progressista.
“Durante décadas, cortes de arbitragem internacionais, como o ICSID, permitiram que empresas processassem Estados e restringissem sua liberdade de regulamentar em prol dos consumidores, trabalhadores e do meio ambiente. Desde 1996, só na América Latina os governos foram forçados a compensar empresas estrangeiras em mais de US$ 30 bilhões, intimidando reguladores a não aumentar os salários mínimos, proteger ecossistemas vulneráveis e introduzir proteções climáticas, entre outras prioridades de política interna. Encontramos poucas evidências econômicas de que mecanismos como o ICSID estimulam, em contrapartida, investimentos estrangeiros diretos significativos”.
A questão envolve as chamadas Zedes (abreviação de Zonas de Emprego e Desenvolvimento Econômico), criadas por governos anteriores de Honduras. Na prática, a lei que as estabeleceu separou partes de Honduras e as transferiu para investidores americanos, que operam como verdadeiros governos soberanos.
As Zedes podem, um dia, controlar até 35% do território de Honduras. De acordo com as Nações Unidas, as zonas suscitam preocupações quanto aos direitos humanos.
Uma enorme força política foi necessária para transformar as Zedes em lei, há mais de uma década. Elas só se tornaram possíveis quando o marido de Castro, Manuel Zelaya, foi derrubado em 2009 por um golpe apoiado pelos EUA.
Depois que Zelaya foi deposto, uma nova eleição levou ao poder o presidente Porfirio Lobo Sosa, que rapidamente se empenhou para desfazer as reformas sociais de Zelaya, atacando direitos dos trabalhadores e cancelando programas de reforma agrária.
A Suprema Corte revogou a primeira versão da lei das Zedes por considerá-la inconstitucional, mas depois que a Constituição foi alterada e quatro novos juízes foram adicionados à Suprema Corte, a lei foi ratificada em 2013.
A ascensão de Lobo Sosa foi alimentada não apenas pelo apoio dos EUA, mas também por dinheiro do narcotráfico, de acordo com promotores americanos que conseguiram a condenação de Tony Hernández, irmão do ex-presidente Juan Orlando Hernández, por traficar quantidades “monumentais” de cocaína.
Sucessor de Lobo Sosa, Juan Orlando Hernández foi condenado por tráfico de drogas no início do mês num tribunal federal dos EUA. Ele foi presidente do Congresso Nacional hondurenho, de 2010 a 2013, e um dos principais responsáveis pela legislação das Zedes. Também liderou, numa madrugada, a destituição de juízes da Suprema Corte que permitiu a implementação da lei.
Os promotores do caso Tony Hernández ligaram os irmãos a Lobo Sosa em suas alegações finais antes da sentença. “Entre 2004 e 2019, o réu adquiriu e distribuiu milhões de dólares em propinas oriundas do comércio de drogas para Juan Orlando Hernández, o ex-presidente hondurenho Porfirio Lobo Sosa e outros políticos associados ao Partido Nacional de Honduras”, conforme escreveram.
Contextualizando a criação das Zedes, a radical intervenção de “livre mercado” só foi convertida em lei como resultado do golpe militar e da tomada de controle da Suprema Corte.
As Zedes foram então promulgadas e implementadas, em benefício de investidores americanos, por dois governantes ligados ao narcotráfico. Em 8 de março, ao comemorar a condenação do ex-presidente hondurenho que liderou a criação da lei e depois comandou sua implementação, o procurador-geral dos EUA, Merrick Garland, afirmou que Hernández — amparado por aliados no Departamento de Estado americano — comandava “um narcoestado em que traficantes de drogas violentos podiam operar de forma praticamente impune”.
Zelaya foi derrubado supostamente devido à sua tentativa de estender sua presidência por um segundo mandato, considerado inconstitucional. No entanto, Hernández concorreu tranquilamente à reeleição em 2017 e declarou vitória em meio a uma quantidade absurda de irregularidades, todas deixadas de lado por um governo Trump que o apoiava.
Os anos de caos e violência levaram a uma onda de imigração em direção à fronteira com os EUA.
Os EUA não demonstraram nenhum problema aparente com esse narcoestado livre e solto, enquanto Hernández estava no cargo e permanecia útil. Quando Castro assumiu o poder, no entanto, numa reação à corrupção alimentada pelo governo americano, os Estados Unidos subitamente redescobriram seu respeito pelo estado de direito e pela inviolabilidade dos contratos com investidores americanos.
Com sucesso, Castro rapidamente propôs a revogação da lei das Zedes, enfrentando intensa pressão bipartidária dos EUA para mantê-la. A resposta americana foi repudiar a própria noção de democracia e soberania de Honduras, com os investidores usando o ICSID do Banco Mundial para forçar o novo governo hondurenho a respeitar as políticas implementadas pelo ex-presidente, que agora está atrás das grades.
Progressistas apoiam decisão da presidente de Honduras
Entre as dezenas de signatários da Internacional Progressista que elogiaram a decisão de Castro de sair da corte de arbitragem estão o proeminente economista sul-coreano Ha-Joon Chang; o chileno Gabriel Palma, criador do “Índice Palma”, que mede a desigualdade; o economista americano Jeffrey Sachs; o ex-ministro das finanças grego Yanis Varoufakis; a economista britânica Ann Pettifor; e a economista indiana Jayati Ghosh, especializada em desenvolvimento.
Melinda St. Louis, diretora do Observatório do Comércio Global, ligado à ONG americana Public Citizen, combate a turma do cripto há anos e comemorou a decisão de Castro.
“O povo hondurenho se opôs de forma esmagadora à lei das Zedes e, quando o Legislativo hondurenho revogou a lei por unanimidade, deveria ter sido o fim da história”, disse.
“Esse é só o exemplo mais recente de empresas que abusam desse mecanismo do ISDS para contestar políticas ambientais, de saúde, fundiárias e outras de interesse público em todo o hemisfério. Honduras foi sábia ao se retirar da instância do Banco Mundial na qual muitos desses casos são apresentados como um primeiro passo importante”.
No caso apresentado ao ICSID, a Próspera contratou uma grande consultoria especializada em lobby e utilizou o ex-legislador democrata Kendrick Meek para pressionar Honduras a pagar.
Ano passado, a senadora democrata Elizabeth Warren, de Massachusetts, e o deputado democrata Lloyd Doggett, do Texas, se manifestaram contra a tentativa da Próspera de explorar o sistema de resolução de disputas para enfraquecer a soberania de Honduras.
“No caso da Próspera, numa Zede localizada em grande parte na ilha hondurenha de Roatán, os investidores criaram um conselho administrativo no qual 44% dos membros são indicados pela empresa privada e 22% são eleitos por proprietários de terras, em um sistema no qual o número de votos é proporcional ao tamanho de suas propriedades”.
Uma conferência realizada pela Próspera em Roatán, também no ano passado, indicou a ética da empresa.
“A Próspera pretende ser a melhor jurisdição do mundo para o setor de cripto/web3, e são bem-vindas as melhores ideias para atingir esse objetivo com uma estrutura jurídica sólida”, afirmou Chris Wilson, da Próspera.
Procurada para comentar a carta aberta dos economistas, a empresa enviou uma resposta representativa da estrutura corporativa incomum que conseguiu implementar. O diretor de comunicações disse ao Intercept americano que uma resposta às nossas perguntas seria enviada por Jorge Colindres, representante do “Escritório do Secretário Técnico”.
A assinatura do e-mail de Colindres remete à natureza público-privada da corporação:
Jorge Constantino Colindres
Secretário Técnico – Zede Próspera
Zona de Emprego e Desenvolvimento Econômico
República de Honduras
Gerente – Provedor de Serviços Gerais
Colindres respondeu como autoridade governamental. “Em anexo, você encontrará a declaração do meu escritório sobre a retirada inconstitucional do ICSID por parte do governo hondurenho”, afirmou.
A declaração insistiu:
A Zede Próspera é [um] governo local e uma zona econômica especial da República de Honduras. É governada pelo Secretário Técnico, um cidadão hondurenho de nascimento, nomeado pelo Governo de Honduras e autorizado pelo artigo 329 da Constituição de Honduras e pela Lei Orgânica da Zede a supervisionar a implementação de novas políticas e normas destinadas a fomentar o desenvolvimento econômico, facilitar a criação de empregos, atrair investimentos diretos nacionais e estrangeiros e salvaguardar os direitos fundamentais dos trabalhadores e residentes desta jurisdição especial. Tanto empresas nacionais quanto estrangeiras estão obrigadas a cumprir as Normas da Zede Próspera, que são normas hondurenhas, pois foram adotadas por um governo local de Honduras com a chancela legal do Poder Executivo, do Congresso Nacional e da Suprema Corte de Justiça do país.
Colindres alegou que as Zedes resultaram em mais de US$ 100 milhões em investimentos estrangeiros até agora e que Castro não obteve aprovação do Congresso Nacional para retirar o país do órgão de disputa do Banco Mundial.
“Temos orgulho de nossas conquistas na criação de empregos e na atração de investimentos, que contrastam totalmente com as políticas de eliminação de empregos do governo nacional, e prosseguimos sem nos intimidar em nossa missão de transformar a economia hondurenha e catalisar a prosperidade por meio do oásis de liberdade econômica e estado de direito que a Zede Próspera oferece ao povo hondurenho”, afirmou.
Segundo Fernando Garcia, o encarregado pela presidente Castro de combater as Zedes, embora a Constituição hondurenha exija que o Congresso Nacional ratifique novos tratados internacionais, ela não exige que o Poder Executivo notifique o Legislativo antes de uma retirada.
“A convenção do ICSID estabelece a possibilidade de um Estado soberano se retirar da convenção”, disse Garcia ao Intercept. Ele acrescentou que a corte de arbitragem já aceitou legalmente a retirada de Honduras, que entrará em vigor em agosto. Isso não impede “aqueles que solicitaram a arbitragem de proceder de acordo”, afirmou.
Tradução por Vitor Pamplona.
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