Dez anos atrás, a plataforma de internet X, então conhecida como Twitter, entrou com uma ação contra o governo dos EUA, na expectativa de forçar uma transparência relativa à vigilância passível de abuso sobre os usuários de redes sociais. A batalha judicial do X, porém, vai de encontro a um fato desconfortável: a própria empresa faz parte do setor de vigilância estatal sobre as redes sociais.
Sob a recente propriedade de Elon Musk, o X continuou no processo, até ser derrotado em janeiro. O objetivo da ação era derrubar uma proibição do governo à divulgação do recebimento de solicitações, conhecidas como cartas de segurança nacional, que obrigam as empresas a entregarem tudo, desde metadados dos usuários, até mensagens diretas privadas.
As empresas que recebem esses requerimentos em regra estão obrigadas por lei a manter sigilo sobre eles, e normalmente só podem divulgar o total que receberam em determinado ano usando vagos intervalos numéricos.
Em sua petição à Suprema Corte em setembro do ano passado, os advogados do X levantaram a bandeira da privacidade das comunicações: “a história mostra que a vigilância sobre a comunicação eletrônica é terreno fértil para abusos do governo e um tema político controverso de grande preocupação para o público”. Depois que o tribunal se recusou a examinar o caso em janeiro, Musk respondeu com um tweet: “decepcionante que a Suprema Corte tenha se recusado a examinar esse assunto”.
A recusa do tribunal em apreciar a ação encerrou a empreitada jurídica do X, mas a empresa e Musk se posicionaram na linha de frente de uma batalha em nome dos usuários da internet por maior transparência na vigilância pelo estado.
No entanto, e-mails entre o Serviço Secreto dos EUA e a empresa de vigilância Dataminr, obtidos pelo Intercept EUA por meio de um requerimento via Lei da Liberdade de Informação dos EUA (semelhante à Lei de Acesso à Informação brasileira), mostram que o X está numa posição desconfortável, lucrando com a venda de dados dos usuários para fins de vigilância do governo ao mesmo tempo em que combatia no tribunal o sigilo sobre outro tipo de vigilância estatal.
Enquanto as cartas de segurança nacional permitem ao governo fazer exigências específicas de dados não públicos individualmente, empresas como a Dataminr monitoram continuamente a atividade pública nas redes sociais e outras plataformas de internet.
A Dataminr fornece aos seus clientes “alertas” personalizados em tempo real sobre os tópicos desejados, dando a organizações como departamentos de polícia uma espécie de onisciência nas redes sociais. Os alertas permitem à polícia, por exemplo, rastrear automaticamente um protesto enquanto ele se desloca das fases de planejamento para as ruas, sem exigir que os policiais façam buscas demoradas.
Embora a Dataminr defenda sua plataforma de vigilância estatal, a First Alert, como uma ferramenta de segurança pública que ajuda equipes de emergência a reagirem rapidamente a crises repentinas, ela vem sendo reiteradamente usada pela polícia para monitorar discursos políticos online e protestos no mundo real, protegidos pelo direito à liberdade de expressão.
‘Dataminr tem uma relação contratual singular com o Twitter’
A Dataminr há muito tempo anuncia sua relação especial com o X como parte fundamental da First Alert (o Twitter já deteve uma participação na Dataminr, que foi alienada antes da aquisição por Musk). Nas outras plataformas que monitora, a Dataminr captura conteúdo de usuários, mas no X, paga por acesso privilegiado ao “firehose” da empresa: um feed direto e sem filtros de todo o conteúdo de usuários já compartilhado publicamente na plataforma.
Observar tudo que acontece no X em tempo real é essencial à proposta da Dataminr para o governo. A empresa basicamente oferece acesso indireto a esse enorme fluxo de informações, e a Dataminr serve de intermediária entre os servidores do X e uma infinidade de órgãos policiais, militares e de inteligência.
Embora não estivesse claro se, sob o controle de Musk, o X continuaria permitindo acesso a seus usuários pela Dataminr, e, por extensão, pelo governo, os e-mails do Serviço Secreto confirmam que, até meados do ano passado, a rede social ainda estava bem envolvida no mercado de vigilância.
‘Documentos jurídicos do X reconhecem que a vigilância sobre a comunicação é terreno fértil para os abusos do governo’.
“A Dataminr tem uma relação contratual singular com o Twitter, pela qual temos acesso em tempo real ao fluxo completo de todos os Tweets publicamente disponíveis”, escreveu um representante da empresa de vigilância para o Serviço Secreto, em uma mensagem de julho de 2023 sobre os termos da assinatura de vigilância do órgão.
“Além disso, todos os clientes da Dataminr no setor público concordaram com esses termos, incluindo dezenas de responsáveis pelas forças de segurança em nível local, estadual ou federal.” (Os termos não são mencionados nos e-mails.)
Segundo um e-mail do Serviço Secreto na mesma sequência, o interesse do órgão na Dataminr era inequívoco: “o único objetivo deste contrato é usar a informação para fins de policiamento”.
Defensores do direito à privacidade disseram ao The Intercept que os alertas contra abusos de vigilância estatal introduzidos no X na era Musk são contraditórios com a manutenção da venda de dados dos usuários para fins de vigilância estatal. (X e Dataminr não responderam aos pedidos de comentários.)
“Os documentos jurídicos do X reconhecem que a vigilância sobre a comunicação é terreno fértil para os abusos do governo, e que não podemos depender da polícia para se policiar”, diz Jennifer Granick, conselheira de vigilância e cibersegurança do Projeto sobre Expressão, Privacidade e Tecnologia da União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU). “Mas aí o X muda de lado e vende à Dataminr acesso ‘firehose’ às postagens dos usuários, que a Dataminr então transmite ao governo na forma de divulgações não reguladas e previsões especulativas que podem capturar falsamente os inocentes.”
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“As plataformas de mídia social deveriam proteger a privacidade de seus usuários”, diz Adam Schwartz, diretor de contencioso em privacidade na Electronic Frontier Foundation (EFF, Fundação Fronteira Eletrônica), que apresentou uma petição de amicus curiae em apoio à ação do X na Suprema Corte.
“Por exemplo, as plataformas não devem fornecer serviços especiais, como acesso em tempo real ao fluxo completo de postagens voltadas ao público, para fornecedores de vigilância que compartilham essa informação com departamentos de polícia. Se o X está fornecendo esse acesso à Dataminr, isso seria decepcionante.”
X e Dataminer negaram que repassar dados à polícia seja vigilância
Após uma investigação de 2016 pela ACLU sobre o uso de dados do Twitter para vigilância policial, a empresa chegou a proibir expressamente terceiros de “realizarem ou fornecerem vigilância ou reunirem informações de inteligência” e de “monitorarem eventos sensíveis (incluindo, mas não exclusivamente, protestos, comícios ou reuniões de organização comunitária)” com uso de dados de “firehose”.
A nova política chegou ao ponto de proibir o uso de dados de “firehose” para fins relativos a “qualquer prática suposta ou real de crime”, supostamente um problema para a clientela de combate ao crime da Dataminr.
Essas proteções não tiveram nenhum efeito em impedir a Dataminr de usar os dados que adquire do X para fazer exatamente essas coisas. Reportagens anteriores do Intercept mostraram que a empresa, nos últimos anos, ajudou a polícia em âmbito federal e local a manter vigilância sobre protestos completamente pacíficos do movimento Black Lives Matter e sobre manifestações pelo direito ao aborto.
A nova política chegou ao ponto de proibir o uso de dados de “firehose” para fins relativos a “qualquer prática suposta ou real de crime”, supostamente um problema para a clientela de combate ao crime da Dataminr.
Essas proteções não tiveram nenhum efeito em impedir a Dataminr de usar os dados que adquire do X para fazer exatamente essas coisas. Reportagens anteriores do Intercept mostraram que a empresa, nos últimos anos, ajudou a polícia em âmbito federal e local a manter vigilância sobre protestos completamente pacíficos do movimento Black Lives Matter e sobre manifestações pelo direito ao aborto.
X e Dataminr não responderam às diversas solicitações para explicar como uma ferramenta que permite o monitoramento em tempo real de protestos é permitida à luz de uma política que proíbe expressamente o monitoramento de protestos.
‘A parceria com a Dataminr é totalmente inconsistente com a política da plataforma de proibir o uso de seus dados para vigilância’.
No passado, tanto X quando Dataminr já negaram que monitorar a comunicação de pessoas na internet em tempo real e transmitir essas informações para a polícia seja uma forma de vigilância, já que as postagens em questão são públicas.
O Twitter posteriormente amenizou essa proibição, observando que aplicativos de vigilância estavam proibidos “salvo se expressamente aprovados pelo X por escrito”. A Dataminr, por sua vez, permanece listada como “parceira oficial” do X.
Embora os meios variem, estudiosos de segurança nacional informaram ao Intercept que os fins pretendidos pelas cartas de segurança nacional e pelo monitoramento de “firehose” são os mesmos: vigilância estatal generalizada com pouca supervisão, ou nenhuma que importe. Nem as cartas de segurança nacional, nem a vigilância das redes sociais exigem autorização judicial, e, em ambos os casos, as pessoas afetadas não têm ciência de que estão sob investigação do governo.
“Embora eu perceba que pode haver alguma diferença simbólica entre fornecer ao governo dados granulares diretamente, ou obrigá-lo a filtrar o que consegue comprar dos corretores de dados, o resultado final ainda é que os dados dos usuários acabam nas mãos das forças de segurança, e dessa vez, sem nenhum processo legal”, diz David Greene, diretor de liberdades civis na EFF.
É o tipo de contradição ideológica típica do proprietário do X. Musk conseguiu criar para si a fama de crítico heterodoxo à política externa dos EUA e ao inchaço da máquina pública, ao mesmo tempo em que enriquece vendendo ao estado equipamentos militares caros por meio de sua empresa de foguetes, a SpaceX.
“Embora os esforços do X de trazer mais transparência para o processo das Cartas de Segurança Nacional sejam louváveis, suas objeções à vigilância estatal sobre as comunicações naquele contexto estão em frontal oposição à sua decisão de oferecer apoio a medidas semelhantes de vigilância por meio da parceria com a Dataminr”, diz Mary Pat Dwyer, diretora do Instituto de Direito e Políticas de Tecnologia da Faculdade de Direito da Universidade Georgetown.
“Estudiosos e ativistas defendem há muito tempo que a parceria com a Dataminr é totalmente inconsistente com a política da plataforma de proibir o uso de seus dados para vigilância, e a constante recusa do X em encerrar essa relação impede que a empresa seja vista com credibilidade como defensora da privacidade de seus usuários.”
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