O prédio do Diário de Pernambuco. (Foto: reprodução/Google Street View)
Quando ouvimos falar em cidades como Paris, Roma e Lisboa, a nossa memória – quer tenhamos ido ou não a esses destinos – traz quase instantaneamente algumas imagens: belos monumentos, pontes seculares, exuberantes prédios históricos.
A Europa, sabemos, é um destino adorado pelos brasileiros: estamos entre os turistas que mais visitam a capital da França no mundo – em 2022, foram 111 mil. Já em 2023, apenas entre janeiro e maio, mais de 50 mil brasileiros viajaram para a Itália (aumento de 84,1% em relação ao mesmo período de 2022), enquanto 320 mil foram a Portugal nos quatro primeiros meses de 2023 (dados do Instituto Nacional de Estatística, o INE).
Ah, como é linda a Ponte Neuf (construída em Paris no século 16).
Ah, como são instagramáveis as ruas antigas de Trastevere, em Roma.
Ah, como são charmosos os prédios bicentenários do Chiado, Lisboa.
Mas, enquanto gasta seu dinheiro nos velhos países europeus, o Brasil continua ignorando de maneira retumbante os seus próprios patrimônios históricos: para estes, vale a manjada política do deixa-o-prédio-cair.
Esse traço nacional é uma das provas do viralatismo exuberante que acomete especialmente nossas elites financeiras, empresariais e políticas, cuja desvalorização do próprio país e a celebração do que está além do Atlântico é antiga.
Ela é estruturada por um mix de provincianismo, obtusidade e baixa autoestima: reverenciamos a história alheia e aplaudimos a preservação de uma memória que não nos pertence enquanto nossos prédios, pontes, ruas, praças e monumentos viram pó, estacionamento ou mais uma farmácia genérica.
Isso ficou muito evidente para mim em uma recente caminhada pelo centro da cidade onde vivo, Recife, cuja natureza, história e geografia foram bem generosas: é um canto que tem mar e que tem rio, onde o sol ilumina as águas quando nasce e quando se vai, onde ainda vemos uma rede de pesca sendo lançada no ar e contrastando com o céu azul.
Um centro muito único e bonito, que deveria ser cuidado e visitado como a pérola que é. Mas a verdade é que uma parte significativa de Recife está desabando.
Um centro muito único e bonito, que deveria ser cuidado e visitado como a pérola que é. Mas a verdade é que uma parte significativa de Recife está desabando, e sei que esse fenômeno – o desprezo pela própria história – também se passa em cidades como Belém, Rio de Janeiro, Cachoeira, Salvador, São Paulo, Goiânia, Manaus, etc.
São milhares de prédios, inclusive protegidos por leis e tombamentos, em ruínas, construções que devem milhões de impostos e cujos nomes e rostos dos proprietários permanecem protegidos.
Falar de Recife é falar também desse desmonte histórico em curso no Brasil, cuja população de rua, estimada em 230 mil pessoas pelo Ipea, permanece nas calçadas e sob viadutos enquanto milhares de unidades habitacionais são ocupadas por ratos, baratas e lixo.
Os últimos são os moradores de dezenas de imóveis em uma das mais importantes áreas do centro de Recife, a Rua da Aurora, na qual hoje há um corredor de casarões às margens do Rio Capibaribe caindo aos pedaços.
Falo aqui da Aurora como mero recorte: são centenas de casas e edifícios à beira do colapso na região, que também foi tomada por assaltantes, a maioria deles usando facões nas abordagens. Exatamente ao lado do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam), equipamento cultural da prefeitura, um edifício térreo com mais dois andares, abandonado há anos, pode arrastar o museu caso desabe.
A antiga Escola Normal Pinto Júnior, na Rua do Riachuelo, é outro exemplo retumbante. Ali, o reboco de um dos poucos edifícios neogóticos da cidade está caindo, e as paredes rachadas fizeram com que moradores da área se unissem, há dois anos, para improvisar o isolamento do local.
Nem isso se vê agora – e olhe que a construção de 1872 é um Imóvel Especial de Preservação (IEP), o que deveria protegê-la. A Sociedade Propagadora da Instrução Pública, proprietária do local, foi autuada em 2022, mas a casa continua caindo. O ótimo perfil de Instagram @soquemvaiape1 traz a história do imóvel e os registros de tantas outras que seguem desabando pela cidade.
Parece que a Fundarpe esqueceu de combinar com o Porto Digital, e vice-versa: neste exato momento, um joga o prédio histórico no colo do outro.
Outro exemplo eloquente do viralatismo e do desprezo pela própria história – e portanto por si e pelo próprio povo – é o prédio do Diário de Pernambuco, hoje em ruínas. Fundado em 7 de novembro de 1825, é o periódico mais antigo em circulação da América Latina. Mas esse status pomposo não impediu que o palacete fosse tratado como lixo.
Um lugar de interesse internacional, um prédio que poderia ocupar organizações voltadas ao estudo e prática da imprensa e mídia não só brasileiras; abrigar formação, capacitação, ensino, pesquisa, museu. Poderia.
O prédio foi comprado pelo Governo do Estado desde 2004 (gestão de Jarbas Vasconcelos, antigo PMDB). Em 2014, com o Estado sob o comando de Eduardo Campos (PSB), o espaço foi cedido para o Porto Digital, cujo atual faturamento de R$ 5.4 bilhões está anunciado no portal da entidade.
Há oito anos, um projeto arquitetônico foi realizado pelo escritório de arquitetura Jorge Passos, mas o trabalho, sem execução, já caducou. Segundo o próprio Passos, é preciso agora uma atualização, além de novos estudos de danos e patologias para elaborar uma proposta de intervenção.
Para isso, somente a Fundarpe (ler nota na íntegra no fim desse texto) deve desembolsar R$ 220 mil, além do que já foi pago em 2016. Aqui, consta que R$ 420 mil foram destinados ao primeiro projeto.
Mas parece que a Fundarpe esqueceu de combinar com o Porto Digital, e vice-versa: neste exato momento, um joga o prédio histórico no colo do outro. A primeira diz que foi apenas uma “avaliadora da proposta” e que o novo estudo para recuperação do Diário de Pernambuco estará pronto em 5 meses.
Comecemos por João Campos: é impossível não reparar no enorme contraste entre o abandono e a insegurança do centro de Recife e o mundo feérico visto nas redes sociais do prefeito.
Já o Porto Digital afirma que a “transferência da responsabilidade de uso do imóvel ocorreria mediante assinatura de Termo de Cessão de Direito de Uso de Bem Imóvel, o qual nunca foi formalizado”. Em 2019, ainda segundo a nota, o Porto Digital anunciou ao governo a impossibilidade de concretizar a cessão do imóvel (íntegra no final do texto). Ou seja, no fim o prédio público é seu e é meu. Será que podemos ocupá-lo?
Só posso dizer uma coisa: que bagunça.
Pernambuco e Recife são governados por duas figuras jovens e proeminentes em seus partidos, Raquel Lyra, do PSDB, e João Campos, do PSB, respectivamente. Obviamente, os anos de descuido do patrimônio histórico não podem ser creditados somente a eles.
Mas se suas gestões nos prometeram “avanços”, então que sejam cobrados pela preservação – ou estarão repetindo o provincianismo e a obtusidade dos pares anteriores que criticaram.
Comecemos por Campos: é impossível não reparar no enorme contraste entre o abandono e a insegurança do centro de Recife e o mundo feérico visto nas redes sociais do prefeito.
No perfil do Instagram de Campos, lemos: “prefeito do Recife, a mais linda e incrível cidade em linha reta do mundo!”. Eu concordo que Recife seja linda, mas para ser incrível falta um bocado
Com enorme circulação nos tapetes do governo federal, ele se tornou um fenômeno midiático principalmente no contexto do último Carnaval, quando descoloriu os cabelos (nevou, na gíria) e fagocitou todo um modo “galeroso” de ser, dançando passinho do brega-funk – no palco pago pela prefeitura – e usando óculos espelhados.
Logo, as redes sociais de todo país estavam tomadas por pessoas exaltando a capital pernambucana: com apenas 30 anos, o gestor deixava de ser apenas prefeito para virar também um super galã digital com mais engajamento nas redes sociais do que o próprio presidente Lula (algo não muito difícil, convenhamos, em um Brasil racista cuja concepção de príncipe ainda passa pelos olhos claros e a pele branca).
No perfil do Instagram de Campos, lemos: “prefeito do Recife, a mais linda e incrível cidade em linha reta do mundo!”. Eu concordo que Recife seja linda, mas para ser incrível falta um bocado – e as coisas não funcionam somente com a força do pensamento mágico ou o uso de exclamação no fim da frase, o prefeito deve saber.
Uma cidade incrível não permite que sua história seja constantemente vandalizada – e os vândalos aqui não são pichadores, mas as famílias e entidades proprietárias que deixam casarões caírem, mesmo aqueles com proteção legal, para lucrarem com os terrenos.
Uma cidade incrível não atua justamente para o fechamento de locais que atualmente levam as pessoas para esse centro no qual, principalmente à noite, há um facão te esperando a cada esquina.
É o caso do Pagode do Didi, cujo proprietário foi considerado patrimônio vivo e que desde 1981 se mantém bravamente em uma região cada vez mais abandonada. O local foi temporariamente fechado após decisão da 5ª Vara da Fazenda Pública do Recife, provocada pelo Ministério Público de Pernambuco (MPPE) e a Procuradoria Geral do Município.
Afinal, quando a Sociedade Propagadora da Instrução Pública ou dos donos dos casarões da Rua da Aurora irão regularizar imóveis, pagar IPTUS e evitar desabamentos que podem levar pessoas à morte?
Parte da nota emitida pela PCR diz: “trata-se de um estabelecimento comercial sem alvarás de localização e funcionamento, situado em Zona Especial de Preservação do Patrimônio Histórico/Cultural (ZEPH-SPR), com atividade potencialmente geradora de incômodo à vizinhança (APGI) e com extensa ocupação irregular do logradouro público – palco e mesas”.
Eu grifei a parte da geração de incômodo na vizinhança porque ao redor do pagode quase não há prédios ou casas residenciais. Fique evidente que ninguém tem dúvida de que o estabelecimento precisa cumprir a lei, mas aplicá-la exige equidade.
Afinal, quando a Sociedade Propagadora da Instrução Pública ou dos donos dos casarões da Rua da Aurora irão regularizar imóveis, pagar IPTUS e evitar desabamentos que podem levar pessoas à morte? De que “geração de incômodo” afinal estamos falando?
(A poucos metros do Pagode, outro edifício histórico, o Liceu de Artes e Ofícios, de propriedade da Universidade Católica de Pernambuco, cai aos pedaços).
A PCR, em resposta às perguntas enviadas pelo The Intercept Brasil (diversas não diretamente respondidas, confira a íntegra no final do texto) diz que “reconhece a importância cultural do espaço”, e que o “estabelecimento acumula várias autuações junto à Secretaria Executiva de Controle Urbano por: construção irregular de banheiro no passeio público, colocação de lona em logradouro público, ocupação de vias com mesas e cadeiras e funcionamento sem alvará.”
TÁ TUDO LINDO. NO INSTAGRAM
No momento em que se completam dez anos do Movimento Ocupe Estelita e o grupo se reorganiza para celebrar a data e se rearticular, o centro do Recife, assim como o de centenas de outras cidades do país, parecem ainda mais abandonados que antes.
Efeitos da pandemia, claro, mas também da concentração de ações urbanísticas e de segurança em áreas específicas e falta de investimento real.
Na capital pernambucana, o foco é o entorno do Marco Zero, onde foi montado o mega palco no Carnaval, essa jóia da coroa de uma gestão que gastou incríveis R$ 51,2 milhões somente em campanhas publicitárias em 2022. Mas no mesmo período, gastou somente R$ 4 milhões com, adivinhem, habitação. Uma audiência pública sobre o tema mostrou que 80% dos gastos foram para a autopromoção da prefeitura.
A mesma prefeitura informou ao The Intercept Brasil que está estruturando uma Parceria Público-Privada (PPP) voltada à locação social, o programa Morar no Centro. De acordo com o órgão, serão cerca de 1.128 unidades habitacionais na área central da cidade (Santo Antônio, São José, Boa Vista e Cabanga), todas voltadas para famílias com rendas de um até três e meio salários mínimos.
Não se sabe, porém, como o projeto vai ser viabilizado, quando custará, quando começa e quando termina. Torço que aconteça, uma vez que Recife, assim como muitas cidades brasileiras, é aquela que era ou poderia ser.
Torço ainda que o festejado complexo de escolas públicas anunciado por Raquel Lyra saia do papel, afinal o Estado desembolsou R$ 80 milhões pela área do antigo colégio Americano Batista. Tentei várias vezes falar sobre o tema com o Governo do Estado, sem sucesso.
O projeto anunciado de maneira atribulada nunca foi apresentado, e uma fonte que fez parte do governo anterior me assegurou que a compra se deu principalmente por conta da pressão de um empresário local sobre o governo Lyra: gigante do negócio de shoppings centers no Nordeste, ele quis impedir a construção de um centro de compras concorrente justamente na área central da cidade.
Nos resta cobrar e observar – seria excelente um grupo de dados nacional para analisar quanto as gestões públicas gastam com projetos logo jogados na lata do lixo. Mas com tanto dinheiro sendo gasto em publicidade para mostrar cidades que só existem nas redes sociais, temo que logo nossos prédios históricos mais antigos serão os redes de farmácias. E não vai ter cabelo nevado ou dancinha no Tik Tok que vá esconder isso.
Em nota, a Fundarpe informou ao The Intercept Brasil que apenas é responsável pela avaliação da proposta elaborada pelo escritório de arquitetura Jorge Passos.
Em nota, o Porto Digital informou que o Termo de Cessão de Direito de Uso de Bem Imóvel não foi formalizado e que após diversas tratativas com os órgãos competentes verificou a impossibilidade de aprovação dos parâmetros construtivos necessários à viabilidade econômico-financeira, o que a impossibilitou a cessão do imóvel.
Questionada pelo The Intercept Brasil, a Prefeitura de Recife respondeu que faz vistorias regulares, que investe no patrimônio histórico e reafirmou as razões já apresentadas para o fechamento do Pagode do Didi, além de outras explicações que você pode ler aqui.
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