Manifestantes palestinos queimam pneus durante um protesto contra repetidos ataques nos pátios da Mesquita de Al-Aqsa, perto da cerca com Israel, a leste da Cidade de Gaza. (Foto: Hashem Zimmo/Thenews2/Folhapress, 22/09/2023)

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New York Times orienta jornalistas a não falarem em ‘genocídio’ e ‘massacre’ em Gaza

Em memorando interno obtido pelo Intercept, o Times orienta jornalistas a evitarem certos termos "inflamados", mesmo reconhecidos pelo direito internacional, como "territórios ocupados", e só cogita chamar de "terroristas" os ataques palestinos.

Manifestantes palestinos queimam pneus durante um protesto contra repetidos ataques nos pátios da Mesquita de Al-Aqsa, perto da cerca com Israel, a leste da Cidade de Gaza. (Foto: Hashem Zimmo/Thenews2/Folhapress, 22/09/2023)

O New York Times orientou os jornalistas que cobrem a guerra de Israel na Faixa de Gaza a restringirem o uso dos termos “genocídio” e “limpeza étnica”, e a “evitarem” usar a expressão “território ocupado” para descrever as terras palestinas, de acordo com a cópia de um memorando interno obtida pelo Intercept dos EUA.

O memorando também instrui os jornalistas a não usarem a palavra Palestina, “exceto em casos muito raros”, e a evitarem o termo “campos de refugiados” para descrever as regiões de Gaza historicamente ocupadas por palestinos expulsos de outras partes da Palestina durante as guerras árabe-israelenses anteriores. Essas regiões são reconhecidas pela ONU como campos de refugiados, e abrigam centenas de milhares de refugiados registrados.

O documento, redigido pela editora de normas do Times, Susan Wessling, pelo editor internacional, Philip Pan, e por seus assistentes, “fornece orientações sobre alguns termos e outras questões com as quais lidamos desde o início do conflito, em outubro”.

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Embora o documento seja apresentado como um direcionamento para manter princípios jornalísticos objetivos na cobertura da guerra de Gaza, vários funcionários do jornal disseram ao Intercept que parte do conteúdo mostra indícios da deferência do jornal com as narrativas israelenses.

“Acho que é o tipo de coisa que parece lógica e profissional se você não tiver nenhum conhecimento sobre o contexto histórico do conflito palestino-israelense”, disse uma fonte da redação do Times, que solicitou anonimato por medo de represálias, sobre o memorando que trata de Gaza. “Mas se você sabe, fica claro o quanto ele é favorável a Israel.”

Distribuída inicialmente aos jornalistas do Times em novembro, a orientação, que reuniu e ampliou diretrizes de estilo anteriores sobre o conflito palestino-israelense, foi regularmente atualizada ao longo dos meses seguintes. Ela representa uma janela interna para o pensamento dos editores internacionais do Times enquanto enfrentavam as convulsões dentro da redação em torno da cobertura do jornal sobre a guerra de Gaza.

“Elaborar orientações como essa para garantir precisão, consistência e nuance na forma de cobrir as notícias é a prática de rotina”, disse Charlie Stadtlander, representante do Times. “Em todas as nossas reportagens, inclusive em eventos dessa complexidade, temos o cuidado de garantir que as nossas escolhas de linguagem sejam sensíveis, atuais e claras para o nosso público.”

Questões sobre orientação de estilo fazem parte de uma miríade de cisões internas sobre a cobertura de Gaza pelo New York Times. Em Janeiro, o Intercept publicou uma reportagem sobre as divergências na redação do Times por questões envolvendo uma matéria investigativa que tratava de violência sexual sistemática no ataque de  7 de outubro. O vazamento deu origem a uma investigação interna bastante incomum. A empresa enfrentou duras críticas por supostamente perseguir funcionários com ascendência do Oriente Médiou ou Norte da África, o que o alto escalão do Times negou. Na segunda-feira, o diretor-executivo Joe Kahn informou à equipe que a investigação do vazamento havia sido concluída sem sucesso.

Debates por WhatsApp

Quase imediatamente após os ataques de 7 de outubro e o lançamento da guerra de Israel, buscando fazer terra arrasada em Gaza, as tensões sobre a cobertura do jornal começaram a fervilhar dentro da redação. Alguns funcionários relatam que o jornal parecia estar se esforçando para acatar a narrativa de Israel sobre os eventos, e não estava sequer aplicando os padrões na cobertura. As discussões começaram a ser fomentadas no Slack interno da empresa e em outros grupos de conversa.

As discussões entre os jornalistas no grupo de WhatsApp administrado pela equipe de Jerusalém, que em dado momento chegou a incluir 90 repórteres e editores, ficaram tão intensas que Pan, o editor internacional, precisou intervir.

“Precisamos melhorar a comunicação entre nós enquanto damos as notícias, para que nossas discussões sejam mais produtivas e nossas divergências causem menos distração”, escreveu Pan em 28 de novembro, em uma mensagem de WhatsApp que foi vista pelo Intercept e mencionada inicialmente pelo Wall Street Journal. “Naquilo que tem de melhor, esse canal vem sendo um espaço rápido, transparente e produtivo para colaborar em uma história complexa e em rápida evolução. No que tem de pior, é um fórum tenso onde as perguntas e os comentários podem soar pessoais e acusatórios.”

Pan determinou, sem meias palavras: “não usem este canal para trazer preocupações sobre a cobertura”.

Dentre os tópicos em discussão no grupo de WhatsApp da equipe de Jerusalém e nas conversas do Slack, analisados pelo Intercept e confirmados com várias fontes da redação, estavam os ataques israelenses contra o hospital Al-Shifa, as estatísticas sobre mortes de palestinos, as alegações de conduta genocida por Israel, e o padrão do presidente Joe Biden de divulgar alegações não confirmadas do governo israelense como fatos. (Pan não respondeu aos pedidos de comentários.)

Várias das mesmas discussões foram abordadas na orientação de estilo elaborada especificamente para Gaza pelo Times, e foram objeto de intensa análise pública.

“Existem padrões específicos aplicados à violência cometida por Israel. Os leitores já perceberam e eu compreendo a frustração deles.”

“Não é raro que os veículos de notícias criem orientações de estilo”, disse outra fonte da redação do jornal, que também solicitou anonimato. “Mas existem padrões específicos aplicados à violência cometida por Israel. Os leitores já perceberam e eu compreendo a frustração deles.”

“Palavras como ‘matança'”

O memorando destaca orientações sobre uma série de frases e termos. “A natureza do conflito levou ao uso de uma linguagem inflamada e a acusações incendiárias de todos os lados. Deveríamos ter muito cuidado ao usar esse tipo de linguagem, mesmo entre aspas. Nosso objetivo é fornecer informações claras e precisas, e uma linguagem acalorada pode muitas vezes obscurecer os fatos em vez de esclarecer”, diz o memorando.

“Palavras como ‘matança’, ‘massacre’ e ‘carnificina’ muitas vezes transmitem mais emoção que informação. Pense bem antes de usá-la em nossa própria voz”, diz o memorando. “Conseguimos articular por que estamos aplicando essas palavras a uma situação específica, e não a outra? Como sempre, precisamos nos concentrar na clareza e na precisão, descrever o que aconteceu, em vez de usar um rótulo.”

Embora o memorando descreva um esforço de não usar linguagem incendiária para descrever as mortes “de todos os lados”, na cobertura do Times sobre a guerra em Gaza esse tipo de linguagem vem sendo reiteradamente usada para descrever os ataques contra israelenses pelos palestinos, e quase nunca no caso dos assassinatos em larga escala de palestinos por Israel.

Em janeiro, o Intercept publicou uma análise da cobertura da guerra pelos jornais New York Times, Washington Post e Los Angeles Times, entre 7 de outubro e 24 de novembro, um período anterior, na maior parte, à elaboração das orientações do NYT. A análise do Intercept mostrou que os principais jornais reservaram termos como “matança”, “massacre” e “terrível” quase exclusivamente para os civis israelenses mortos por palestinos, não para os civis palestinos mortos nos ataques de Israel.

A análise constatou que, até 24 de novembro, o NYT havia descrito as mortes de israelenses como “massacre” 53 vezes, e as de palestinos, apenas uma vez. A proporção para o uso de “matança” foi de 22 para 1, mesmo quando o número documentado de palestinos mortos subiu para cerca de 15.000.

A mais recente estimativa do total de mortos entre os palestinos supera os 33 mil, incluindo pelo menos 15 mil crianças. É provável inclusive que esse número esteja subestimado, em razão do colapso da infraestrutura de saúde de Gaza e das pessoas desaparecidas, muitas das quais se imagina que tenham morrido nos escombros deixados pelos ataques israelenses dos últimos seis meses.

Debates delicados

O memorando do Times trata de algumas das questões de linguagem mais carregadas e disputadas no contexto do conflito entre israelenses e palestinos. A orientação detalha, por exemplo, o uso da palavra “terrorista”, que o Intercept já havia mostrado em uma reportagem anterior que figurava no centro de um acalorado debate na redação.

“É adequado usar ‘terrorismo’ e ‘terrorista’ para descrever os ataques de 7 de outubro, que incluíram deliberadamente assassinato e sequestro de civis”, segundo o memorando objeto do vazamento. “Não deveríamos evitar essa descrição dos acontecimentos ou dos agressores, especialmente quando oferecermos contexto e explicações.”

A orientação também recomenda aos jornalistas que “evitem ‘combatentes’ quando estiverem se referindo ao ataque de 7 de outubro; o termo sugere uma guerra convencional, não um ataque deliberado contra civis. E tenham cuidado ao usar ‘militantes’, que pode ser interpretado de diferentes formas e acabar confundindo os leitores.”

No memorando, os editores dizem aos jornalistas do Times: “não precisamos atribuir um único rótulo ou nos referir ao ataque de 7 de outubro como ‘ataque terrorista’ em todas as situações; o melhor uso da palavra é para descrever especificamente os ataques contra civis. Devemos ter parcimônia e podemos variar a linguagem usando outros termos e descrições precisos: um ataque, uma agressão, uma incursão, o ataque mais letal a Israel em décadas etc. Da mesma forma, além de ‘terroristas’, podemos variar os termos usados para descrever os integrantes do Hamas que realizaram o ataque: atacantes, agressores, atiradores.”

O Times não caracteriza os reiterados ataques de Israel contra os palestinos como “terrorismo”, mesmo quando os civis são o alvo. Isso também se aplica aos ataques de Israel contra locais civis protegidos, inclusive hospitais.

O Times não caracteriza os reiterados ataques de Israel contra os palestinos como “terrorismo”, mesmo quando os civis são o alvo.

Em uma seção com o título “‘Genocídio’ e linguagem inflamada”, a orientação diz: “‘genocídio’ tem uma definição específica no direito internacional. Ao usar nossa própria voz, só devemos empregar o termo no contexto desses parâmetros jurídicos. Devemos estabelecer também alto nível de exigência ao permitir que outros o utilizem como acusação, seja ou não em citações, a não ser que estejam apresentando um argumento substancial a partir da definição legal.”

Em relação a “limpeza étnica”, o documento considera “outro termo historicamente carregado”, instruindo os repórteres: “caso alguém esteja fazendo essa acusação, devemos pressionar para que dê mais detalhes, ou oferecer contexto adequado”.

Contrariando normas internacionais

Já nos casos em que é preciso descrever “território ocupado” e o status dos refugiados em Gaza, as diretrizes de estilo do Times contrariam as normas estabelecidas pela ONU e pelo direito humanitário internacional.

Sobre o termo “Palestina”, amplamente usado tanto para descrever o território, quanto o estado reconhecido pela ONU, o memorando do Times contém instruções contundentes: “não usar em indicações de data e origem, texto comum, ou manchetes, exceto em casos muito excepcionais, como quando a Assembleia Geral da ONU promoveu a Palestina a estado observador não membro, ou em referências à Palestina histórica”. A orientação do NYT se assemelha à do manual de estilo da Associated Press.

O memorado orienta os jornalistas a não usarem a expressão “campos de refugiados” para descrever assentamentos de refugiados já estabelecidos há muito tempo em Gaza. “Embora denominados campos de refugiados, os centros de refugiados em Gaza são bairros desenvolvidos e densamente povoados que antecedem a guerra de 1948. Refira-se a eles como bairros, ou áreas, e se for necessário mais contexto, explique como foram historicamente chamados de campos de refugiados.”

A ONU reconhece oito campos de refugiados na Faixa de Gaza. Até o ano passado, antes do começo da guerra, essas áreas abrigavam mais de 600 mil refugiados registrados. Muitos são descendentes daqueles que fugiram para Gaza após serem expulsos à força de suas casas na Guerra árabe-israelense de 1948, que marcou a fundação do estado judeu e a expropriação em massa de centenas de milhares de palestinos.

O governo israelense é hostil há muito tempo ao fato histórico de que os palestinos mantêm status de refugiados, porque isso significa que eles foram desalojados de terras para onde têm o direito de regressar.

Desde 7 de outubro, Israel vem repetidamente bombardeando campos de refugiados em Gaza, como Jabaliya, Al Shati, Al Maghazi, e Nuseirat.

A advertência contra o uso do termo “territórios ocupados” (…) oculta a realidade do conflito, e reforça a insistência dos EUA e de Israel de que ele teria começado em 7 de outubro.

As instruções do memorando sobre o uso da expressão “territórios ocupados” dizem: “quando possível, evite o termo e especifique (p. ex., Gaza, Cisjordânia, etc), pois cada um tem um status ligeiramente diferente”. A ONU, assim como grande parte do mundo, considera que Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental são territórios palestinos ocupados, tomados por Israel na Guerra árabe-israelense de 1967.

A advertência contra o uso do termo “territórios ocupados”, para um funcionário do Times, oculta a realidade do conflito, e reforça a insistência dos EUA e de Israel de que ele teria começado em 7 de outubro.

“Você está essencialmente tirando da cobertura a ocupação, que é o núcleo real do conflito”, disse a fonte da redação. “É como se dissessem, ‘Ah, não vamos dizer ocupação, porque pode parecer que estamos justificando um ataque terrorista'”.

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