“Me levaram lá pra cima, me amarraram no colchão e ela colocou uma meia na minha boca”, diz Miguel, um menino de 12 anos, em um áudio obtido pelo Intercept Brasil. Ele se refere a duas funcionárias da Casa do Piá 1, abrigo para menores em Curitiba onde passou a morar depois que foi tirado da família por ordem judicial.
Miguel foi destituído do pai e da mãe porque ambos eram dependentes químicos. Junto dele, na Casa do Piá 1, vivem meninos de 7 a 14 anos com históricos de violência variados. Muitos sofreram abuso sexual ou maus-tratos. Alguns cumprem medidas socioeducativas. Grande parte apresenta transtornos do neurodesenvolvimento, como autismo. Outros não têm laudo psiquiátrico.
E, agora que estão sob a tutela do estado, essas crianças e adolescentes também são alvos de violência institucional, mostram áudios, fotos e vídeos, além de relatos, obtidos pelo Intercept.
Atualmente, a Prefeitura de Curitiba possui cinco abrigos institucionais que acolhem meninos de 7 a 17 anos afastados de suas famílias ou responsáveis por ordem da Justiça, geralmente porque sofreram alguma violação de direito que justificasse a destituição do poder familiar. O serviço é administrado pela Fundação de Ação Social, a FAS, órgão da Prefeitura.
As crianças com deficiência costumam ser encaminhadas para a Casa do Piá 1, que atende somente meninos de até 14 anos, muitas vezes em condições precárias. Uma das fotos mostra uma criança dormindo encolhida no chão, devido à superlotação da casa, que tem capacidade para receber 19 menores, mas já chegou a abrigar 23.
Camilla Varella, advogada especializada em direito das pessoas com deficiência, diz que o caso é complexo porque há indícios de violações tanto do Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, quanto da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência .
“Eu acho que deveria, inclusive, ser denunciado para a ONU, porque está descumprindo absolutamente a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência”, argumenta a advogada.
Em entrevista ao Intercept, dois servidores alegam que os problemas são estruturais e se estendem às condições de trabalho nas Casas do Piá. O Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de Curitiba afirma que já recebeu diversas denúncias de funcionários desses abrigos, como falta de estrutura, falta de recursos humanos, sobrecarga e assédio. Não à toa, o adoecimento psicológico é uma queixa comum entre os trabalhadores.
‘Fica nesse chão aí, seu bosta’
Em outro áudio obtido pelo Intercept, uma educadora grita com Davi, uma criança autista de 10 anos: “Se faz de maluco! É mais esperto que todo mundo aqui nessa casa. Fica nesse chão aí, seu bosta”.
O menino apresenta problemas na fala e esboça poucas palavras para se defender. Dois minutos depois, outra funcionária comunica aos colegas que Davi está com a boca machucada: “Ele se jogou no chão aqui e tiveram que levar arrastado”.
Esta não foi a única vez que Davi se viu em uma situação de risco. Ele foi destituído da família porque o pai e a mãe eram dependentes químicos e estavam em situação de rua.
Em um vídeo gravado por um funcionário da Casa do Piá 1, Samuel, outro menino autista de 11 anos, dá soquinhos na própria nuca e conta que já viu uma cuidadora bater na cabeça do colega Davi. O Intercept não publicará os materiais para preservar as vítimas.
Pelo fato de não conseguirem contar o que está acontecendo, a tendência é que o abuso aconteça mais vezes.
A diretora de uma das escolas onde Davi estudou enquanto frequentava o abrigo relatou ao Intercept que ele dormia muito durante as aulas – ela tinha a impressão de que o único lugar em que o menino podia descansar era ali.
A diretora pediu que seu nome e o da escola não fossem divulgados, pois tem medo de prejudicar a imagem da instituição.
Após notar ferimentos no aluno, a diretora tentou dialogar com a Casa do Piá 1. Ao ouvi-la, uma educadora social que trabalhava no abrigo não descartou a possibilidade de que Davi sofresse abusos, pois os funcionários não conseguiam olhar todas as crianças o tempo todo.
A reportagem também obteve fotos de outras duas crianças autistas que vivem na Casa do Piá 1 com ferimentos nas costas.
A diretora chegou a solicitar o prontuário de Davi, para que ele pudesse ser atendido pela neuropediatra da escola, mas a Fundação de Ação Social se negou a colaborar. Foi quando a escola notificou extrajudicialmente o abrigo, pedindo providências em relação à saúde do aluno. Como resposta, a Casa do Piá 1 transferiu o menino para outra escola.
Não demorou muito para que os professores da próxima escola também começassem a ligar para o abrigo e enviar bilhetes questionando o comportamento de Davi, que alternava entre agressividade e sonolência excessivas.
“É todo um sistema que acaba oprimindo essas crianças e uma hora elas explodem. Elas colocam essa agressividade que elas recebem”, opina um servidor da Fundação de Ação Social que atua na Casa do Piá 1, referindo-se ao quadro de Davi.
A psicóloga Cláudia Sanini, especializada em autismo, explica que os problemas de fala, comunicação e linguagem são característicos de pessoas com transtorno do espectro autista, o que as torna mais suscetíveis a abusos. “Pelo fato de muitas vezes não denunciarem, não conseguirem contar o que está acontecendo, a tendência é que o abuso aconteça mais vezes”, ela diz.
É por isso que o comportamento da criança autista deve ser observado com especial atenção – alguns sinais podem indicar que ela está em risco. “Eles vão emitir uma mensagem de que algo não está bem se desorganizando, ficando mais agressivos, mais arredios”, descreve a especialista.
Crianças machucadas e dormindo no chão: 26 procedimentos de investigação já foram abertos – mas quase todos terminaram arquivados.
Denúncias recorrentes
O Intercept conversou com dois servidores da Fundação de Ação Social sob condição de anonimato. Eles disseram que não receberam treinamento para o atendimento nas Casas do Piá. Além disso, relataram ansiedade e depressão em decorrência da atividade profissional.
Ambos afirmam que já denunciaram os abusos contra menores à coordenação da Casa do Piá 1 e aos órgãos competentes, como o Ministério Público do Paraná e o Disque 100, do Ministério dos Direitos Humanos, mas sentem medo de tomar outras medidas, porque as retaliações – como transferências para unidades de atendimento da Fundação de Ação Social ainda mais problemáticas e distantes de onde moram – são comuns a quem se opõe ao serviço.
Entre 2021 e 2024, a 2ª Promotoria de Justiça da Criança e do Adolescente de Curitiba, do Ministério Público do Paraná, abriu 26 procedimentos administrativos para apurar denúncias relacionadas às Casas do Piá. Em geral, são descritos maus-tratos praticados por funcionários, violência entre adolescentes, falta de veículos, sobrecarga do serviço e transferência de abrigo como forma de punição ao abrigado.
Desses 26 procedimentos, 10 dizem respeito à Casa do Piá 1 e apenas dois ainda não foram arquivados: um sobre a superlotação da casa e recursos humanos incompatíveis com o número de acolhidos, e outro sobre as providências oriundas da inspeção anual realizada pelo Ministério Público em 12 de março deste ano.
O atual procurador-geral de Justiça do Paraná, Francisco Zanicotti, foi titular da 2ª Promotoria de Justiça da Criança e do Adolescente de Curitiba até março de 2024. Ele explica ao Intercept que o Ministério Público fiscaliza os abrigos e busca resolver os problemas administrativamente, sem encaminhar os casos à justiça, pois a conciliação é mais ágil e a promotoria mantém uma boa relação com a Fundação de Ação Social.
Zanicotti cita um caso ocorrido em 2022, quando o órgão recebeu uma denúncia de maus-tratos contra um menino com autismo abrigado na Casa do Piá 1. A Polícia Civil e a Fundação de Ação Social foram notificadas, e os dois educadores envolvidos no caso foram transferidos para outras unidades da Fundação de Ação Social.
Existe apenas uma ação civil pública relacionada às Casas do Piá em andamento. O caso, por envolver menores, tramita em segredo de justiça desde 2018.
Em nota enviada por sua assessoria de imprensa, a Fundação de Ação Social afirmou que “não tem registro de qualquer violência ou maus-tratos contra crianças e adolescentes atendidos em suas unidades de acolhimento institucional”.
O órgão disse que as Casas do Piá possuem coordenadores que acompanham a rotina de cada unidade e são supervisionadas não só pela Fundação, mas pelo Ministério Público e pelo Conselho Tutelar.
“Qualquer irregularidade ou falha do serviço que possa ocorrer em uma unidade da FAS é rigorosamente apurada. O fluxo prevê, inicialmente, o levantamento de informações e elaboração de um relatório circunstanciado. Esse documento é então encaminhado para a Comissão Permanente de Sindicância, que tem competência para apuração dos fatos e responsabilização dos atores”, acrescentou.
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