O ataque de Israel contra o Irã em 18 de abril foi recebido com um suspiro de alívio perigosamente precoce, tanto pela imprensa, quanto pelo governo dos EUA, porque de alguma forma a “guerra” em grande escala teria sido evitada.
Veículos como o New York Times logo descreveram o ataque como “moderado” e “limitado” em alcance, destacando declarações do Irã de que teria sido lançado de dentro das fronteiras iranianas, e teria usado pequenos drones no lugar de caças. Pouco tempo depois, foi revelado que o ataque israelense incluíra também um míssil de cruzeiro furtivo, lançado de longa distância para não perturbar os novos parceiros árabes de Israel.
Mas esta é a verdadeira cara da guerra atualmente: algumas vezes, uma saraivada de 300 mísseis e drones; outras, um ataque enxuto, direcionado, e executado em segredo. Já ficaram para trás os tempos dos vastos exércitos conquistadores e dos confrontos militares tradicionais entre dois oponentes. Enquanto os especialistas, os governos e a imprensa se preocupam apenas com um tipo de guerra, que já está obsoleto, não conseguem enxergar a guerra bem à nossa frente.
Esse equívoco já atingiu até o governo americano.
“A minimização dos ataques diretos em seu território pode indicar que a República Islâmica não tem a intenção, ou a capacidade, de acompanhar sua arrogância com poderio militar declarado”, diz um comunicado do Departamento de Estado dos EUA, elaborado após o ataque e obtido pelo Intercept dos EUA. “Ao longo de semanas de conflitos militares sem precedentes entre Irã e Israel (…) as autoridades iranianas parecem empenhadas em evitar um acirramento.”
Na quinta-feira, antes do ataque, o ministro das Relações Exteriores do Irã, Hossein Amir-Abdollahian, prometeu que, se Israel contra-atacasse, “nossa próxima resposta será imediata e em nível máximo”. Agora, Teerã precisa se ajustar à realidade de que um intenso contra-ataque israelense não aconteceu, e talvez nunca aconteça.
Enquanto a imprensa e o mundo aguardam uma guerra em grande escala entre Irã e Israel, e se preocupam até com uma escalada nuclear, uma das grandes realidades da guerra moderna está sendo ignorada: a Terceira Guerra Mundial já está em curso. Não, não se trata de impérios marchando com exércitos pelos países, conquistando continentes. E também não são milhões de jovens homens (e, agora, também mulheres) metidos em uniformes em escalas de quase 100 anos atrás. E não, na maioria das sociedades onde a guerra é uma constante, a população nem precisa sentir as dores da guerra, exceto pelo fato de que os militares dominam tudo e tomam os recursos de todo o resto: programas de combate à pobreza, alimentação, saúde, habitação, transporte, mudanças climáticas.
A 3ª Guerra Mundial na verdade está por toda parte, um planeta incendiado pelos conflitos armados e assolado pelo comércio de armas, um diagrama de Venn da morte em sobreposição, que engole o mundo, e uma farra constante para os “especialistas” em segurança nacional e o complexo militar-industrial.
A 3ª Guerra Mundial na verdade está por toda parte, um planeta incendiado pelos conflitos armados e assolado pelo comércio de armas (…).
Façamos um giro pelo campo de batalha.
No Oriente Médio, os EUA, a Turquia, o Iraque e até o Irã têm pontos de apoio na Síria, enquanto sua guerra civil interna continua sem descanso. E tudo isso passa despercebido na maior parte do tempo, enquanto as pessoas procuram em outros lugares batalhas no estilo da Segunda Guerra Mundial. Milícias independentes; iranianas; e financiadas, apoiadas ou inspiradas pelo Irã, na Síria e no Iraque, perseguem tropas dos EUA na Síria, no Iraque, e agora na Jordânia. Os Estados Unidos bombardeiam, mas Israel e Turquia também, além de outros parceiros silenciosos de Washington na guerra contra Irã, Síria, o Estado Islâmico, e o Hezbollah. A luta contra o Estado Islâmico, denominada Operação Resolução Inerente, envolve, segundo os EUA, mais de 80 “parceiros” combatendo não apenas na Síria e no Iraque, mas também no Afeganistão e na Líbia. A aliança envolve mais de 80 países, mas os EUA detestam nomear todos eles, principalmente os operadores “especiais” aliados, que trabalham clandestinamente nos locais.
O que sabemos é que dez países estiverem envolvidos em ataques aéreos contra alvos hutis no Iêmen, incluindo EUA, Reino Unido, Austrália, Bahrein, Canadá, Dinamarca, Alemanha, Países Baixos, Nova Zelândia, e Coreia do Sul. Como em tantos outros conflitos, não está totalmente claro quem bombardeou quem, ou de onde, nem quem são os outros integrantes do elenco de apoio. Os EUA bombardeiam a partir de porta-aviões e países do Golfo Pérsico, além de Kwait e Jordânia, e possivelmente até da Arábia Saudita e de Omã. Mas o que caracteriza a Terceira Guerra Mundial é manter segredos, então não se sabe.
No Mar Vermelho, esses mesmos países, além de França, Itália, Noruega, Seicheles, Espanha, Grécia, Finlândia, Austrália e Sri Lanka, uniram-se para rechaçar os ataques marítimos dos hutis. Ainda mais países estariam supostamente participando da aliança em segredo, dadas as sensibilidades que cercam o apoio a Israel durante a guerra contra o Hamas. Mas há também a guerra contra os piratas, e a guerra contra a proliferação nuclear, e a guerra contra o contrabando de armas, e a guerra no Oriente Médio até contra as drogas, todas levadas a cabo por uma enorme frota marítima que envolve dezenas de países.
Enquanto a guerra de Israel em Gaza, e suas idas e vindas com o Irã, estão no topo das paradas de sucesso por ora, na Ucrânia uma guerra de trincheiras e um impasse se arrastam há mais de dois anos. Ali também todos os olhares buscam uma espécie de vitória ou derrota definitivas, mas a 3ª Guerra Mundial é mais definida pelos ataques regulares da Ucrânia ou de seus representantes contra alvos dentro do território da Mãe Rússia, ataques que Moscou minimiza. Os russos que combatem do lado ucraniano agora estão fazendo incursões regulares nas regiões de Belgorod e Kursk, na Rússia. Ao mesmo tempo, a verdadeira 3ª Guerra Mundial é a Otan já em guerra contra a Rússia, intensificando suas atividades no entorno do inimigo, ampliando as fileiras, investindo em suas forças armadas, e fornecendo armas para a Ucrânia. Simultaneamente, os Estados Unidos têm destacamentos da Noruega à Bulgária, e nos últimos dois anos construíram uma nova base importante na Polônia. Irã e Coreia do Norte, por outro lado, desempenharam seu papel de transportar drones, mísseis e projéteis de artilharia para o esforço de guerra russo.
Embora a flagrante invasão russa aparentemente incorpore o conceito antiquado de ocupação por exércitos e a 2ª Guerra Mundial, a realidade é que a Ucrânia nunca se tornou a “maior batalha de tanques” de todos os tempos, como alguns previam, não “escalou” para uma guerra nuclear, nem sequer foi decisiva.
A guerra na Ucrânia é certamente o acontecimento que mudou o mundo nos últimos cinco anos, mas mesmo ali, sem mais fronteiras atravessadas, sem acirramento, e sem troca de tiros direta entre Rússia e Otan, algumas grandes lições podem ser aprendidas. O confronto entre exércitos é uma ilusão. A 3ª Guerra Mundial não consiste em um exército conquistador atravessando um continente. Nunca houve mais do que 300 mil soldados no campo de batalha na Ucrânia, em nenhum momento; na 2ª Guerra Mundial, foram quase 10 milhões se enfrentando diariamente (e cerca de 125 mobilizados no total). Devido à maior letalidade das armas, as baixas militares na Ucrânia têm sido enormes. No entanto, a maior parte dos combates terrestres vem acontecendo em âmbito de companhia, ou até de pelotão: reunir muitos soldados no mesmo lugar é perigoso demais no mundo de hoje. E tudo isso se desenrolou sem que nem a Rússia, nem a Ucrânia tivessem condições de aproveitar todo seu poder aéreo, como fazem os Estados Unidos. Além da fria ofensiva de Vladimir Putin, que usou os jovens russos como bucha de canhão, poucos países querem combater dessa forma, e preferem ataque aéreos ou de mísseis (e agora, drones) de longa distância.
O confronto entre exércitos é uma ilusão. A 3ª Guerra Mundial não consiste em um exército conquistador atravessando um continente.
O sul da Ucrânia, o Azerbaijão e a Armênia continuam em ebulição. No ano passado, o Azerbaijão atacou a república separatista de Artsakh. Com o apoio da Turquia e de armas israelenses, o Azerbaijão tentou eliminar permanentemente o enclave étnico armênio, e conseguiu empurrar dezenas de milhares de civis para os países vizinhos.
Além do Golfo de Áden e do Oceano Índico, o Mar da China Meridional também está repleto de conflitos marítimos. As constantes passagens navais chinesas em torno das fronteiras de Taiwan são acompanhadas por situações limítrofes com a Coreia do Sul, o Japão e as Filipinas (e os Estados Unidos). Enquanto isso, a guerra civil em Myanmar continua sem trégua.
Na península da Coreia, a Coreia do Norte continua com os testes nucleares e os disparos sem aviso de mísseis balísticos no oceano, e as tensões são um constante ruído de fundo de jogos de guerra, incursões militares e incidentes de fronteira. Milhares de baterias de artilharia se encaram de cada lado da Zona Desmilitarizada, enquanto a Coreia do Sul aponta dedos para a tecnologia norte-coreana usada nos mísseis iranianos lançados contra Israel. E, claro, os Estados Unidos e outros “parceiros” estão em atividade no local.
No mundo da suposta “ordem internacional”, Índia e Paquistão continuam a brigar pela fronteira compartilhada, como vêm fazendo há décadas. E Índia e China se encaram, outro ponto de atenção que poderia trazer a 3ª Guerra Mundial para alguns, mas que na realidade já está em curso.
Na África, forças militares, terroristas, militantes, mercenários, milícias, bandidos, piratas e separatistas estão em atividade, segundo o Projeto de Dados de Eventos e Locais de Conflito Armado, em Angola, Burkina Faso, Camarões, República Centro-Africana, Chade, República Democrática do Congo (RDC), Etiópia, Quênia, Madagascar, Mali, Moçambique, Níger, Nigéria, Ruanda, Sudão do Sul, e Sudão. China e Rússia disputam bases e influência (a China já tem uma base no Djibuti). O Grupo Wagner, russo, está em atividade na África e envolvido em combate, e, nos últimos dois meses, as forças militares de Ruanda atacaram alvos na RDC, e o Marrocos realizou ataques de drone contra combatentes da Frente Polisário na fronteira com o Saara Ocidental.
No continente africano, EUA, França e Reino Unido já estiveram envolvidos em combates em expansão, porém, clandestinos, supostamente contra terroristas islâmicos, enquanto o continente arde por toda parte e ninguém pode reivindicar vitórias de longo prazo na dupla frente de combate ao terrorismo e manutenção da paz. As tropas americanas que operam em Níger estão presas no país, pois a junta que está no poder, treinada pelos EUA, alega que a presença dos americanos é ilegal. Os Estados Unidos também vêm há anos bombardeando alvos na Somália, e a missão da União Africana na Somália está ativamente envolvida no combate ao grupo militante al-Shabab.
As forças estadunidenses continuam a se espalhar pela América Latina e pelo Caribe, usando cruzadores equipados com mísseis para interceptar submarinos do tráfico de drogas, enviando equipes antiterrorismo da marinha ao Haiti, completamente desestabilizado, e agilizando a exportação de helicópteros, aeronaves e drones navais para a Guiana, enquanto a vizinha Venezuela olha avidamente para suas reservas de petróleo. Altos funcionários do governo Biden já cogitaram enviar tropas para o perigoso trecho de floresta que liga a América do Sul à América Central, conhecido como Estreito de Darién, para conter o fluxo de migrantes e drogas pela fronteira do sul dos EUA.
E o que aconteceu com a neutralidade nos últimos anos? Suíça e Áustria forneceram armas à Ucrânia. Suécia e Finlândia ingressaram na Otan. Apenas os pequenos países Costa Rica, Islândia, Maurício, Panamá e Vanuatu não têm forças armadas oficiais, mas mesmo falando deles, a Islândia é um integrante muito ativo da Otan, e o Panamá é um aliado militar bem próximo dos EUA. Em se tratando de pequenos países que entram em grandes lutas, Fiji e Luxemburgo se consideram integrantes da aliança global para derrotar o Estado Islâmico.
A guerra onipresente, nossa 3ª Guerra Mundial, pinta um quadro global esmagador, e deixa pouco espaço para imaginar que algo possa ser feito em relação a isso. E não é difícil concluir que as superpotências e a “comunidade” de segurança nacional não estejam de alguma forma satisfeitas com a situação. Porém, como em qualquer vício, o primeiro passo para recuperação é admitir que se tem um problema – ou, neste caso, uma guerra mundial.
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