A mudança climática é uma realidade. Mas a legislação e as políticas públicas ainda são pensadas como se não vivêssemos no tempo de eventos extremos. E pior: os parlamentares ainda atuam para flexibilizar a proteção ambiental que temos, com pouquíssima resistência do governo Lula.
Quem diz isso é Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima. O Intercept Brasil conversou com a pesquisadora sobre o contexto que levou o Rio Grande do Sul a viver essa tragédia sem precedentes. E o que o poder público pode fazer, agora, para evitar que esse cenário se repita. ‘A crise já chegou, ela não é no futuro’, me disse Araújo.
Menos de um mês atrás, o governador Eduardo Leite, do PSDB, sancionou uma lei que flexibiliza regras ambientais para a construção de barragens em áreas de preservação permanente, as chamadas APPs. A vegetação dessas áreas são importantes porque podem ajudar a conter maiores volumes de chuva.
Além disso, o estado ignorou um plano de prevenção de 2017, que não saiu do papel, e o código florestal do estado foi alterado. “Se você flexibiliza a legislação ambiental, as consequências disso são cenas como as que estamos assistindo”, explica Araújo.
A situação foi agravada por que o Congresso Nacional aprovou, no fim de 2021, uma lei que permite aos municípios regulamentar as faixas de restrição à beira de rios, córregos, lagos e lagoas nos seus limites urbanos. Nos municípios a pressão do mercado imobiliário é maior, segundo a ambientalista, do que se a regulamentação ficasse a cargo dos órgãos federais.
E ainda pode piorar, com a aprovação do chamado ‘pacote da destruição‘ – mais de 20 projetos de lei que fragilizam a legislação ambiental – no Congresso. Nem mesmo a comoção com o caos no Rio Grande do Sul fez com que os parlamentares desistissem de pautar a votação do PL 3334/2023, que reduz de 65% para 50% a parte do território dos estados amazônicos ocupada por áreas protegidas. Os senadores querem reduzir a reserva legal de 80% para até 50%.
Para Suely Araújo, é preciso que a regulação garanta proteção efetiva, e que o Poder Executivo atue para barrar legislações destrutivas – o que não está acontecendo.
Em termos de política de adaptação, para a pesquisadora, o estado gaúcho teria que fazer a restauração florestal e da vegetação natural nas margens dos cursos d’água. “Também é importante trabalhar com uma agropecuária que não necessite desmatar tudo que está pela frente”.
Na área urbana, a adaptação climática exige um remodelamento do planejamento urbano, afastando o potencial construtivo da beira da água, excluindo as áreas de risco. “E quando não tiver jeito, tem que tirar a população da área de risco. Mas, você tem que ter uma preocupação com o direito à moradia dessas pessoas”, ela afirma.
Leia abaixo a entrevista completa.
Intercept Brasil – Tragédias não são inesperadas, mas os governos optaram por ignorar o alerta de especialistas. Queria que você comentasse o alerta da ciência sobre casos como os do Sul do Brasil.
Suely Araújo – A ciência já fez uma série de alertas, não só com este documento [Brasil 2040], mas com outros que têm apontado a tendência de na região Sul do país, na Bacia do Rio Prata, ter um volume maior de chuvas com o aumento da temperatura por conta do aquecimento global. Em contraponto, na região Norte é esperada uma redução do volume hídrico e nós estamos vendo isso ocorrer também no Pantanal.
Então, informações técnicas, dados e alertas dos cientistas estão disponíveis há bastante tempo. Informação não falta. O que falta são políticas públicas que possam minimizar os impactos desses eventos para a população porque eles continuarão a ocorrer. A mudança climática é uma realidade, não temos mais como evitar os eventos extremos.
Por que não basta só investir na Defesa Civil? Que outras respostas possíveis os governos têm deixado de lado diante dos eventos extremos?
Temos que ser mais ambiciosos em termos de mitigação, na redução das emissões de gases de efeito estufa. O Brasil é o sexto maior emissor de gás de efeito estufa no mundo quando a gente computa a mudança de uso da terra, ou seja, desmatamento. 48% das nossas emissões são causadas pelo desmatamento. Falta ambição em termos de redução das emissões.
Mas falta muita atuação também em termos de adaptação aos eventos extremos. Essas são medidas complexas, caras e envolvem todos os setores da economia. Então, em um estado como o Rio Grande do Sul, em que o modelo de ocupação do solo é, historicamente, desmatar, você cria condições que pioram a situação em momentos como esse. Você já contribui para as emissões de gás e efeito estufa quando desmata, e quando acontece um evento como esse, a água não tem “freios”. Quando você tem vegetação, ela ajuda a segurar água. Não impede a cheia, mas ajuda.
No Rio Grande do Sul, em termos de política de adaptação, teria que ser feito um processo de restauração florestal e da vegetação natural nas margens dos cursos da água, mas isso de forma intensa. Era importante trabalhar com uma agropecuária que não necessite desmatar tudo que está pela frente.
Na área urbana, a adaptação impõe um remodelamento do planejamento urbano, afastando o potencial construtivo da beira da água, excluindo as áreas de risco. E quando não tiver jeito, tem que tirar a população. Mas você tem que ter uma preocupação com o direito à moradia dessas populações, não é só sair tirando, isso não é solução. Você tem que mapear todas as áreas de risco, verificar em termos de infraestrutura o que é necessário para garantir segurança e, dependendo da área, prever a relocação da população.
Além disso, tem que planejar a parte de infraestrutura de transportes. O sistema de transporte que nós temos foi projetado para um mundo que não existe mais, que é um mundo sem esses efeitos extremos.
Os cientistas já apontaram: a crise já chegou, ela não é no futuro.
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Em abril deste ano, o governo gaúcho sancionou uma lei que permite desmatar áreas de preservação permanente, as APPs, essenciais para conter maiores volumes de chuva. Como essa iniciativa se relaciona com futuros cenários de catástrofes?
O estado do Rio Grande do Sul tem sido omisso nesse campo de políticas públicas de adaptação aos desastres. Eles têm um plano de prevenção e desastres de 2017 que não saiu do papel.
Além disso, eles alteraram o código florestal do estado e, recentemente, o governador sancionou uma lei que flexibiliza o uso das APPs ao longo dos rios. Em tese, para criar reservatórios para época de seca. O cenário é complexo, mas se você flexibiliza a legislação ambiental, as regras que exigem cuidados com matas ciliares, com as encostas, as consequências disso são cenas como as que estamos assistindo.
Em 2021, o Congresso Nacional aprovou uma lei que dá aos municípios o poder de regulamentar as faixas de restrição à beira de rios, córregos, lagos e lagoas nos seus limites urbanos. Isso foi um grande retrocesso, porque nos municípios a pressão do mercado imobiliário é enorme. E é uma tendência de redução dessas áreas de proteção.
Acho interessante falar que no Congresso Nacional os representantes do Rio Grande do Sul costumam votar, em sua maioria, para desmontar a legislação ambiental. Você tem alguns parlamentares que atuam corretamente, mas a maioria da bancada dos estados da região Sul vota pelas demandas da bancada ruralista para desregular a legislação ambiental. Então, tanto o Congresso Nacional, quanto a Assembleia Legislativa contribuíram para piorar a situação.
Quais os impactos da atuação do legislativo, que aumentou o chamado “pacote da destruição” de cinco para 25 projetos de lei – incluindo cinco que buscam desmontar o Código Florestal, acabar com a Lei de Licenciamento Ambiental e com a reserva legal na Amazônia, por exemplo? Como a gente conecta essa atuação com situações extremas como essa no Sul do país?
A política ambiental é essencialmente regulatória. O governo não tem um monte de dinheiro para sair repassando como na área de saúde. Então, temos uma política para estabelecer regras, exigir autorizações e registros. E isso incomoda o setor empresarial e seus representantes no Congresso.
O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado está no texto da nossa Constituição. E disso deriva uma série de regras, que passaram a ser vistas como entraves nos processos produtivos desenvolvidos com olhar para o passado, para a degradação. Se não corrigirmos esse modelo de produção, ele levará ao esgotamento dos recursos naturais, perda da biodiversidade, redução do volume dos recursos hídricos.
Quer dizer, o negacionismo de boa parte dos legisladores no Congresso Nacional e nos legislativos estaduais é um negacionismo que vai muito além de negar a crise climática. É um negacionismo sobre a importância da legislação ambiental e da política ambiental. Eles agem o tempo todo para destruir isso.
O chamado “pacote da destruição” tem diversos projetos de ataque à legislação ambiental. Gostaria de destacar o Projeto de Lei 2159/2021, que trata do licenciamento ambiental e torna o instrumento uma exceção ao invés de regra.
Importante dizer que o licenciamento ambiental é a principal ferramenta de prevenção de danos que o país tem. O PL prevê uma espécie de “auto licenciamento”. A empresa preenche um formulário e já imprime a licença sem estudo ambiental. A situação piora porque vários estados estão criando leis parecidas, eles chamam de licença por adesão e compromisso. A empresa recebe condicionantes sem verificar o território e as características específicas de cada empreendimento. Importante frisar que os estados respondem por 90% das licenças ambientais do país.
Nós estamos vendo um trabalho político fraco por parte do executivo para barrar esses retrocessos. O poder executivo tem um papel importante na articulação para tentar proteger a legislação ambiental. Não dá para aceitar que essas coisas sejam votadas sem uma reação grande do governo.
A legislação ambiental é muito importante não só para o Ministério do Meio Ambiente, mas para Esplanada toda porque não dá para falar em um país líder em termos ambientais – é essa a narrativa construída do presidente Lula desde a campanha –, e admitir esses retrocessos na legislação ambiental.
O quanto esses eventos extremos impactam de forma desigual a população? Vamos falar sobre racismo ambiental. População mais vulnerável, empobrecida, negra e populações tradicionais sentem mais os efeitos e por mais tempo?
Com certeza. Tanto povos indígenas, quanto quilombolas e outras populações tradicionais. São populações que vivem em interação direta com a floresta.
É uma outra forma de relação com a natureza. Quando acontece esses eventos, você tira não só onde eles vivem, mas toda a alma deles. E eles não têm recursos para enfrentar tudo. Então, é muito injusto sobre esse ponto de vista.
Nas áreas urbanas, nós temos que trazer a questão da população de baixa renda que no nosso país tem cor, é predominantemente negra. Você tem um percentual muito maior de mulheres chefes de família. Nas áreas urbanas, quando começa a desmoronar, é nos morros e palafitas que tudo isso vai ser sentido.
É essa a discussão de justiça climática, de racismo ambiental. Ela é importantíssima. Até o final do ano deve sair o plano clima, que é composto por uma vertente de mitigação e outra de adaptação.
Principalmente quando nós falamos em adaptação nós temos que garantir justiça e o estado tem o dever de proteger os direitos dessa população.
O dinheiro para adaptação tem que privilegiar a população mais pobre, e que está em situação de maior risco. A solução não pode ser simplesmente baseada em remoções. Sempre que possível, se ele puder ficar próximo onde ele está em segurança, isso deve ser priorizado. O dinheiro para esse tipo de programa habitacional, com foco em adaptação, tem que privilegiar a população de baixa renda.
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