Ao entrar com seus tanques essa semana em Rafah, na Faixa de Gaza, os militares israelenses agiram rapidamente para tomar o controle do lado palestino da passagem de fronteira com o Egito. A tomada interrompeu o único corredor que ligava os palestinos em Gaza a terras não controladas por Israel. Em um ato simbólico injustificado, um tanque israelense demoliu o monumento “Eu amo Gaza” que recebia os visitantes ao atravessarem do Egito.
O ataque, e a iminente invasão em grande escala de Rafah, que vem sendo anunciada por Israel a despeito das objeções cheias de ressalvas da Casa Branca, coloca sobre os civis palestinos o peso da incessante ofensiva. Israel logo fechou a passagem de fronteira em Rafah. O fechamento praticamente bloqueia a pouca ajuda que ainda chegava a Gaza.
Os moradores de Gaza estão sendo empurrados mais uma vez para o jogo distópico de tentar compreender os mapas criados pelos israelenses, que marcam para qual área delimitada eles precisam se locomover para evitarem a morte certa. Imagens transmitidas nas redes sociais pelo porta-voz em língua árabe das forças armadas israelenses instruíram os civis em Rafah a se locomoverem de volta na direção do centro de Gaza até Khan Younis, um território que os contínuos ataques aéreos e terrestres de Israel deixaram em ruínas.
O Fundo das Nações Unidas para a Infância, Unicef, está implorando ao governo israelense e seus apoiadores por um cessar-fogo e uma mudança de curso nos planos de fazer uma invasão em grande escala em Rafah.
“Há 600 mil crianças buscando abrigo em Rafah, e muitas delas já foram deslocadas várias vezes”, disse Tess Ingram, do Unicef, que voltou recentemente de Gaza, em entrevista ao Intercept dos EUA. “Elas estão exaustas, traumatizadas, doentes, famintas, e sua capacidade de se retirar com segurança é limitada.”
“A área para onde a evacuação está sendo direcionada não é segura. Não é segura porque lá não há serviços para atender suas necessidades básicas: água, banheiros, abrigo”, explica ela. “Mas também não é seguro porque sabemos que aquela área já sofreu ataques embora seja chamada de zona segura. Por isso estamos realmente preocupados com o impacto de uma ofensiva terrestre em uma das regiões mais densamente povoadas do mundo.”
‘A realidade das crianças que vivem lá é assustadora, honestamente. As pessoas estão vivendo em condições realmente precárias.’
Antes que Israel iniciasse a estratégia de terra arrasada na sua guerra em Gaza, Rafah era uma cidade de aproximadamente 250 mil habitantes. Com a chegada dos palestinos fugindo dos ataques israelenses, a população é atualmente estimada em 1,4 milhão de pessoas.
“A realidade das crianças que vivem lá é assustadora, honestamente. As pessoas estão vivendo em condições realmente precárias”, diz Ingram. “É um espaço inacreditavelmente lotado. Em todos os lugares por onde você anda, fica quase ombro a ombro com outras pessoas. Abrigos improvisados se espalham para fora dos edifícios, passando pelas calçadas e chegando às ruas. As pessoas estão vivendo em qualquer lugar onde encontrem espaço, sob pedaços de lona ou cobertores. E isso se estende até onde é possível ver.”
Ingram diz que o Unicef não está conseguindo entrar em Gaza com suprimentos ou combustível desde domingo.
“Estamos realmente raspando o fundo do barril agora com o combustível que ainda temos em Gaza. Não conseguimos entrar com mais”, conta. “E esse combustível é a força vital das operações de ajuda humanitária em Gaza. Sem ele, sistemas importantes como usinas [de dessalinização], hospitais, entrega de alimentos, e caminhões, todos deixarão de existir.”
Matt Miller, porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, confirmou as alegações de Ingram, e disse em uma coletiva de imprensa na tarde de quarta-feira que nenhum combustível havia entrado pela passagem de Rafah ou por Karem Shalom, apesar da insistência dos EUA. Ele acrescentou que os EUA disseram a Israel que, ao assumir o controle da passagem, eles agora têm a responsabilidade de abri-la rapidamente. Mesmo que os caminhões de ajuda comecem a entrar em Gaza novamente, diz, a ajuda não pode ser distribuída sem combustível.
Israel não vai recuar
As terríveis condições começaram à medida que as forças israelenses continuaram a bombardear Rafah e mobilizar forças para os arredores, ao mesmo tempo estrategicamente tomando território, como a passagem de fronteira, e reunindo tropas em preparação para a invasão total.
Ao longo dos últimos sete meses de ataques incessantes contra a população civil de Gaza, durante os quais mais de 35 mil palestinos foram mortos, autoridades e porta-vozes israelenses vêm dizendo ao mundo que Israel não tem intenção de ocupar a Faixa de Gaza. A tomada de Rafah é um lembrete importante de que isso era uma mentira, e continua sendo.
Mesmo sem posicionar seus tanques na passagem, Israel exerce a autoridade suprema sobre o que entra no território sitiado; Israel já realizava inspeções de segurança no lado egípcio, que vinham atrasando a chegada de ajuda humanitária desde o ano passado. A presença de tanques no lado de Gaza serve apenas para militarizar publicamente a realidade.
O governo Biden passou semanas defendendo na imprensa uma narrativa de que Rafah representa um limite intransponível para o governo. No entanto, o presidente americano conversou com o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, antes da operação, e um alto oficial israelense relatou que “Biden não puxou o freio de mão em relação à captura da passagem de Rafah”.
A Casa Branca manifestou leves receios sobre a tomada da fronteira uma vez que os tanques chegassem, mas o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional, Almirante John Kirby, defendeu a medida israelense, dizendo que o governo teria recebido dos israelenses a garantia de que não seria “uma grande operação terrestre”.
Embora os EUA tenham simbolicamente retido um carregamento de armas, autoridades americanas deixaram claro que pretendem continuar a armar Israel. Israel minimizou a importância do atraso das armas e diz que os aliados de longa data estão resolvendo as questões a portas fechadas.
Algumas das tensões de bastidores vieram a público esta semana, quando Tali Gottlieb, autoridade do Likud e integrante do Knesset, fez ataques verbais aos EUA, ameaçando aumentar os crimes de guerra em resposta à retenção das armas. “Os EUA estão ameaçando não nos dar mísseis de precisão. É mesmo?”, disse ela. “Bem, tenho notícias para os EUA. Temos mísseis sem precisão. Vou usá-los. Vou apenas destruir dez edifícios. Dez edifícios. É o que vou fazer.”
Diante da pergunta do Intercept sobre a ameaça de Gottlieb, o porta-voz do Departamento de Estado respondeu com uma crítica. “Esses comentários são absolutamente deploráveis, e integrantes de alto escalão do governo israelense não deveriam fazê-los”, diz Miller.
Biden foi mais longe na quarta-feira, e disse a Erin Burnett, da emissora CNN, que se Israel invadir Rafah, os EUA interromperão o fornecimento de projéteis de artilharia, bombas, e outras armas ofensivas.
O governo de Israel ofereceu uma série de justificativas para a incursão em Rafah: derrotar quatro batalhões do Hamas, fechar as rotas de contrabando, pressionar o Hamas a assinar um acordo para libertar os reféns israelenses. As famílias dos reféns israelenses, por sua vez, vêm realizando grandes manifestações exigindo que Netanyahu assine imediatamente um acordo para libertar os prisioneiros.
Havia um acordo desse tipo na mesa quando Israel tomou a passagem de fronteira, mas as autoridades israelenses reiteraram sua disposição em conquistar Rafah com ou sem acordo.
O Unicef estima que as pessoas em Rafah tenham acesso a aproximadamente três litros de água potável por dia, que precisam usar para beber, cozinhar, limpar e tomar banho. A agência diz que o recomendado para populações em situação de emergência é um mínimo de 15 litros por pessoa, por dia. Há atualmente um banheiro para cada 850 pessoas. A diarreia está disseminada, meninas e mulheres não têm acesso consistente a produtos sanitários, e as fraldas para bebês são escassas.
“As pessoas não podem esperar horas para usar um banheiro ou não se sentem seguras em fazer isso. Por isso, as pessoas precisam recorrer a outros métodos, como defecar a céu aberto”, diz Ingram, do Unicef. “Quando você caminha por Rafah, frequentemente vê, cheira e precisa contornar vazamentos de esgoto, porque os sistemas de saneamento não estão funcionando adequadamente, e as pessoas não têm outras opções.”
‘Quando estamos falando sobre crianças vulneráveis, que sobreviveram a sete meses de guerra e carregam as cicatrizes dessa guerra (…) estão exaustas e traumatizadas, e precisam de mais apoio, não de menos.’
Se Israel ampliar suas operações em Rafah, causando um êxodo em massa de pessoas, as áreas para onde estão sendo direcionadas a fugir não têm sequer essa infraestrutura frágil e inadequada.
“É difícil dimensionar que uma situação tão ruim ainda possa piorar, mas pode ser pior para essas pessoas se elas forem obrigadas a evacuar para uma área que não é segura, que não tem os serviços básicos de que elas precisam para sobreviver. E em Rafah essas coisas já estavam em falta”, diz Ingram.
“Quando estamos falando sobre crianças vulneráveis, que sobreviveram a sete meses de guerra e carregam as cicatrizes dessa guerra, física ou psicologicamente, sua capacidade de se locomover para esse tipo de área e sobreviver lá fica impactada, porque estão exaustas e traumatizadas, e precisam de mais apoio, não de menos.”
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