“Sério mesmo que tem corpo de bebê boiando e a autoridade exigindo documentação para o povo pilotar bote de resgate?”
Eduardo Bolsonaro, no Twitter
“Vocês desrespeitaram o povo brasileiro que estava morrendo transmitindo o show daquela pornográfica. Aquilo é um ritual satânico e todo mundo sabe. Estavam fazendo oferenda com os corpos do Rio Grande do Sul.”
Pablo Marçal, sobre Madonna e Rede Globo
O desastre político-ambiental que atravessou o Rio Grande do Sul não se resumiu à tragédia que estamos acompanhando há dias: além da devastação pela qual o estado passa, o país inteiro foi atingido por um vagalhão de canalhice e desumanização traduzidas em fake news e desinformação, como vemos nos dois exemplos acima.
A sensação é que estamos vivendo novamente as eleições presidenciais de 2018 e 2022, mas com uma grande diferença: não estamos falando da disputa entre partidos para obter o cargo máximo do executivo, e sim de mais de uma centena de pessoas mortas, outra centena de pessoas desaparecidas, mais de seiscentos mil desabrigados/desalojados.
Centenas de animais mortos e desaparecidos também.
É em cima dessa dor sem precedentes que influencers, políticos e emissoras estão chafurdando para receber atenção, likes e dinheiro, muito dinheiro.
O Rio Grande do Sul foi transformado, infelizmente, em um grande palco para desumanizadores e, repito, canalhas com um celular (ou uma equipe) à mão.
E, reiterando, aqueles que estão repetindo “não é hora de procurar os culpados”, como afirmou o governador do RS, Eduardo Leite, devem ser os primeiros a entrar na casinha da responsabilidade.
Mas o que essa grande terceira onda de desinformação também mostrou é que precisamos ter coragem para promover algumas radicalidades, ou continuaremos apanhando.
A combinação entre emoção, apuração e rigor pode concorrer mais ombro a ombro com as fakes news
E o jornalismo não pode deixar de ser um dos protagonistas desse movimento: é, afinal, na linguagem que a briga está operando.
Autoras da pesquisa “A tiktokização como estratégia de combate à desinformação”, Cristiane Lindemann e Patrícia Regina Schuster (Universidade de Santa Cruz do Sul) estudaram o perfil da Agência Lupa, especializada em checagens e educação midiática, no TikTok.
Elas observam que um dos recursos mais fortes no ambiente da rede social é a utilização da emoção, uma subjetividade que tem alto poder de disseminação e já encontra espaço e legitimação no jornalismo.
Utilizada dentro da ambiência da rede com maior prevalência entre a chamada Geração Z, a combinação entre emoção, apuração e rigor pode concorrer mais ombro a ombro com as fakes news que se alastram muito rapidamente na internet.
No entanto, a estetização da notícia é muitas vezes rejeitada pelos jornais, rádios, sites e televisões. “O jornalismo teve, grosso modo, sua origem a partir de narrativas ficcionais. O problema central nessa discussão é que até hoje boa parte dos veículos não admite que o discurso jornalístico é fruto de uma construção, é sempre um recorte, um fragmento da realidade”, diz Patrícia.
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Para ela, o emprego de recursos como ficção e humor não só na construção de notícias, mas no combate à desinformação, sugerem um caminho sem volta a partir da ascensão das redes sociais.
“Não foi uma escolha deliberada do jornalismo. Pelo contrário, foi uma imposição de alguns aplicativos que obrigam as notícias a ‘caber’ em um determinado formato, tendo em vista determinados públicos ou até mesmo almejando boa performance. Os termos aqui parecem fortes, mas são necessários. E reiteramos: a adequação de um fato às potencialidades estéticas das plataformas não pode ser entendida como um ‘pecado’, um ‘desvio de conduta’ profissional. Isso só ocorre porque o jornalismo se sente, por vezes, ameaçado em falar sobre isso com sua audiência de forma franca.”
Concordo completamente com as pesquisadoras quando ambas apontam que a ficção – que estrutura a linguagem e o mercado da desinformação – é uma condição do próprio processo de escrita.
A questão, como lembra Patrícia, é a maneira com a qual a última vai ser usada – e em que dosagem. “É um elemento que pode – e deve – ser exercido como dispositivo capaz de simplificar e até reforçar a veracidade de um acontecimento.”
Essa não é uma questão menor: é cientificamente evidente que, apesar de sua grande importância, a divulgação pura e simples de checagens atestando a veracidade ou não de informações que circulam pelas redes não diminui, por si, a força das chamadas fake news.
O levantamento Methods Supplement for “More and more, Republicans are sharing misinformation, research finds” demonstrou que o uso de notícias falsas pela direita norte-americana cresceu entre 2020 e 2022, a despeito do combate intenso feito a elas no período.
Conteúdos comprovadamente falsos, como fraude nas eleições presidenciais, ineficácia das vacinas contra a Covid-19 e satanismo entre eleitores do democrata Joe Biden mostravam-se ainda fortes na internet apesar de já desmentidos fortemente.
Por isso, é mais do que hora de os Clark Kents da objetividade e do rigor entenderem que essas premissas podem conversar, dentro do contexto das redes sociais, com linguagens como a dramaturgia, a arte, a literatura, os quadrinhos, as radionovelas, etc, todas já assimiladas em maior ou menor grau pela imprensa.
Sobre as radionovelas, escrevi, ao lado da professora Giovana Mesquita (UFPE), um artigo que pensa jornalismo e ficção a partir da análise de podcasts.
Diante de uma fake news, uma piada que a desminta tende a correr rápido e a juntar as pessoas
Roteirista do extinto programa Greg News (HBO), apresentado por Gregório Duvivier, a jornalista, pesquisadora e escritora Mariana Filgueiras vê o humor como uma ferramenta útil na disputa narrativa das redes sociais e elenca três razões para isso:
“A primeira é que o riso é viral, uma piada boa se espraia como um vírus mesmo. O riso tem uma velocidade que é muito importante para apagar o incêndio de uma desinformação criminosa”.
A segunda razão, segundo Filgueiras “é que a gente tende a ficar próximo de quem nos faz rir, isso é fisiológico, o riso é uma ferramenta social que mantém grupos unidos, a gente logo quer mandar um meme pra alguém que gosta quando ri. Então, diante de uma fake news, uma piada que a desminta tende a correr rápido e a juntar as pessoas”.
Por fim, Filgueiras completa: “A terceira característica do humor é que ele fala diretamente com o jovem. A imprensa tradicional faz um trabalho maravilhoso em afastar esse grupo do hábito de ler jornais: seus colunistas caretas, nostálgicos e reclamões; sua visão muito sudestina e egóica da cultura; seu uso meio tiozão da tecnologia. O jornal tradicional não sabe falar com o jovem direito e eles são uma parcela muito importante para combater fake news dentro de casa, nas escolas”.
No entanto, assim como Cristiane Lindemann e Patrícia Regina Schuster, Mariana também percebe o desconforto, por parte dos veículos de imprensa, em relação à adoção de linguagens meméticas, ficcionais e humorísticas.
Segundo ela, o jornalismo tradicional tem uma obsessão com a tradição burguesa e os mitos de imparcialidade e objetividade, um fenômeno que contribui, por exemplo, com o detestável jornalismo declaratório, apoiado somente em aspas deste ou daquele entrevistado e sem uma mediação qualificada.
O humor gosta de gente
Essa tragédia – ideológica – fez com que, por exemplo, o discurso de ódio do ex-presidente do Brasil, o Derrotado, fosse normalizado.
“Eu tenho ouvido muitas reportagens de TV dizendo coisas como ‘O Ministério Público não respondeu às solicitações de contato da reportagem’. Como assim o MP não vai falar e a gente naturaliza isso?”
“Os jornais esquecem de raciocinar em cima da contradição, de ler uma planilha de dados criticamente, de levantar o braço numa coletiva de imprensa e dizer: ‘Isso que o senhor está dizendo não é verdade, segundo os dados X e Y, que eu trago aqui’. Comprometidos com a publicidade, não questionam empresas, políticos, celebridades. Apenas publicam suas declarações sem contradizê-las. E sem espírito crítico afiado não há humor. O bom humor pensa rápido, faz associações improváveis, tem boa memória, tem repertório popular, resgata coisas muito antigas para comparar com novas. O humor gosta de gente”.
Há um outro ponto em relação ao jornalismo tradicional que precisa ser ressaltado: a sua grande capacidade desinformativa que tantas vezes o equipara aos mesmos produtores de fakes que critica.
Nesse sentido, é preciso dizer antes que as notícias falsas quase sempre contêm um elemento de verdade que é descontextualizado, omitido, desfigurado. Foi o caso de um já histórico título da Folha de S.Paulo no qual líamos sobre o Governo Federal ter recusado a ajuda do Uruguai nas enchentes do Rio Grande do Sul.
“A chamada ‘grande mídia’ sempre foi comprometida ideologicamente”
O caso gerou uma saia justa entre a empresa e Secretaria de Comunicação, com trocas de notas e matérias. O fato é que o Comando Militar Conjunto aceitou a ajuda de um helicóptero uruguaio para auxiliar no resgate às vítimas, mas recusou um avião que traria drones e lanchas, por não contar com uma “infraestrutura aeroportuária disponível”.
Nesse caso, não só o título capcioso deve ser observado, mas o próprio uso do nome do presidente inserido ali. Na matéria, o lead (início do texto) cita a recusa do governo federal, enquanto o sublead nos informa que o governador Eduardo Leite (PSDB) pediu ajuda ao Uruguai. O primeiro, portanto, no papel do vilão. O segundo, no de mocinho.
“A chamada ‘grande mídia’ sempre foi comprometida ideologicamente. Ora, uma manchete como esta é tão criminosa quanto uma fake news deliberada. Nesse sentido, o convite que fizemos ao discutir a tiktokização do jornalismo como estratégia de combate à desinformação é para pensar as narrativas jornalísticas como um todo, e não apenas as que estão subjugadas aos aplicativos”, diz Patrícia Schuster.
“Notadamente”, Schuster completa, “esse movimento de plaformização do jornalismo trouxe outros desafios, mas eles são parte de um ecossistema que precisa ser revisado e repensado como um todo. A Folha sempre se colocou na cena jornalística nacional como um veículo ‘isento’, mas ela responde a interesses claros. Aliás, todos os veículos que pertencem a conglomerados midiáticos no nosso país agem da mesma forma. Parece até um certo oportunismo criminalizar o fenômeno das fake news”.
Para Mariana Filgueiras, a imprensa independente tem tido muito mais sucesso no uso de recursos que conseguem competir, sem perder a qualidade, com as inescapáveis mentiras. “Ela se arrisca mais, usa mais a linguagem dos quadrinhos, usa o TikTok para resumir reportagens, usa dados de uma forma mais atraente, usa as redes sociais de forma mais interessante, tem mais jogo de cintura. Não estou dizendo que ninguém é obrigado a fazer dancinha pra dar notícia, não é isso. É aprender a usar uma ferramenta de linguagem que é muito eficaz com inteligência, bom senso e coragem.”
HISTÓRIAS E VÍDEOS CURTOS
O mais recente relatório sobre tendências do jornalismo publicado pelo Instituto Reuters (2024) sublinha a importância dos vídeos e redes sociais como captadoras de uma audiência jovem, justamente aquela que rejeita formas tradicionais de fazer jornalismo (e aquelas que podem assegurar sua futura sobrevivência).
“Procurando envolver os jovens com as notícias, espera-se que haja investimentos onde eles passem mais tempo, como YouTube Shorts e TikTok. Estas iniciativas vão se concentrar principalmente na tentativa de construir relacionamentos em vez de ganhar dinheiro, mas este ano os meios de comunicação procurarão cada vez mais trazer técnicas de contar histórias para os seus próprios websites e aplicativos. Do ponto de vista da demanda por talentos, os especialistas em vídeos curtos continuarão sendo mais demandados”, escreve Nic Newman.
“O humor no jornalismo é aparentado do ativismo digital”
Atualmente, são os podcasts jornalísticos – ou que se utilizam em grande parte da imprensa para se fazer valer, como veremos – que mais avançam nesse hibridismo no Brasil, a exemplo do projeto As Cunhãs, tocado pelas jornalistas Inês Aparecida, Hébely Rebouças e Kamila Fernandes.
Nele, as análises da política nacional e cearense se apoiam em entrevistas, apuração e as engraçadíssimas piadas de Inês. Também do Ceará e voltado para públicos mais jovens, o Budejo (realizado por dois jornalistas, uma socióloga e um bacharel em direito) trata de temas variados que percorrem a política e a cultura.
Já o super fragmentado Medo e Delírio em Brasília fez, na minha opinião, uma das melhores coberturas sobre o governo militar perpetrado pelo ex-presidente do Brasil, o Desaplaudido. Pedro Daltro e Cristiano Botafogo produzem, roteirizam e apresentam um projeto no qual a sátira, a apuração, a colagem e os áudios enviados por uma série de especialistas dão o principal tom. “O humor no jornalismo é aparentado do ativismo digital”.
O potencial agregador das piadas (“e o palhaço, o que é? é ladrão de mulher!”) vai formando hordas que fazem coisas grandes juntas”, sintetiza Mariana Filgueiras.
Se você quiser se aprofundar mais sobre fake news, juntei mais alguns textos:
- “Repórteres e produtores de outros veículos me perguntam conselhos sobre como não cair em fake news, num comportamento que remete aos piores dias de 2018, de 2020 e de 2022. Estamos em 2024 e as perguntas, assim como as respostas possíveis, pouco evoluem”, Tai Nalon, no Aos Fatos.
- Oportunismo de influencers e bolsonaristas nas redes não poupa nem a catástrofe no RS, João Filho no Intercept Brasil
- Marina Amaral também abordou o tema em newsletter da Agência Pública.
- O pesquisador Rogério Christofoletti (UFSC) disponibilizou quase 50 artigos sobre credibilidade, transparência, privacidade e ética jornalística.
- O artigo “Ativismo digital, humor e o questionamento de hierarquias sociais na fanpage “Vagas Arrombadas”, de Nathália Fonseca, Luana Laboissiere, Danila Cal e Raphael Carvalho (UFBA). A partir da página 205.
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