Claudileno da Costa Castro, 36 anos, nasceu e cresceu em Moju, cidade ribeirinha no noroeste do Pará. Criado no rio e na floresta, trabalhou desde cedo com agricultura familiar na roça. Junto a seu pai, plantava açaí, mandioca e vivia da pesca. Hoje Claudileno não pesca mais, não planta e sente saudades de seu pai. Está escondido, com a cabeça a prêmio.
Vinte mil reais é o valor estipulado para a milícia local matar Claudileno, denunciante da extração ilegal de seixo no rio Moju, que corta sua cidade. A exploração da pedra, que fica no fundo do rio e é vendida para ser utilizada na construção civil e decoração, vem impactando o acesso da população à água, que fica turva, barrenta e contaminada com diesel.
“Pagaram 20 mil pro cara me eliminar, entendeu? Porque eu já venho fazendo essas denúncias, venho lutando com isso aí, há seis ou sete anos”, ele me contou.
O homem, que teve que abandonar sua casa, manda uma mensagem de seu esconderijo para dizer que a comunidade se alegrou com a notícia da chegada do Intercept Brasil. Fui a Moju para dar luz à atividade criminosa que já ocorre há 30 anos sem que o estado, município, autoridades e até mesmo a imprensa local façam algo para impedir.
“Eu fui em todos os lugares que você imaginar. Fui na delegacia e já fiz vários boletins de ocorrência, já fomos na secretaria de meio ambiente do município, no Ibama, mas ninguém faz alguma coisa. Já fui até ao jornal Liberal, mas os jornalistas ignoraram nossa denúncia”.
A retirada do seixo dos leitos e nascentes de rios e igarapés é ilegal. A atividade só poderia acontecer com uma licença ambiental para direito de exploração da lavra para a extração – o que não existe em Moju.
Com o avanço da atividade, que movimenta dezenas de barcos, a qualidade da água começou a piorar. “Se você encher um copo com essa água do rio, depois de uns minutos você vai ver o barro se formando no fundo do copo”, me disse um morador. “Antes do aumento dessas dragas no rio, a água era cristalina e dava pra ver o fundo. Agora, se você usar a água para consumo, vai adoecer”.
Na região, não há saneamento básico, poços artesianos suficientes e nem tubulação que leve água encanada e potável. É em comunidades como Jupuubinha, no médio Moju, que os impactos da extração ilegal de seixo são mais intensos – e os moradores chegam a ficar sem água.
A população local, então, começou a se negar a aceitar as balsas, barcos e dragas responsáveis pela extração do seixo. Claudileno foi o escolhido pela comunidade como a liderança que ficaria à frente das denúncias – e da ação direta. Os próprios moradores passaram a se encarregar de interpelar os barqueiros, proibir a retirada do seixo em algumas áreas e até afundar os barcos responsáveis pela atividade.
A situação se acirrou com a chegada de um pistoleiro conhecido como John da Soledade, cujo nome verdadeiro é um mistério. Claudileno afirma que Soledade, temido por toda comunidade no curso do Rio Moju, foi quem o ameaçou.
De acordo com várias testemunhas locais, quem levou John da Soledade à região foi a prefeita de Moju, Nilma Lima, do MDB. Segundo elas, o contato teria sido intermediado pelo prefeito do município vizinho de Tailândia, Paulo Liberte Jasper, o Macarrão, também do MDB e amigo de Soledade.
Segundo Claudileno, Soledade chegou ao território, conhecido como Limoeiro, contratado para fazer um trabalho de milícia: resolver casos de furtos e agressões que vinham acontecendo em casas ribeirinhas.
Mas depois de um tempo os políticos perderam o controle do homem, relata o morador. Soledade passou a invadir as casas da comunidade, aparecendo sem ser convidado e andando sempre com um rifle no ombro, de grosso calibre, e alguns revólveres em uma mochila.
Segundo três testemunhas com quem conversei, John Soledade garantiu que a extração de seixo não irá parar. Ele teria afirmado que “poderia até morrer, mas levaria junto um ou dois”. Recebe R$ 2 mil para fazer a segurança.
Vereadora teme por sua segurança
Agora, vários representantes comunitários pedem que o poder público faça algo para que a situação não escale para a violência armada.
“Nós, das comunidades Juteiteua, São José, Araraí e da comunidade Sagrada Família, todos estamos sofrendo com esta extraição de seixo ilegal. Então, hoje em dia, a nossa água não tem mais qualidade. Eles estão andando com pistoleiros, com gente armada ameaçando o povo. Já sabemos da notícia que se encostar no lado do barco vai ser morto. Pai de família que está lutando aqui por direito”, diz uma mensagem em um grupo de moradores, obtida pelo Intercept.
Moradores da comunidade do Jupuubinha me disseram que a prefeita ignora a situação, se recusando a visitar a comunidade. Afirmam também que ela deixou as pessoas sob o assédio de John Soledade.
De acordo com testemunhas, a prefeita tentou uma conciliação entre os envolvidos por meio da vereadora Eliomar Cruz Pantoja, também do MDB. Ela teria organizado uma reunião sigilosa com as lideranças locais e com Claudileno para tentar “ganhar a confiança dos denunciantes”.
A ideia, segundo as testemunhas, era cessar o conflito para manter a atividade da extração sem que os opositores atrapalhassem os barcos, balsas e dragas na travessia do rio.
Claudileno disse que não haveria reunião secreta, mas que a comunidade gostaria da presença da prefeita no Jupuubinha. A vereadora avisou que isso não aconteceria e as conversas se encerraram.
Claudileno me disse que se recusou a comparecer à reunião secreta acreditando que a prefeita pretendia comprar o silêncio da comunidade.
Ao Intercept, a vereadora Eliomar Cruz Pantoja afirmou que conhece John da Soledade e sabe da atuação nociva do pistoleiro. Também afirmou que sabe da operação de extração ilegal de seixo, mas acredita ser uma situação complicada para ser resolvida de forma pacífica porque a região é perigosa. Ela mesma demonstrou medo por sua segurança.
Comunidade apreendeu barcos com ajuda da polícia
Em outubro de 2023, conta Claudileno, ele e a comunidade chegaram a afundar quatro barcos e apreender duas balsas em colaboração com policiais da Delegacia do Meio Ambiente do Pará, a Demapa.
“Foram apreendidas duas balsas, sendo que uma estava carregada com seixo e a outra não”, me disse o agente Luís Junior, que participou da operação. O seixo apreendido foi entregue à Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Moju. Uma das balsas foi liberada.
“O inquérito foi concluído e encaminhado para o fórum de Moju. Os três autores foram indiciados e o material apreendido”, me disse Junior.
Agora, as embarcações afundadas foram resgatadas pelos donos e estão sendo reformadas para continuar no transporte do seixo. Foi por conta dessa apreensão que as ameaças contra Claudileno começaram.
Segundo o morador, o grupo de donos de dragas se reuniu para fazer a vaquinha da morte e juntar R$ 20 mil para John cometer o assassinato. Claudileno diz que descobriu o plano em um dia em que ele e outros moradores afundavam embarcações.
“Começamos a pegar barco e meter no fundo. Nada de polícia aparecer. Então nesse dia, a gente pegou o celular do pessoal lá e no grupo do WhatsApp estava a conversa sobre a coleta. O cara cobrava que estava faltando dinheiro. Já tinha R$ 10 mil na mão, mas faltava R$ 10 mil”.
‘A gente também tem que ter cuidado, né? Porque essas coisas [ameaças] acontecem.’
Segundo Claudileno, os donos das dragas, que ficam na extensão do rio entre Maiaú e São Sebastião, seriam residentes dos municípios de Moju, Igarapé-Miri e Abaetetuba. São conhecidos pela comunidade apenas por apelidos. Aqueles que conhecem as verdadeiras identidades se recusaram a falar, com medo de retaliações.
Segundo a vereadora Eliomar, já houve também secretários municipais ameaçados. Para ela, o caso é competência do governo estadual. “A gente também tem que ter cuidado, né? Porque essas coisas [ameaças] acontecem. É uma competência do estado, não é competência da Secretaria do Meio Ambiente de lá, do Mojú, resolver essa situação”.
A Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do estado do Pará se esquivou. Informou ao Intercept que “não é responsável pelo licenciamento das atividades”, mas “reforça que atua no acompanhamento e fiscalização a partir de denúncias que devem ser feitas pelo aplicativo Semas Pará”.
Já o Ministério Público do Estado Pará, o MPPA, por meio da Promotoria de Justiça de Moju, afirmou que instaurou notícia de fato em setembro de 2023 para apurar as denúncias sobre a extração ilegal de seixo na região.
O órgão pediu providências à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente de Moju – que respondeu que havia instaurado um procedimento próprio de investigação. O MPPA afirmou também que reiterou um pedido para que a fiscalização no local seja feita.
Sandra conseguiu sobreviver, mas seu filho não
De acordo com os moradores, John da Soledade é ex-policial e tem quase 60 anos. Ele se enfia na mata por dias e aguarda suas vítimas baixarem a guarda para atacar, nos relatou Sandra Maia, 48 anos, que precisou fugir do Moju após ter sido jurada de morte pelo pistoleiro.
Sandra não foi apenas ameaçada. Também perdeu o filho, Abraão Júnior, de 27 anos, conhecido pelo apelido de Atanásio, assassinado por John na frente da esposa e do filho de colo.
“Esse John tirou a vida do meu filho e ainda queria tirar a minha vida, por isso eu fugi de lá”, me disse Sandra. “O John chegou por trás da casa e pegou ele indo pro banheiro. Ele levou o primeiro tiro de espingarda, mas conseguiu correr sangrando. O John correu atrás, pegou a esposa do Abraão na ponte, apontou o rifle pra ela e pro meu neto e disse, ‘se tu pular na água eu atiro no teu filho’, aí meu filho voltou e pediu pra ele não matar a criança dele. Aí ele atirou a queima roupa no Abraão”.
Outro morador da comunidade do Jupuubinha que teve sua casa invadida foi Adeílson Serrão Pinheiro, 40 anos, conhecido como Verde.
“Quando afundaram os quatro barcos de seixo, o John veio para dar apoio pros barqueiros. Mas a comunidade já havia dito lá na delegacia que se não dessem um jeito nisso, eles mesmos iam parar a extração porque não tava mais dando. Água é vida, mas está faltando vida pra nós aqui”.
Verde conta que, apesar de não ter participado do afundamento das quatro embarcações, John acreditou que ele estava no local e foi até sua casa com a intenção de ameaçar sua família.
“Ele veio aqui em casa, sem ser convidado, e disse que era melhor o pessoal da comunidade parar de se meter na extração do seixo, porque se não parasse ia morrer gente, porque agora ele era quem tava na segurança. Ele veio falar isso diretamente pra mim”.
Verde ainda conta que acompanhou um grupo de lideranças da comunidade de Jupuubinha até a Secretaria de Meio Ambiente de Moju para buscar assistência. Segundo ele, ao relatarem sobre o crime ambiental, um funcionário da secretaria teria dito que um de seus parentes era o responsável pela extração ilegal. O grupo decidiu, então, recuar na denúncia.
Extração de seixo suja a água e gera lucro para poucos
Vários moradores relatam que, por conta da extração ilegal, a população precisa buscar água em poços artesianos longe de casa. O deslocamento se dá através das rabetas a motor.
O gasto dos moradores com combustível, óleo diesel e gasolina aumentou. Eles ainda caminham de um a dois quilômetros, ida e volta mata adentro, para chegar ao poço mais próximo, carregando baldes e carotes, garrafões de 20 litros de água. O trabalho é feito pelo menos três vezes na semana.
Não há como a água do rio Moju ser utilizada para beber, cozinhar ou até mesmo para os banhos. A água de cor amarelada que sai das torneiras serve apenas para lavar roupas e louças. Poços artesianos também são opção para poucos: custam, em média, R$ 8 mil.
Para Claudileno, a extração do seixo do fundo do rio Moju é lucrativa para o pequeno grupo dono das dragas, mas não traz benefícios para a comunidade e nem para o município.
Cada barco paga uma média de R$ 1.000 a R$ 1.500 ao dragueiro para ser carregado completamente.
As dragas são estruturas que lembram o maquinário do garimpo. São pequenas balsas de quatro a seis metros, com um motor chamado de rabudo. Esse motor é acoplado a um compressor que serve para que o mergulhador, parte importante da extração, possa respirar debaixo d’água ao levar manualmente a mangueira até o fundo para fazer a sucção do seixo.
A mangueira carrega com os seixos os barcos estacionados ao lado da estrutura. É comum ver essas embarcações no Rio Moju, sempre com homens armados que costumam intimidar quem passa pelo local.
Assim que passamos pelo rio, somos seguidos por batedores, os olheiros, que ficam em rabetas velozes observando outras embarcações desconhecidas que possam ser consideradas uma ameaça. Quando eles avistam as embarcações, saem em alta velocidade para avisar os donos das dragas e barcos.
Cada barco paga uma média de R$ 1.000 a R$ 1.500 ao dragueiro para ser carregado completamente. O seixo é vendido a valores que variam de R$ 300 a R$ 350 reais o metro. Um barco cheio produz, em média, um lucro de R$ 17.500. A população ribeirinha acredita que há uma média de 10 a 12 dragas na extração e pelo menos 50 embarcações no transporte do seixo.
Para a vereadora Eliomar, a atividade não traz nenhum benefício para o município, já que a matéria prima extraída é vendida para fora. O material é enviado para cidades como Breves, Portel, Melgaço e Bagre. Há ainda o transporte terrestre, em caçambas que viajam em comboio. Cametá, Mocajuba e Baião são os locais que recebem a produção por terra.
Rio é assoreado, água fica turva e peixes somem
Questionada, a Agência Nacional de Mineração afirmou que não há nenhum processo minerário com registro de licença ativo para exploração de seixo em Moju.
O seixo normalmente utilizado em construções é extraído da terra e vendido por metro. Nunca retirado dos rios. O impacto dessa extração é muito grande na ictiofauna e na topografia, causando a degeneração do rio e consequentemente a inviabilização do uso da água.
“Se estamos falando de águas com excesso de sedimento em suspensão, de fato, isso ser ocasionado por alguma atividade ilegal de extração de seixo/areia no leito desse rio ou por alguma supressão vegetal em áreas próximas as margens do município”, me disse Hugo Paiva, gerente regional da Agência Nacional de Mineração no Pará.
Eliomar, a vereadora, atribui o problema da água às empresas de óleo de palma, Agropalma e BBF, que supostamente estariam despejando agrotóxicos nos rios do Moju. Mas um especialista em geologia que trabalha no Serviço Geológico do Brasil e possui experiência com mapeamento hidrogeológico e avaliação hidrogeológica não deixa dúvidas sobre o impacto da extração de seixos.
“Desbarrancamento do leito do rio, causando o assoreamento do rio”, listou ele, que preferiu se manter anônimo, mas explicou em detalhes os impactos desse processo no leito dos rios, na fauna e qualidade da água.
“Se for uma exploração no meio do rio com draga, pode também causar desbarrancamento e assoreamento no leito do rio, diminuindo a vazão, o volume de água nesse rio, e, da mesma forma, diminuindo a quantidade de matéria orgânica, a quantidade de peixes, e afetando toda uma economia local”, explicou o geólogo.
Sobre a qualidade da água do rio que sofre influência deste tipo de atividade de mineração ele não deixa dúvidas: a qualidade da água é afetada em qualquer trabalho de exploração e de retirada do leito do rio, de areia, de cascalho, de seixo.
Também será afetada a turbidez da água, ou seja, a medição da resistência da água à passagem de luz. A turbidez, provocada pela presença de partículas flutuando na água, é um parâmetro de aspecto estético de aceitação ou rejeição do produto.
“Essas propriedades físicas, como a turbidez, é a que mais afeta e realmente vai prejudicar a qualidade da água para consumo. Vai espantar a fauna local e os peixes. Realmente é um prejuízo bem grande”, explicou o especialista do Serviço Geológico do Brasil.
À medida que nossa reportagem avançava nas entrevistas a políticos e autoridades, as ameaças e abordagens de John da Soledade contra moradores das comunidade do Jupuubinha e da Vila Soledade se intensificaram. Questionados de cumplicidade com Claudileno e de participarem do movimento contra as dragas e embarcações, os homens e mulheres do médio ao alto Moju se sentem cada vez mais reféns da atividade ilegal.
Claudileno se mantém escondido e longe de seu território sem que as autoridades locais, polícia, secretaria de meio ambiente e vereadores eleitos possam lhe garantir segurança. Segurança e água. Dois itens básicos para a vida humana que não estão disponíveis em Moju.
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