Tatiana Dias

A máquina da morte da extrema direita está literalmente botando fogo em nosso país, enquanto muitos fingem que não.

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Eles veem oportunidade na tragédia no Rio Grande do Sul

O capital se fortalece com as crises que ele mesmo fomenta.

Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

Este texto foi publicado originalmente na newsletter do Intercept. Assine. É de graça, todos os sábados, na sua caixa de e-mails.

Porto Alegre segue debaixo d’água, e o tamanho do estrago ainda é imensurável, mas o prefeito Sebastião Melo, do MDB, já anunciou o plano: irá contratar a consultoria Alvarez & Marsal para recuperar a cidade.

A história dessa contratação é tocante. “Um dos sócios dessa empresa é gaúcho, porto-alegrense. Ele se sensibilizou com o processo e nos procurou para ajudar”, disse Melo. A Alvarez & Marsal não irá cobrar pelo trabalho nos primeiros seis meses – mas o plano já prevê atividades para além do período gratuito.

A benevolência esconde o contexto. Vou começar pelo mais básico. A Alvarez & Marsal é uma consultoria que atua para recuperar aqueles casos quase impossíveis de crise corporativa. Empresas envolvidas em desastres ambientais, em grandes condenações e de reputação duvidosa.

Aqui no Brasil, por exemplo, atuou após os crimes ambientais de Mariana e Brumadinho e com empresas que foram investigadas pela operação Lava Jato, como o Grupo Odebrecht e as construtoras OAS e Queiroz Galvão. 

(O rol de clientes não impediu, no entanto, que Sergio Moro fosse contratado pela consultoria logo após deixar o ministério da Justiça de Bolsonaro, mas essa é outra história que você pode ler aqui.)

Nos EUA, a Alvarez & Marsal atuou na reestruturação de Nova Orleans depois do furacão Katrina em 2005 – uma tragédia que, devido à magnitude, tem sido bastante comparada com o que está acontecendo no Rio Grande do Sul. Na ocasião, 1,5 mil pessoas morreram e 80% da cidade ficou debaixo d’água, completamente colapsada. 

No domingo, 12, o Fantástico fez uma reportagem em tom esperançoso mostrando como foi a recuperação de Nova Orleans – e o que os gaúchos podem aprender com ela. 

A história de superação da cidade pode ser, sim, lida com essa lente inspiradora. Mas a economia de recuperação de desastres tem um lado sombrio, e é a tempestade perfeita para os urubus da crise criarem novas fronteiras de acumulação de capital – e implantarem as reformas e medidas antipopulares que tanto desejam.

É o fenômeno descrito como capitalismo de desastre. O caso de Nova Orleans, por exemplo, é um dos exemplos analisados pela autora canadense Naomi Klein no seu livro “A doutrina do choque – a ascensão do capitalismo do desastre”.

Em vídeo de 2020, Naomi Klen explica o capitalismo de desastre a partir da crise do coronavírus.

Esse conceito de “choque” vem do economista Milton Friedman, vencedor do Nobel de Economia em 1976 e um dos principais influenciadores da linha econômica liberal dos Chicago Boys. 

Friedman argumentava que só as crises econômicas poderiam produzir mudanças. Ou seja: o período após um trauma coletivo é o mais propício para reformas que, em outras ocasiões, dificilmente seriam aceitas. Privatizações radicais, por exemplo. 

Naomi Klein mostra que foi assim no Chile, após o golpe que derrubou Salvador Allende. Também na Bolívia, que atravessou uma crise econômica em 1980. Malásia, Filipinas, Coreia do Sul, Brasil e Indonésia, entre outros, também passaram por processos semelhantes nos anos 1990. No início do século 21, foi a vez dos EUA, em choque com a Guerra ao Terror, com uma retórica que favoreceu a privatização de serviços de defesa nacional.

Klein argumenta que o fenômeno se repetiu também depois de desastres naturais. Na América Central, após o furacão Mitch, e também no Sri Lanka, depois do tsunami em 2004, e em Nova Orleans com o Katrina. Em todos os casos, o estado foi reduzido com privatizações, e as corporações ganharam liberdade com desregulamentação. 

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Naomi Klein mostra, por exemplo, que, nos EUA, a passagem do Katrina serviu como ponto de partida para uma série de privatizações, incluindo o sistema educacional. 

No Sri Lanka foi semelhante: o governo, defendendo que a reconstrução do país não poderia ficar a cargo de políticos, decidiu criar um novo órgão, chamado Força Tarefa, composto basicamente de banqueiros e empresários. O grupo propôs um plano de reconstrução que ia de acordo com seus próprios interesses comerciais: expulsou moradores de áreas pobres e fortaleceu o turismo de luxo. 

Aqui no Brasil, a mesma agenda foi implementada depois do rompimento da barragem do Fundão. Uma excelente tese de doutorado da UFMG descreve o crime ambiental de Mariana, em Minas Gerais, como o primeiro grande experimento desse capitalismo no Brasil. 

Na ocasião, argumenta a autora Claudia Rojas, a primeira terapia de choque foi o rompimento abrupto e violento. O segundo foi um programa econômico neoliberal e impopular para reparar os danos, que “permitiu às corporações responsáveis inaugurar um novo mercado e conquistar os últimos bastiões do estado”, diz a tese.

Por fim, e não menos perverso, os atingidos foram submetidos a “mecanismos e técnicas de tortura coletiva, que contribuíram para reduzir o gasto social, neutralizar a resistência e consolidar a ascensão do capitalismo de desastre no Brasil”. Por exemplo, com a pressão para assinatura de acordos com indenizações irrisórias.

A autora mostra como o capital se fortalece com as crises que ele mesmo fomenta e reproduz continuamente. Primeiro, com a consolidação do papel das corporações privadas nas respostas às crises. No caso da barragem, por exemplo, o dinheiro de reparação foi gerido por uma fundação privada, e não pelas vítimas ou pelo estado. 

Segundo a autora, esse processo permite o avanço da classe capitalista transnacional. E isso acontece de uma maneira sofisticada, com ONGs e projetos de recuperação, novas instituições e protocolos, de maneira que as próprias corporações ditem as regras e as respostas à crise. Grandes consultorias internacionais especializadas em reputação, sabe?

O capitalismo de desastre também se manifesta com agendas liberais que “alargam o espaço privado em detrimento do espaço público”. Em Mariana, por exemplo, isso aconteceu com a privatização de serviços essenciais como assistência às vítimas e respostas a emergências ambientais, que ficaram a cargo das próprias empresas e fundações privadas.

Agora, preste atenção no que está acontecendo no Rio Grande do Sul: a contratação da consultoria especializada em crises corporativas no lugar de pesquisadores de universidades públicas, o pix do governador Eduardo Leite, os pedidos de doações a entidades privadas

Combine isso com a narrativa predominante das fake news de direita: é a descredibilização do poder público, a ideia de que a ação estatal é “burocrática” e está “atrapalhando” os voluntários, é o helicóptero fake da Havan criado por inteligência artificial resgatando pessoas, é a ideia de um heroísmo privado e atuante sobre a ineficiência do poder estatal

A resposta ao choque, que se descortina agora, é justamente o fortalecimento da agenda neoliberal em resposta à tragédia: o estado está reduzido, inoperante, então vamos substituí-lo. O Rio Grande do Sul é o novo laboratório da crise.

JÁ ESTÁ ACONTECENDO

Quando o assunto é a ascensão da extrema direita no Brasil, muitos acham que essa é uma preocupação só para anos eleitorais. Mas o projeto de poder bolsonarista nunca dorme.

A grande mídia, o agro, as forças armadas, as megaigrejas e as big techs bilionárias ganharam força nas eleições municipais — e têm uma vantagem enorme para 2026.

Não podemos ficar alheios enquanto somos arrastados para o retrocesso, afogados em fumaça tóxica e privados de direitos básicos. Já passou da hora de agir. Juntos.

A meta ousada do Intercept para 2025 é nada menos que derrotar o golpe em andamento antes que ele conclua sua missão. Para isso, precisamos arrecadar R$ 500 mil até a véspera do Ano Novo.

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