Esta semana, o Supremo Tribunal Federal, o STF, finalmente apreciou a denúncia criminal contra a deputada Carla Zambelli e o hacker Walter Delgatti Neto, que teriam atuado em conjunto para invadir o site do Conselho Nacional de Justiça, o CNJ, e falsificar diversos registros administrativos armazenados nos sistemas do Conselho.
Entre esses registros, estava um inusitado mandado de prisão contra o ministro Alexandre de Moraes, “expedido” por este próprio.
O mandado chegou a ser incluído no sistema do CNJ, o que disparou comunicação a agências da segurança pública, entre as quais a Polícia Federal e seus agentes de aeroportos. Poderia ter gerado alguma dor de cabeça a Moraes, além de desperdiçar o tempo de funcionários públicos que fazem controle migratório nas fronteiras do país.
Na sessão em que a denúncia foi apreciada e, ao final, aceita, a ministra Carmén Lúcia disse que, analisando o caso, concluiu ser necessário cautela não apenas com a “inteligência artificial”, mas também com a “desinteligência natural”, dado que seria completamente ilógico que alguém expedisse mandado de prisão contra si mesmo.
Pedindo desculpas por ser menos polido, Alexandre de Moraes disse que chamaria as coisas por outro nome: “burrice” mesmo.
O recebimento da denúncia parecia inevitável; a autoria e materialidade de crimes, requisitos exigidos nessa fase de um processo, estão mais que bem estabelecidas.
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Além de confissão de Delgatti Neto (rainha das provas, dizem os processualistas), há evidências produzidas pela própria Zambelli que, nas redes sociais, fez questão de documentar os seus esforços para trazer o hacker para o seio das operações bolsonaristas nas eleições de 2022.
Como se não bastasse, uma cópia do mandado de prisão de Moraes gerado por Delgatti foi encontrada com Zambelli.
Por seu trabalho de invasão do sistema do CNJ, Delgatti ainda teria recebido pagamento de forma escamoteada (em bom português, por meio de laranjas).
A esposa de um funcionário de Zambelli, de nome Jean Hernani, teria sido contratada para cuidar de redes sociais de candidatos do PL. Parte do valor desse contrato era destinado ao hacker. Uma ironia, em se tratando do gabinete da afilhada do ex-juiz Sergio Moro.
Não se trata apenas de burrice
Chamar essas operações de “burrice” é tentador, dada a forma tosca que assumiram. Mas “burrice” é uma diminuição indevida do que elas representam.
O objetivo de forjar um tosco mandado de Moraes contra si mesmo nunca foi prendê-lo, mas sim demonstrar a capacidade de invasão dos sistemas da justiça. E, com isso, sugerir que as urnas eletrônicas usadas nas eleições de 2022 eram vulneráveis. Se a justiça não pode cuidar dos próprios sistemas, vai ser capaz de cuidar do seu voto?
É evidente que urnas eletrônicas nada têm a ver com o sistema de mandados do CNJ. A começar que as primeiras não estão conectadas à internet, ao contrário do segundo.
Aliás, resulta da confissão de Delgatti que Zambelli o havia pedido para invadir uma urna, e não o sistema do CNJ. Pedido que ele não conseguiu atender, o que deveria servir como mais um atestado sobre a segurança do nosso sistema de votação.
Mas fatos importam pouco no mundo em que vivemos.
E importavam menos para o que a Polícia Federal tem chamado de um núcleo de desinformação da organização criminosa que visava dar um golpe no país, cujos objetivos principais eram desacreditar as eleições, disseminar entre a população a ideia de que a derrota de Bolsonaro foi fraudulenta e incitar o caos, a fim de justificar uma intervenção dos militares.
Nesse contexto, as travessuras de Delgatti e Zambelli nada tem de burrice. São, isso sim, de grande argúcia, pois foram plenamente capazes de gerar os factoides que intoxicaram os “tios do zap”, que acabaram em acampamentos de quarteis e no quebra-quebras de 8/1.
Por tudo isso, o STF ganharia mais se, ao invés de desqualificar a aparente atuação de Zambelli e Delgatti como “burrice”, chamasse a atenção para a devida gravidade que essa atuação possui, como parte dos esforços de Bolsonaristas para dar um golpe.
Afinal, estamos falando de gente que não apenas tratou de espalhar mentiras sobre urnas, mas que cometeu crimes visando tornar essas mentiras mais potentes e capazes de incendiar os derrotados nas eleições, a fim de que apoiassem a subversão destas.
Não foi, portanto, burrice; foi parte de um crime contra a democracia que precisamos nos acostumar a chamar pelo nome correto.
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