Em Gambé, romance recém lançado pela Companhia das Letras, o jornalista Fred di Giacomo Rocha narra, de forma ficcional, a atuação de um grupo de policiais comandados por João Antônio de Oliveira, o Tenente Galinha.
Sob a justificativa de caçar “bandidos” no interior de São Paulo, os homens de Galinha atravessavam o estado no início do século XX promovendo crimes bárbaros, como chacinas e estupros em série. Sempre em nome da lei, do estado, da justiça e da moralidade, é claro.
O livro é um romance, mas Galinha existiu de fato. No site da Polícia Militar de São Paulo, a PMESP, inclusive, em sua parte dedicada aos “vultos históricos” que honram a corporação, o agente ganha destaque.
“Personagem polêmico”, diz o portal da PMESP, “sua fama antecedia sua presença física, atemorizando os delinquentes que, à época, assolavam os sertões paulistas, então em sua fase pioneira de colonização”.
Essa mesma instituição que celebra a figura de Tenente Galinha está no centro de duas medidas anunciadas pelo governo estadual de extrema-direita comandado pelo militar da reserva Tarcísio de Freitas, do Republicanos, na semana passada.
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A primeira foi o fortalecimento do programa “Muralha Paulista”, que busca consolidar uma mega estrutura de monitoramento. A ideia é interligar câmeras públicas e privadas, dando à polícia um amplo poder de vigilância.
Apresentado como um “Big Brother” da PM de São Paulo, a iniciativa se baseia na ideia de que a tecnologia do reconhecimento facial seria uma grande aliada no combate à criminalidade. A empresa árabe contratada para implementar o programa tem como representante no Brasil Marcos Degaut, ex-secretário do Ministério da Defesa do governo Bolsonaro.
A instalação das câmeras corporais a partir de 2020 levou a uma redução de mais de 60% na letalidade policial.
A segunda foi a publicação de um novo edital para as câmeras corporais utilizadas pela PMESP, com a previsão de que os próprios agentes possam desligar os equipamentos durante as operações. A medida acaba com aquela que era uma das principais características do programa de câmeras nas fardas dos policiais implementado no governo anterior: a gravação ininterrupta.
É inevitável, diante dos anúncios, colocar a questão sobre o porquê a vigilância sobre os cidadãos cresce na mesma medida em que o controle sobre os agentes do estado diminui. A pergunta se torna ainda mais necessária quando encaramos alguns fatos tanto sobre as câmeras corporais quanto sobre o reconhecimento facial.
Em uma nota à imprensa, entidades da sociedade civil como o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Instituto Vladimir Herzog e grupos acadêmicos como o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos da UFF, reagiram.
Elas lembram que a instalação das câmeras corporais a partir de 2020 levou a uma redução de mais de 60% na letalidade policial. O texto reforça, ainda, que a medida permitiu também uma diminuição drástica no número de policiais mortos em serviço.
Os resultados positivos da implementação das câmeras contrastam radicalmente com os sucessivos equívocos das tecnologias de reconhecimento facial.
Recentemente, alguns casos tiveram grande repercussão, como a prisão de um homem no meio de um jogo de futebol em Aracaju e duas prisões realizadas no Reveillon de Copacabana, no Rio de Janeiro.
Esses são exemplos que se tornaram célebres, mas estão longe de serem exceções. O viés racista das tecnologias de reconhecimento facial tem sido amplamente denunciado por organizações de direitos humanos e pesquisadores, que defendem que esses mecanismos não trazem benefícios que justifiquem seu uso.
O caso de amor entre a extrema-direita e a violência policial
Vivemos num tempo em que o imperativo da eficiência costuma se impor. Mesmo diante de momentos de grave crise, como na pandemia ou agora na tragédia socioambiental no Rio Grande do Sul, há quem olhe mais para as planilhas do que para as vidas e reivindique que os gastos públicos devem ser rigidamente controlados.
Uma das expressões desse imperativo é a ideia de “políticas públicas baseadas em evidência”, jargão muito comum de ser encontrado, por exemplo, nos discursos de quem diz querer “romper a polarização” e coisas do tipo.
Dessa forma, pareceria fazer pouco sentido a resistência do governo Tarcísio, por exemplo, em relação às câmeras corporais. Os dados gritam que as câmeras corporais levaram a uma redução imediata nas mortes causadas por agentes do estado.
A questão é que a decisão do governador de São Paulo só parece incoerente para quem realmente acredita que o problema da segurança pública e da violência policial é de ordem técnica. Não é. É uma questão política.
Ao contrário do que os discursos neoliberais tentam nos vender, não há critérios objetivos e externos que definam o que é uma política pública bem sucedida ou não. Esses parâmetros são sempre estabelecidos como resultado de disputas sociais e políticas em torno do que o estado deve fazer e como deve se dar sua ação.
O que precisa ficar evidente, portanto, é que para Tarcísio e para a parcela da sociedade que ele representa, uma política de segurança pública bem sucedida não é aquela que tem como resultado uma diminuição da violência – seja a praticada por agentes do estado, seja a que se volta contra os próprios policiais.
O militar de extrema-direita se alimenta dessa violência e depende dela para se eleger, se manter em evidência e se cacifar como sucessor do seu ex-chefe Jair Bolsonaro.
Portanto, o resultado esperado das ações da Polícia Militar do Estado de São Paulo sob seu comando é exatamente o que está ocorrendo: mais mortes, mais brutalidade, mais truculência, mais racismo, menos controle externo, menos transparência, menos responsabilização.
É claro que, diante da necessidade de convencer outros setores da opinião pública nos debates imediatos, o recurso aos dados e às evidências empíricas é fundamental.
Nesse sentido, o trabalho feito pelas entidades da sociedade civil e pelos grupos acadêmicos de chamar a atenção para os efeitos positivos das câmeras corporais e negativos do reconhecimento facial é imprescindível.
Mas se a questão não é técnica, e sim política, isso significa que não haverá superação possível do cenário de violência policial sem uma disputa explícita em torno dos critérios do que significa uma política bem sucedida de segurança pública.
No entanto, parece que, eleição após eleição, nossas forças progressistas perdem a capacidade e a coragem de fazer esse debate.
Em 1982, ainda sob a vigência de um regime autoritário, ocorreram as primeiras eleições gerais para governadores de Estado depois de anos de ditadura.
Hoje, é quase revolucionário defendermos câmeras nos uniformes dessa mesma polícia.
Na ocasião, candidatos como Leonel Brizola, no Rio de Janeiro, e Franco Montoro, em São Paulo, foram eleitos defendendo de forma explícita a limitação das operações policiais em favelas e profundas reformas nas polícias e nas prisões, respectivamente.
Ainda que de maneiras distintas, fato é que eles enfrentaram a corrida eleitoral defendendo uma ampliação do discurso dos direitos humanos.
Se na década de 1970 essa retórica havia servido para libertar os chamados presos políticos e garantir o retorno dos exilados, Brizola e Montoro afirmavam ali que a proteção contra a violência do Estado deveria ser estendida também para outros setores da população, como os moradores de periferias e as pessoas privadas de liberdade.
Hoje, o primeiro recuo de qualquer candidato de esquerda quando este percebe que há alguma chance de se eleger para o poder executivo se dá exatamente no campo da segurança pública.
Defender que a polícia não deve matar – nem mesmo supostos “bandidos” – ou que pessoas presas têm direitos já parece muito. Imagine então adotar bandeiras como o fim das polícias militares ou o desencarceramento.
O problema é que cada recuo deste campo representa um avanço do outro lado. Em 2013, se tornou célebre a palavra de ordem: “não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da polícia militar”. Hoje, é quase revolucionário defendermos câmeras nos uniformes dessa mesma polícia.
Enquanto isso, os aparelhos da violência do estado vão apenas acumulando mais camadas numa longa trajetória de promoção da barbárie – do Tenente Galinha a Tarcísio de Freitas. Afinal, é como nos diz o autor de Gambé: “E quanto mais os vivos matam, mais surdos ficam ao apelo dos que morreram”.
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