A vitória no domingo, 2, da progressista Claudia Sheinbaum, primeira mulher eleita presidenta do México com quase 60% dos votos, era uma questão de tempo.
Quase todas as pesquisas de intenção de voto mostravam que a ex-chefe de governo da Cidade do México, ex-militante estudantil e cientista de formação mantinha uma vantagem confortável sobre os partidos conservadores tradicionais, munindo-se dos altos índices de aprovação de sua gestão na capital e da popularidade do atual governo do presidente Andrés Manuel López Obrador.
A vantagem da candidata era tão clara a meses da votação que três das principais legendas de oposição até se uniram em uma coalizão de ocasião para tentar destronar o Movimento Regeneração Nacional, o Morena, partido de esquerda que ocupa a presidência do México desde 2018.
A eleição do final de semana também teve um fator cada vez mais incomum considerando processos eleitorais latino-americanos: a ausência de nomes de extrema direita.
Em vez disso, a votação ficou reduzida a uma rara disputa virtual entre duas mulheres: Sheinbaum e a ex-senadora Xóchitl Gálvez, líder de uma coalizão de centro-direita que ficou em segundo lugar com pouco mais de 28% dos votos representando o pacto opositor.
O simbolismo da vitória de Sheinbaum na votação de turno único se une aos inúmeros desafios pelos quais passa o segundo maior país da América Latina, de acordo com Luciana Panke, pesquisadora e pós-doutorada em Comunicação Política pela Universidade Autônoma Metropolitana, a UAM-México, além de autora do livro “Campanhas Eleitorais para Mulheres”, lançado em 2016.
Destaque para o assassinato de pelo menos 22 candidatos durante o atual ciclo eleitoral, número oficial contestado por entidades defensoras de direitos humanos – que denunciam cifras duas vezes maiores.
À violência endêmica, que passou a decolar após a adoção de políticas onerosas e ineficazes na área de segurança pública durante antigos governos de direita, como já retratado pelo Intercept Brasil, somam-se desafios em temas sociais, econômicos e de representatividade para grupos historicamente marginalizados.
Enquanto o México enfrenta uma nova crise hídrica causada por uma severa onda de calor, a experiência acadêmica da presidenta eleita — doutora em Engenharia Energética e ex-integrante do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (conhecido como IPCC, na sigla em inglês) — também pode ser crucial para o futuro do país.
Leia a entrevista da Luciana Panke ao Intercept Brasil.
Intercept – A esquerda venceu no México com enorme folga. Como se deu o processo que culminou com a eleição da Claudia Sheinbaum?
Luciana Panke – Com a vitória da Claudia Sheinbaum, notamos um fenômeno que se repete: quem assume a chefia de governo da Cidade do México geralmente é favorito à presidência.
Foi assim também com o atual presidente, Andrés Manuel López Obrador, personagem bastante conhecido na política mexicana. Ele concorreu diversas vezes, assim como o Lula no Brasil, e fundou o Movimento Regeneração Nacional, de esquerda, após uma ruptura com o Partido da Revolução Democrática, o PRD. Porém, quando ele se elege, começa a demonstrar traços de populismo autoritário, gerando descontentamento com o eleitorado mais progressista.
‘A extrema direita não teve espaço, nem para fazer seus tradicionais ataques.’
Até então, o México tinha uma tradição bipartidária. O Partido Revolucionário Institucional, o PRI, ficou no poder ininterruptamente durante 70 anos, como uma espécie de ditadura legalizada — até ser derrotado pelo Partido da Ação Nacional, o Pan [no ano 2000]. Depois, o PRI voltou. Foram necessárias várias pequenas rupturas para que o Morena chegasse ao poder.
Qual tem sido o segredo do partido Morena para desbancar as forças políticas tradicionais?
O Morena reuniu dissidentes de outros partidos, especialmente de uma ala progressista. A figura de López Obrador — embora muito criticado — é quem consegue reunir essas dissidências, com uma base popular muito forte.
Na presidência, López Obrador fez um governo mais de centro, populista e até autoritário. Fez muitos ataques à imprensa, foi negacionista durante a pandemia e recorreu à militarização. Porém, o governo criou grandes políticas de assistência social, sobretudo aquelas voltadas para a terceira idade. Isso sustentou a gestão atual.
Ao contrário do que vimos em outras partes da América Latina, a extrema direita não teve um papel relevante nesta votação presidencial. Por quê?
Foi um fator surpreendente. Por causa da coalizão opositora formada por PAN, PRI e PRD, até então ‘inimigos eternos’, alguns radicalismos se assentaram. A extrema direita não teve espaço, nem para fazer seus tradicionais ataques. Ao mesmo tempo, a aliança opositora perdeu a identidade ao tentar unir forças tão distintas.
O nível de abstenção também foi muito alto. Como as eleições não são obrigatórias, muitas urnas estavam vazias, com pouca gente. Pouco mais da metade da população compareceu à votação. Isso pode ser um reflexo de um descontentamento tanto com o governo quanto com a falta de identidade das candidaturas.
Qual tem sido a participação e a representatividade das mulheres no processo eleitoral mexicano?
É um fato inédito e extremamente favorável para o México e para toda a América Latina: duas mulheres lideraram a disputa, uma no campo da direita e outra na esquerda. Não tivemos nada assim na região, e isso pode motivar novas eleições com mulheres como protagonistas.
O México é um exemplo na implementação de políticas públicas focadas na igualdade de gênero nas eleições. É um dos países com maior representatividade de mulheres no Legislativo. Por isso, a chegada de uma mulher à presidência reforça um papel simbólico da presença feminina na política mexicana.
O que essa vitória da esquerda mexicana representa para a América Latina e, particularmente, para o Brasil?
Há 10 anos, a região tinha quatro mulheres na presidência, todas com viés mais progressista. Mas isso foi mudando com o passar do tempo e a saída delas do governo. Esses movimentos liderados por Jair Bolsonaro, Javier Milei e outros nomes da extrema direita também movimentaram todo o cenário político, com excesso de violência política. Isso mexeu com a região inteira, afetando as economias e as relações internacionais.
A chegada de uma nova presidenta é muito significativa: é mulher, de esquerda e ambientalista. A Claudia Sheinbaum é um símbolo de esperança e pode abrir a porta para outras candidaturas de mulheres.
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