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Capanga de fazendeiro transmite tortura ao vivo

Contratado para medir fazenda em área pública, vítima foi torturada com outros três camponeses. Ele contou sua história ao Intercept.

Ilustração: Paula Villar/Intercept

Amazônia Sitiada

Parte 7


A internet via satélite Starlink, do bilionário Elon Musk, foi usada por milicianos para comunicar em tempo real uma sessão de tortura ao suposto mandante em Boca do Acre, no Amazonas. O crime aconteceu em 29 de fevereiro deste ano.

As vítimas foram o agrimensor Bruno Alceu Bonfim Tabuti e outros três camponeses. Tabuti denunciou a violência à Polícia Civil e ao grupo de prevenção e combate à tortura do Ministério Público do Acre.

Desde que Elon Musk iniciou seu plano de expansão no Brasil, várias denúncias mostram que a Starlink tem sido usada por criminosos, inclusive para driblar a fiscalização ambiental do governo. O Ibama já encontrou 90 destes aparelhos em operação em garimpos ilegais em um ano.

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A empresa de internet via satélite de Musk domina a região amazônica, com antenas em 90% dos municípios. Boa parte delas em fronteiras e regiões remotas, onde não há serviço de banda larga, e em áreas onde já foram apreendidos ouro, armas e munições em operações da Polícia Federal e do Ibama. 

E o problema não é só no Brasil: o uso da internet da Starlink por quadrilhas também levanta preocupação em países em conflitos na África e na Ásia.

A parceria entre Musk e o governo brasileiro foi firmada em maio de 2022, no então governo de Jair Bolsonaro. Segundo o ministro das Comunicações na época, o ex-deputado federal Fábio Faria, do PP, o objetivo era usar “tecnologia avançada para a preservação da floresta amazônica, com monitoramento de desmatamentos e incêndios ilegais”. 

Na ocasião, Musk disse que estava “super empolgado por estar no Brasil para o lançamento do Starlink para 19 mil escolas desconectadas em áreas rurais e monitoramento ambiental na Amazônia”. 

A concessão para a empresa operar no Brasil havia sido liberada em uma reunião extraordinária da Agência Nacional de Telecomunicações, a Anatel, em janeiro daquele ano. Os projetos para as escolas e para o monitoramento ambiental não saíram do papel. Seu uso por criminosos, sim.  

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O caso de Tabuti ilustra o problema. O agrimensor havia sido contratado por assentados no Acampamento Marielle Franco, que fica dentro de uma área em disputa em uma fazenda em Boca do Acre. O fazendeiro Sidney Sanches Zamora Filho afirma que os acampados são os responsáveis por uma área desmatada, que já rendeu à fazenda uma multa do Ibama. 

Os acampados negam, e chamaram Tabuti para desmontar a versão do fazendeiro. O agrimensor foi contratado para demonstrar que a área desmatada não tinha relação com as ações dos moradores, e seriam de responsabilidade do pecuarista. Quando chegou ao local para realizar o trabalho, o grupo foi interceptado por homens armados não identificados. 

Procurado, o advogado Marcelo Feitosa Zamora, que defende o fazendeiro, afirmou que seu cliente desconhece esses fatos e negou que eles tenham pistoleiros ou milicianos a seu serviço.  

Segundo Feitosa Zamora, a segurança da fazenda é feita por uma empresa privada e os proprietários não sabem quais os armamentos usados. “Ao que sabemos, a empresa disponibiliza apenas dois vigilantes para fazer a proteção dos funcionários”, afirma.

Leia, a seguir, o depoimento de Tabuti.

Estávamos indo pegar as coordenadas de uma série de desmatamentos que os sem-terra haviam denunciado em dezembro e janeiro. Muitas famílias dentro do Acampamento Marielle Franco trabalham com o extrativismo de castanha. É uma atividade sazonal, apenas nesses dois meses por ano. 

Na época da coleta, os trabalhadores viram muitas árvores derrubadas e madeira já serrada. Principalmente Canelão e Castanheira, uma espécie ameaçada de extinção cujo corte é proibido. 

A gente queria mostrar aos órgãos ambientais que havia desmatamento, sim, e que os responsáveis pela derrubada das árvores não tinham nada a ver com o acampamento. A localização exata foi um pedido dos próprios fiscais para quem a denúncia foi feita.

Nós quatro estávamos caminhando em um ramal entre duas áreas de pasto da Fazenda Palotina quando fomos abordados por cinco homens armados com pistolas e escopetas calibre 12. Eles estavam vestidos com roupas camufladas, toucas e coletes à prova de balas. 

Vinham em um carro de passeio e um quadriciclo. Dava para perceber a antena da Starlink no carro. Trabalho muito na zona rural e é bem comum vermos este tipo de equipamento nos veículos. A antena dá para ver de fora e a bateria fica dentro do carro.

‘Eles devem ter saído com o equipamento de internet apenas para mostrar ao vivo que o serviço estava sendo feito.’

Eles nos renderam, colocaram todo mundo de joelhos e começaram a agredir com socos, chutes e golpes de facão, no rosto, na cabeça, nas costas e nas nádegas. Pegaram os nossos documentos, anotaram nomes, perguntaram os endereços e fotografaram os rostos de cada um. Mandaram a gente ficar com a cabeça no chão e seguiram com as agressões.

Minutos depois, eles usaram o serviço da Starlink para fazer uma videochamada. Na transmissão, um dos agressores perguntou: “É assim que o senhor quer que faça, doutor Sidnei?” Não conseguimos ouvir a resposta, nem temos condições de saber se a chamada foi para o pai, Sidnei Sanches Zamora, ou para o filho. 

Também não dá para saber onde os mandantes estavam durante a agressão. Mas eles devem ter saído com o equipamento de internet apenas para mostrar ao vivo que o serviço estava sendo feito. A conversa durou poucos minutos.

Eles dispararam tiros na horizontal em direção à floresta e nos perguntavam quem havia mandado a gente ir lá. Já tínhamos visto aquele veículo outras vezes, o que reforça a ligação dos pistoleiros com o fazendeiro. Em dezembro, quando o Zamora Filho chegou a dar tiros durante uma discussão dentro do assentamento, o pai dele falou que eles teriam de chamar o “Bope”. 

Pelo que sabemos, não existe um batalhão com este nome no Amazonas nem no Acre. O uso da expressão parece ser uma alusão ao Batalhão de Operações Policiais Especiais do Rio de Janeiro, que virou símbolo de violência policial depois da exibição do filme “Tropa de Elite”.

A ligação deles com o pessoal da fazenda também ficou evidente assim que nos abordaram, pouco antes da transmissão. A gente estava rendido no chão quando passou um trator que trabalhava lá. Os jagunços conversaram com o tratorista antes de iniciar a sessão de tortura, como se nada estivesse acontecendo. A gente não conseguiu ouvir sobre o que eles conversavam.

Além de nos agredirem, os jagunços atiraram contra a mala em que carrego meu equipamento de trabalho. Depois, eles ainda usaram um terçado para destruir tudo o que encontraram na mala. Enquanto golpeava, um deles ainda me provocava: “Não quer salvar seu equipamento?” Como se eu pudesse pôr as mãos na frente do terçado para evitar a quebra dos aparelhos sem que ela fosse decepada.

Eles destruíram uma coletora de dados para GPS RTK e um GPS Garmin Montana 750i. Em valor de nota, os dois somados custam em torno de R$ 16 mil. Mas o meu prejuízo financeiro é bem maior. Não estou conseguindo trabalhar como agrimensor desde então. Não sei se vou conseguir voltar neste ano.

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