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Plano Real 30 anos: estabilização cobrou uma fatura alta

Nos 30 anos do Plano Real, devemos comemorar o fim da inflação, sem esquecer que ele custou caro: nossa indústria e dívida externa.


Nessa semana, rememoramos os 30 anos do Plano Real, o “maravilhoso” plano de estabilização que pôs fim à maldita herança inflacionária do endividamento exacerbado da política econômica da Ditadura Militar.

Essa síntese é perfeita, construída para caber como uma luva aos planos do neoliberalismo que tinha sentado na cadeira do rei pouco antes, no governo Collor.

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Como toda a consolidação de um novo processo político e econômico, o neoliberalismo também precisava de uma historinha bonita que o sustentasse.

Em resumo: boas cabeças pensantes arquitetaram um plano. Esse plano começou com um forte ajuste fiscal. E, enfim, derrotou uma inflação que teve origem em um endividamento motivado por excesso de gastos e falta de disciplina com as contas públicas.

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Em primeiro lugar, antes de falar do plano em si, é importante lembrar que todas as economias periféricas, em especial as latino-americanas, vivenciaram cenários de hiperinflação ou de inflação elevada na mesma época e, assim como a brasileira, também experienciaram planos diversos de estabilização, todos fracassados.

É bom lembrar, também, que todas elas se estabilizaram no mesmo período.

Seria muita coincidência que todas elas tivessem vivenciado inflações elevadas, por volta dos anos 1980, por problemas no balanço de pagamento, basicamente por endividamento externo, no mesmo período.

E ainda mais coincidência se todas tivessem desenvolvido célebres geniais, capazes de elaborar os melhores planos e estabilizar suas economias, também no mesmo período, por volta de fins dos anos 1980 e início dos anos 1990.

Como não acredito em coincidências, fico com aqueles analistas de economia política internacional que creditam ao cenário externo e ao retorno do ciclo de liquidez na economia mundial como o principal elemento que vai explicar por que o Plano Real “deu certo”. E o Plano Cruzado, com características parecidas, em que pese haver congelamento de preços, não.

A arquitetura do Plano Real cobrou uma fatura elevada.

Inclusive, os dois planos contaram com perspectivas teóricas muito parecidas, com parte dos mesmos cérebros pensantes.

Em síntese, no início e meados dos anos 1980 os fluxos internacionais de capitais estavam restritos, sobretudo em função da desestabilização mundial provocada pelo aumento da taxa de juros americana e a política de sobrevalorização do dólar, cenário radicalmente distinto no final da década.

Fonte: Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, a Cepal; Fundo Monetário Internacional, o FMI, e Oxford.

Obviamente, a elaboração do Plano Real foi genial. Primeiro, ele identificou a inflação inercial, isto é, os agentes de mercado aumentando preços por conta das expectativas tanto passadas quanto futuras da inflação.

O dono da loja aumenta o preço das mercadorias antes mesmo de saber que precisará, apenas porque sabe que amanhã todos também aumentarão o preço.

Mas nenhum plano genial, com lenta adoção da Unidade Real de Valor, a URV, como medida de transição, daria certo sem condições objetivas. No caso, a maior disponibilidade de capital internacional.

A âncora de sustentação do plano era a cambial, o que só seria possível com atração monumental de moeda estrangeira, portanto, com a existência de substanciais fluxos internacionais de capitais vertendo para a periferia.

A estabilização foi uma vitória fundamental para que os salários pudessem manter poder de compra e a moeda brasileira superasse o que poderia ser uma inevitável crise de confiança. Mas a arquitetura do Plano Real cobrou uma fatura elevada.

Com os juros na estratosfera, não havia qualquer incentivo para que as empresas investissem aqui.

Antes de criar uma nova moeda, foi feito um forte ajuste fiscal das contas públicas e estipulado que R$ 1 valeria aproximadamente o mesmo que US$ 1. Além disso, o Brasil teve que atrair substanciais recursos externos. O que implicou contrair dívida externa, queimar o pouco que detínhamos de reservas externas e, sobretudo, atrair esses capitais via diferenciais de juros internacionais.

Para vocês terem uma ideia, a taxa de juros chegou a ser de 45%. Hoje, ela é de 10,50%, persistentemente uma das maiores do mundo.

Como entravam muitos dólares na economia brasileira, incentivado pelos ganhos especulativos com os diferenciais de juros , os produtos importados também ficavam mais competitivos.

Mais ainda, com os juros na estratosfera, não havia qualquer incentivo para que as empresas investissem aqui, nem para as que já estavam alocadas sobrevivessem, já que o custo do crédito não as permitia, nem mesmo, financiar o capital de giro.

Some-se a tudo isso não somente a inexistência de uma política industrial nesse período, mas o seu contrário, a entrada de cabeça do Brasil na era da globalização produtiva, comercial e financeira.

O resultado foi a falência da indústria nacional. Perdemos diversos elos das importantes cadeias produtivas que havíamos desenvolvido ao longo do nosso período industrialista.

Portanto, a âncora cambial, a rápida abertura comercial e o dólar valorizado limitaram o crescimento, quebraram empresas e setores produtivos nacionais, reduziram as exportações e aumentaram as importações.

O país passou a importar muito mais do que exportava, um desequilíbrio contornado temporariamente com uma taxa de juros extremamente alta para atração de dólares.

Em 1998, esses desequilíbrios levaram FHC ao FMI para pedir cerca de 40 bilhões de dólares emprestado e assim garantir a sobrevivência da âncora cambial e sua reeleição. 

Nas palavras de Celso Furtado, os economistas brasileiros nem ficaram vermelhos de vergonha ao comemorar que trocamos uma inflação por dívida externa e comprometimento do nosso crescimento econômico.

Parecia que essa era a única saída e, sobretudo, que ela não carregava desafios de longo prazo. Aliás, para os entusiastas do neoliberalismo, as heranças malditas não eram “efeitos colaterais”, senão que externalidades positivas, faziam parte do pacote.

Estabiliza a economia e, de quebra, alinha-se o Brasil às boas práticas propostas no Consenso de Washington. 

Por fim, cabe mencionar que o desemprego aberto medido pelo IBGE aumentou mais de 50% entre 1994 e 1998, efeito direto do desaquecimento econômico e da tendência de queda no crescimento do PIB, que em 1998 foi de apenas 0,13%.

Cabe dizer ainda, que ocorreu um visível aumento da dívida líquida do setor público, explicitado pelo crescimento de cerca de 40% da relação dívida líquida/PIB entre 1994 e 1998, além de uma quebra significativa do investimento produtivo e da indústria de transformação.

Apontar essas “heranças malditas” não é negar a importância fundamental e prioritária da estabilização monetária. O término da hiperinflação foi, sem dúvida, fundamental para o futuro do país, para o crescimento dos salários e, sobretudo, para a redução da pobreza.

No entanto, seu grande mérito não pode nublar seus efeitos nefastos. Havia saídas, e elas ainda urgem.

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