Ilustração: Giovana Abreu/Intercept Brasil

Spotify recomenda pagode com negacionismo eleitoral

Usuários relatam que plataforma tem indicado sambista que canta versos como “ninguém mais bota fé no TSE” — algo que o próprio Spotify diz proibir.

Ilustração: Giovana Abreu/Intercept Brasil

O que deveria ser uma simples tarde de lazer acabou se transformando em um susto para o programador paulistano Vinícius Ferreira, de 32 anos. Em junho deste ano, ele pegou o celular e colocou para tocar no Spotify uma versão de Zeca Pagodinho para o clássico samba “Brincadeira tem Hora”. Logo depois, se afastou do aparelho, permitindo que a plataforma selecionasse outras faixas automaticamente.

Após alguns minutos, um samba que ele nunca tinha ouvido começou a tocar na caixa de som. “Xandão tem toda culpa de o Brasil ficar desconfiado. É eles mesmos que fazem a contagem que faz o resultado da apuração,” cantava o artista Boca Nervosa, até então desconhecido. “Ninguém mais pode desconfiar das urnas, virou um crime na nossa nação. Perdeu mané, o povo tá desconfiado e ninguém mais bota fé nesse TSE”.

Vinicius ouviu aqueles versos incrédulo. Na hora, gravou um vídeo da tela do seu celular, onde se confirmava a recomendação da música “Pagode do Barroso” pelo Spotify. E ele não foi o único. No Twitter, há pelo menos outros sete relatos recentes de assinantes que, ao ouvirem pagodes tradicionais, tiveram indicação de Boca Nervosa.

A recomendação pelo algoritmo do Spotify chama a atenção porque, em maio de 2022, a plataforma e o TSE firmaram uma parceria para combater a desinformação durante as eleições. 

De acordo com o documento, o Spotify se comprometeu a disponibilizar recursos que direcionassem os usuários para informações relevantes sobre as eleições, além de agir para derrubar conteúdos que violassem a integridade do processo eleitoral.

Além disso, um dos trechos dos termos de uso do serviço de streaming é específico ao dizer que usuários não devem publicar conteúdos que tentem manipular ou interferir nos processos eleitorais. Por exemplo, produções que representem de forma deturpada os processos cívicos e desencorajem a participação das pessoas nas eleições. 

Fizemos contato com o Spotify e enviamos exemplos das músicas de Boca Nervosa que pareciam descumprir as regras da plataforma. Por meio de uma ligação telefônica, um assessor de imprensa da empresa me disse que a plataforma “revisou o conteúdo das músicas mencionadas” e, mesmo assim, optou pela manutenção das faixas em seu serviço. Pedi a eles um comunicado público com essa informação. Mas eles não toparam nos enviar. Mesmo assim, o espaço segue aberto para manifestações. 

‘Pagode do Bolsonaro Inelegível’

“Pagode do Barroso” foi lançado em setembro de 2023 por Edmar Marques da Silva, conhecido artisticamente como Boca Nervosa. Mas aquela não era sua primeira composição do tipo. Meses antes, em junho de 2023, o compositor tinha lançado uma música sobre o julgamento do Tribunal Superior Eleitoral, o TSE, que tornou o ex-presidente Jair Bolsonaro inelegível.

Na letra, o sambista faz afirmações notadamente falsas. Entre elas, a de que o TSE, institutos de pesquisa eleitoral e Alexandre de Moraes teriam “apoiado” Lula. Além disso, dissemina desconfiança sobre o resultado eleitoral, dizendo que nem Jesus Cristo venceria o candidato petista.

“Vocês levaram dessa vez essa eleição.

Juntando todos os partidos, vai pensar o capitão.

Teve apoio do TSE e do Xandão.

De Instituto de Pesquisa, e toda a mídia que apoia ladrão.

Nesse jeito nem Jesus ganharia essa eleição”

Trecho da música “Pagode do Bolsonaro Inelegível”, de Boca Nervosa.

Em outro samba, sobre o Supremo Tribunal Federal, Boca Nervosa afirma que chegou a ter suas contas nas redes sociais derrubadas. No entanto, ele segue com perfis ativos em todas as redes sociais. No Instagram, onde destaca como publicação fixada uma fotografia ao lado de Bolsonaro, tem quase 30 mil seguidores.

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Natural de Olímpia, no interior de São Paulo, Boca Nervosa tem quase 40 anos de carreira no pagode. Chegou a fazer breves participações em programas televisivos, como os de Jô Soares e de Tom Cavalcante, por causa de suas músicas com letras satíricas

Em 2016, o artista enveredou-se para temas políticos com o álbum “Diário da Corrupção”, pela Radar Records. A faixa “Não é nada meu” sugere falsamente que Lula teria um filho milionário e o clipe, com animações usando fotos de Lula e Dilma Rousseff, ultrapassa 400 mil visualizações no YouTube. 

“E aquela ilha que o senhor descansa?

É de um amigo meu…

Quem paga a sua conta e suas mordomias?

São uns amigos meus…

E aquele jatinho que o senhor usa?

É de um amigo meu…

E aquele filho milionário?

Excelência, também não é meu…”

Trecho da letra de “Não é nada meu”, de Boca Nervosa.

Nas redes sociais, além de fotos com Bolsonaro e ícones da extrema direita brasileira, Boca Nervosa oferece serviços para a criação de jingles eleitorais. Um de seus clientes mais ilustres, por sinal, foi Javier Milei. O atual presidente da Argentina contratou ao sambista brasileiro um jingle da sua campanha de 2023, o que acabou rendendo ao compositor entrevistas para diversos veículos, como a CNN Brasil.

O Intercept tentou contato com Boca Nervosa, mas não obteve retorno.

Negacionismo eleitoral é baseado em plantar dúvidas

A indicação das músicas pelo Spotify nos fez procurar especialistas em negacionismo eleitoral para entender os perigos do discurso de Boca Nervosa em suas músicas. A cientista política Flávia Pellegrino, coordenadora-executiva no Pacto pela Democracia, explicou que a descredibilização de processos eleitorais é baseada na disseminação de dúvidas, não em provas — exatamente como faz o sambista.

“O negacionismo eleitoral é um processo complexo e muito difícil de ser enfrentado, até porque sua emergência não é baseada em fatos, indícios ou provas de qualquer vulnerabilidade do sistema, mas por afirmações infundadas que facilmente cumprem seu objetivo. Isso porque não se trata de atestar fraudes, mas estimular a mera suspeição acerca do sistema já é suficiente para que o negacionismo eleitoral ganhe forma e força dentro da sociedade”, resumiu Flávia Pellegrino.

A cientista política também relembrou a gravidade das consequências desse tipo de discurso: “A tentativa de ruptura democrática que vivemos em 8 de janeiro de 2023, por exemplo, foi um reflexo direto deste processo falacioso de desestabilização, descrédito e deslegitimação do processo eleitoral de 2022. Ou seja, ele efetivamente coloca a democracia em xeque no nosso país”, concluiu.

Pellegrino ainda falou sobre como o poder público não deve sucumbir à inoperância das plataformas em regular esse tipo de discurso. “Falar sobre a importância da regulação das plataformas é falar sobre a necessidade de proteção da integridade da informação na esfera pública brasileira”, finalizou a coordenadora do Pacto pela Democracia.

A jornalista Liz Nóbrega, que investiga o tema na plataforma de pesquisadores Desinformante, também expressou preocupação com o fato de que o algoritmo do Spotify sugira canções com as de Boca Nervosa. “A música deixa de  ser um conteúdo que simplesmente foi publicado por um artista e passa a ser referenciada e recomendada pela plataforma. Isso altera o modelo de circulação de um conteúdo normal, ganhando tração”, argumentou.

“Fomos verificar as políticas do Spotify e não existem políticas claras sobre isso. As regras são abrangentes, proíbem apenas conteúdos ilegais. Mas isso abre um leque delicado, porque quem compreende e define a ilegalidade no nosso sistema é o sistema jurídico, não a plataforma. Isso ocorre porque não há mecanismos regulatórios que tragam parâmetros para plataformas considerarem na moderação do seu conteúdo e na formulação de suas políticas”, refletiu Nóbrega.

 Spotify já assumiu que não atua de forma transparente

Em janeiro de 2022, após um movimento de boicote iniciado pelo cantor canadense Neil Young contra podcasts antivacina, o Spotify anunciou medidas para combater a desinformação sobre a Covid-19, como incluir links confiáveis em episódios que mencionassem o vírus  direcionando os usuários para informações científicas verificadas.

Em um comunicado divulgado na ocasião, o sueco Daniel Ek, presidente e fundador do Spotify, destacou que a produção e difusão de informações falsas representam riscos à sociedade e admitiu que a plataforma não atuava de forma transparente.

“Você deve ter visto nos últimos dias diversos questionamentos sobre as políticas da plataforma e as linhas que nós desenhamos entre o que é aceitável e o que não é. Nós colocamos as regras no lugar por muitos anos mas assumidamente não fomos transparentes sobre quais políticas guiam nosso conteúdo a todos”, escreveu o empresário. 

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