Desde o início da represália israelense contra o Hamas em Gaza, há muito debate sobre o que é genocídio. Já se sabe que a África do Sul atualmente está processando o estado de Israel por genocídio na Corte Internacional de Justiça, a CIJ. Para muitos, a acusação é exagerada.
Na minha primeira coluna para o Intercept Brasil, eu queria refletir sobre o que é genocídio e por que é tão difícil definir esse termo.
Em termos simples, genocídio é o assassinato ou o atentado grave contra a integridade física e mental de membros de um grupo nacional, étnico, racial ou religioso com a intenção de destruí-lo, no todo ou em parte.
A ideia é simples, mas sua aplicação é complexa. Normalmente, genocidas não andam pela rua falando “oi, eu estou cometendo um genocídio”. A prova dessa intenção especial de destruição, então, requer uma interpretação por parte das cortes baseada na conduta.
A maioria dos países do mundo já cometeu genocídio.
Na sua jurisprudência, porém, a CIJ tem determinado que essa intenção só pode ser encontrada quando é a “única inferência razoável” da conduta analisada. Então, para a CIJ, não seria genocídio se o ato suspeito pode ter ocorrido com a intenção de “evangelizar povos indígenas”, ou faz parte de um “programa de planejamento familiar”, ou, no caso israelense, faz parte de uma operação militar para “destruir o Hamas”.
Não existe motivo algum para a CIJ ter decidido esse padrão e não outro mais flexível. Foi uma simples escolha por parte da maioria. De fato, nesse tempo, o juiz brasileiro da corte, Antônio Augusto Cançado Trindade, protestou contra a decisão numa famosa opinião discordante.
Na sua avaliação, a CIJ “tem insistido em prosseguir, um nível de prova demasiado elevado para a determinação da ocorrência de genocídio”. Para o famoso juiz mineiro, a decisão da corte “milita contra o bom exercício da função judicial internacional”.
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Mais comum do que você imagina
Qual seria o incentivo para estabelecer essa definição? O genocídio é entendido pela nossa sociedade como o crime dos crimes – o maior ato criminoso da humanidade. Sendo assim, não é qualquer coisa que pode ser genocídio.
O genocídio, no imaginário popular, não é frequente. Aconteceu só no Holocausto e em Ruanda. Mas isso não é verdade. Genocídio é comum. De fato, a maioria dos países do mundo já cometeu genocídio.
O Brasil, por exemplo, cometeu genocídio contra os povos indígenas da Amazônia nos anos 1960. O Peru, meu país, cometeu genocídio contra o povo Matsé também nos anos 1960. Porém, segundo a definição da CIJ, esses não são genocídios porque seria razoável concluir que os nossos países não prosseguiam a destruição da população indígena, mas “só” o seu “desenvolvimento e aculturação na sociedade moderna”.
A matança não seria então a “única inferência razoável” da conduta brasileira e peruana. Obviamente, isso é absurdo. Por que então a CIJ escolheu esse padrão?
Pense em todos os outros genocídios ocorridos na política internacional e doméstica das grandes potências. O tráfico de escravos foi um genocídio? O colonialismo na África foi um genocídio? A bomba atômica foi um genocídio?
Quem merece proteção é a vítima do genocídio, não o estado genocida.
Por exemplo, em 1951, um grupo de afro-americanos apresentou uma reclamação na ONU contra os Estados Unidos, acusando-o de genocídio pelas políticas de segregação e ódio racial contra o povo afro-americano chamada “We Charge Genocide” (“Nós Acusamos Genocídio”). A segregação racial nos Estados Unidos foi um genocídio? Ou será que todos esses exemplos podem ser “inferidos razoavelmente” como outra coisa?
A definição estreita de genocídio protege a comunidade internacional, e em especial as grandes potências, de acusações constantes de genocídio.
Para alguns, isso é bom. A organização de memória do Holocausto, Yad Vashem, por exemplo, acredita que “se tudo é genocídio, nada é genocídio”. Mas a ideia de que genocídio é infrequente, que é um crime especial, não condiz com a realidade.
Na realidade, neste momento, existem muitos genocídios ocorrendo simultaneamente. No Sudão, em Tigré, e sim, em Gaza. Quem merece proteção é a vítima do genocídio, não o estado genocida, porque na realidade é ao inverso: se nada é genocídio, nada é genocídio.
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