Um jovem problemático com acesso a um fuzil AR15 dirigiu-se a um comício de Donald Trump e tentou assassiná-lo.
Trata-se de algo absolutamente dentro do padrão de violência estabelecido na história da política americana. Dez dos 46 presidentes americanos sofreram atentados e quatro foram assassinados.
Estamos falando do país que é líder mundial em tiroteios em massa e com a maior população civil armada do mundo. São quase 400 milhões de armas circulando pelo país em que supremacistas brancos têm o direito legal de saírem às ruas pregando o ódio contra negros e em que milícias armadas de extrema direita fazem parte da paisagem política.
O crescimento no número de atentados cometidos por jovens é uma questão de saúde e segurança pública.
O atentado contra Trump não é algo fora da curva, muito pelo contrário. A violência da qual o candidato foi vítima é a mesma que ele e o seu grupo político têm alimentado nos últimos anos.
Até agora, as investigações apontam para um crime sem motivações políticas. Thomas Matthew Crooks, o atirador, era um jovem de classe média de 20 anos, filiado ao partido Republicano, vítima de bullying no colégio, obcecado por armas e que foi expulso do clube de tiro do colégio por ser mau atirador.
No dia do atentado, ele comprou 50 cartuchos de munição e foi ao comício de Trump. Antes de subir no telhado de uma casa e abrir fogo contra Trump, Crooks deixou o carro estacionado do lado de fora do evento com uma bomba no porta-malas, que estava conectada a um transmissor que ele carregava.
Se não tivesse sido morto pela polícia, certamente teria matado mais pessoas. O perfil do atirador é muito parecido com o dos garotos que promovem atentados às escolas pelo mundo. Tanto nos EUA quanto no Brasil, esses atentados, apesar dos contextos diferentes, têm em comum a contaminação pelo discurso de ódio promovido pela extrema direita.
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Crooks agiu sozinho, sem motivação clara e aparente, mas dentro de um ambiente político radicalizado, alimentado por discursos violentos e uma legislação que permite que qualquer pessoa maior de 18 anos compre armas de alto calibre em supermercados.
O atentado não aconteceria com a mesma facilidade não fosse este contexto social. O crime de Crooks não é simplesmente um ato inconsequente de um jovem perturbado. É fruto da banalização da violência na cultura e na política americana.
Atirador recebeu propaganda pró-armas da campanha de Trump
Em 2016, a família de Crooks foi identificada pela campanha eleitoral de Trump como potenciais eleitores. Seus nomes estavam em um banco de dados criado para identificar pessoas com grande probabilidade de serem proprietários de armas e republicanos convictos.
A campanha de Trump passou então a bombardear famílias como a de Crooks — que na época tinha 12 anos — com propaganda pró-armas. Não é difícil imaginar as consequências disso em um país que vive uma crise de saúde mental entre os jovens.
No Brasil e na Argentina, líderes de extrema direita reproduziram as conspirações a seu modo.
O crescimento no número de atentados cometidos por jovens é uma questão de saúde e segurança pública, mas para os carniceiros de Trump trata-se de uma questão de liberdades e direitos.
Esse caldo cultural da violência foi especialmente engrossado pela extrema direita americana nos últimos anos. Trump não é mera vítima de um jovem maluco que decidiu matá-lo sem motivo.
Ele é o principal responsável pela radicalização do debate político nos últimos anos e é a principal ameaça à democracia americana, haja vista a invasão do Capitólio em uma tentativa de golpe de estado.
Nesta campanha, Trump tem se mostrado ainda mais raivoso e violento. Em discursos, ele diz abertamente que usará o estado para perseguir adversários políticos e a imprensa.
Trump prometeu que, caso seja eleito para um segundo mandato, será “ditador por um dia” e se vingará dos “vermes” que abriram processos judiciais contra ele. Prometeu também que usará o exército para reprimir manifestantes e deportar milhões de imigrantes.
Logo após o atentado, Trump baixou o tom virulento e chegou a falar em “unir o país”. A nova postura é estratégica e nada indica que será permanente. Seus eleitores seguem sendo alimentados pelas teorias conspiratórias mais alucinantes divulgadas por influenciadores de extrema direita e políticos trumpistas.
Todas essas conspirações tratam Trump como vítima de um complô liderado pelo “deep state”, projetam novos atentados e tratam uma guerra civil como algo inevitável. O ambiente de paranóia segue sendo retroalimentado.
Reprodução do discurso na América Latina
No Brasil e na Argentina, líderes de extrema direita reproduziram as conspirações a seu modo.
Para o presidente Javier Milei, o atentado foi cometido pela “esquerda internacional”. O ex-presidente Jair Bolsonaro, também vítima de um atentado em 2018, seguiu na mesma linha e afirmou que esse tipo de atentado só acontece “contra conservadores”, ignorando propositalmente o assassinato de Marielle Franco em 2018 e o atentado contra Cristina Kirchner em 2022.
Para Bolsonaro, foi Deus quem salvou ele e Trump da morte: “Ele foi salvo, a meu entender, como eu fui. Os médicos dizem que foi milagre eu ter sobrevivido em 2018 tendo em vista a gravidade dos ferimentos. E ele foi salvo por questão de poucos centímetros. Isso, a meu entender, é algo que vem de cima”.
Tanto lá como cá, os atentados contra Trump e Bolsonaro ajudaram a reforçar a narrativa do herói ungido por Deus, mas perseguido e vitimizado pelo sistema. 65% do eleitorado republicano concorda com Bolsonaro: foi Deus quem salvou Trump da morte.
As condições materiais que levaram um garoto a tentar cometer o assassinato são mero detalhe para os extremistas de direita. É esse o tamanho do buraco civilizacional em que os EUA e o mundo estão inseridos.
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