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Milei requenta retórica bolsonarista e boicota Mercosul

Inspirado pelo bolsonarismo, Javier Milei parece ter dobrado a aposta contra o Mercosul, passando das bravatas de campanha e promovendo uma inédita ruptura

O presidente uruguaio Luis Alberto Lacalle Pou ao lado de Javier Milei, presidente da Argentina. Foto: Oficina del Presidente

O incêndio na sede do Parlamento do Mercosul, em Montevidéu, no dia 12 de julho, atualmente é o menor dos problemas para a organização, que vive uma das suas maiores crises políticas em mais de 30 anos de fundação.

No final do mês passado, o presidente argentino Javier Milei dava sinais de que não participaria da 64ª reunião da cúpula, em Assunção. O chanceler paraguaio Rubén Ramírez declarou três dias antes do evento que o Mercosul não é um “bloco ideológico, mas de integração” e que o “grande objetivo é a integração em meio a visões distintas”.

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Já a embaixadora Gisela Padovan, representante do Itamaraty, minimizou o rumor destacando que o “Mercosul é um mecanismo muito consolidado, (…) a cúpula ocorrerá, a chanceler (Diana) Mondino irá, representará a Argentina (…) Agora, politicamente, é lamentável que um presidente decida não ir”. Lembrando que seria a primeira vez que um chefe de estado de um dos quatro membros fundadores não participa de um encontro desta natureza. Em 2022, Jair Bolsonaro não participou do encontro presencialmente, mas sim por meio de um vídeo.

Milei, de fato, não viajou à capital paraguaia, pois estava mais ocupado buscando “sarna pra se coçar” no litoral catarinense, onde foi uma das principais atrações da emulação brazuca da CPAC, em Balneário Camboriú. 

No palco, vociferou contra o socialismo e a “perseguição judicial” ao ex-presidente Jair Bolsonaro, ao qual foi visto abraçado nos bastidores, mas não chegou a atacar o atual mandatário brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva de forma direta, deixando para a plateia fazê-lo.

Esta foi a 16ª viagem internacional desde que o presidente argentino foi empossado, sendo que em menos da metade delas, ele se encontrou com chefes de estado e de governo. 

Milei recebeu, no dia 17 de julho, a visita do presidente uruguaio Luis Alberto Lacalle Pou, que também criticou a sua ausência no Paraguai: “Não importa apenas a mensagem, é muito importante o mensageiro. Se o Mercosul é tão importante, deveríamos estar todos”. 

Na foto divulgada do encontro, pela Oficina del Presidente, entre os líderes rio-platenses, Lacalle Pou aparece despojado, enquanto Milei está com o semblante tenso.

O presidente uruguaio Luis Alberto Lacalle Pou ao lado de Javier Milei, presidente da Argentina. Foto: Oficina del Presidente
O presidente uruguaio Luis Alberto Lacalle Pou ao lado de Javier Milei, presidente da Argentina. Foto: Oficina del Presidente

Na semana anterior, em Assunção, o mandatário uruguaio insistiu na abertura do bloco, destacou o Tratado de Livre Comércio com a China, se solidarizou novamente com Luis Arce – representante do novo membro pleno do bloco – pela tentativa de golpe na Bolívia e atacou os governos kirchneristas, já que o seu país foi “vítima de uma substituição tremenda das importações” e que cerca de 70% do comércio uruguaio está fora do Mercosul.

O Mercosul fortaleceu a economia do Cone Sul e promoveu uma maior integração regional.

Cabe recordar que foi durante o mandato de Néstor Kirchner (2003-2007) que ocorreu uma das maiores tensões no rio Uruguai com a Crise das Papeleiras, por conta da instalação de fábricas de celulose às margens do rio Uruguai, na fronteira com a Argentina, com fechamento das fronteiras, inclusive. Na época, o Tribunal Arbitral “Ad Hoc” do Mercosul deu parecer favorável ao  Uruguai. 

Avanço nas relações diplomáticas

Este é um aspecto muito importante desde a criação do bloco, que também foi um símbolo da redemocratização do Cone Sul. Se durante os regimes militares na região a cooperação se deu principalmente através da repressão, no caso o famigerado Plano Condor, tivemos uma melhoria da relação bilateral entre Argentina e Brasil em meados dos anos 1980, que incluiu Paraguai e Uruguai na década seguinte.

Raúl Alfonsín e José Sarney tinham poucas coisas em comum, tirando os volumosos bigodes. O candidato da Unión Cívica Radical – a legenda política mais tradicional da Argentina – ganhou as eleições de 1983 com quase 8 milhões dos votos, na esteira do fracasso da Guerra das Malvinas, no ano anterior, que foi o golpe de morte no já combalido governo de facto.

Sarney, por sua vez, foi o último presidente da Aliança Renovadora Nacional, em 1979, quando do fim do bipartidarismo aparente e a criação de novos partidos no processo lento, gradual e nada seguro da abertura política no Brasil. 

Com o desaparecimento do partido  Arena – legenda que sustentou o regime militar por quase duas décadas – o ex-governador do Maranhão se filiou ao PDS. Mas depois bandeou para o renomeado PMDB – que foi a oposição oficial durante os anos de chumbo – às vésperas das eleições de 1985. Na ocasião, ele  formou a chapa com Tancredo Neves, que foi eleita de maneira indireta contra o seu antigo correligionário Paulo Maluf.

Mesmo com trajetórias distintas, Alfonsín e Sarney diminuíram e muito a desconfiança mútua entre Argentina e Brasil no plano estratégico – sobretudo energético – apesar de uma conjuntura interna péssima para ambos em meio a hiperinflação dos anos 1980. 

Inspirado pelo bolsonarismo, Javier Milei parece ter dobrado a aposta contra o Mercosul.

Este avanço das relações diplomáticas foi aproveitado pelos seus sucessores Carlos Menem e Fernando Collor, que foram os signatários do Tratado de Assunção, em 1991, ao lado do presidente paraguaio Andrés Rodríguez – que havia dado um golpe no seu padrinho político o ditador Alfredo Stroessner (1954-1989) – e do seu homólogo uruguaio Luis Alberto Lacalle.

Estavam lançadas as bases para o Mercado Comum do Sul, o Mercosul, que apesar das pretensões do seu artigo primeiro, está muito longe deste objetivo.

Porém, é inegável que o Mercosul fortaleceu a economia do Cone Sul e promoveu uma maior integração regional – chamada pelos críticos de interdependência –, facilitando o trânsito entre as mercadorias e os residentes dos países membros.

Não podemos esquecer da competição futebolística, a efêmera Copa Mercosul (1998-2001), que praticamente só teve campeões brasileiros, com exceção do San Lorenzo de Almagro, último campeão do torneio, em meio aos protestos na Argentina em dezembro de 2001.

Onda Rosa e retórica anti-Mercosul

Nestas três décadas do bloco, governos de diferentes matizes ideológicas passaram pelos quatro fundadores, coincidindo brevemente durante a chamada Onda Rosa na década retrasada.

Nessa época,  a Venezuela foi o quinto país membro de 2006 a 2016, quando foi suspenso, tal qual havia ocorrido com o Paraguai quatro anos antes, no contexto do golpe expresso sofrido por Fernando Lugo (2008-2012).

Contudo, a retórica anti-Mercosul ganhou força com a proeminência política do então deputado federal Jair Bolsonaro que bradava contra as “amarras ideológicas”, adaptando o discurso da velha-nova direita europeia em relação à União Europeia. 

Durante a campanha presidencial, Bolsonaro suavizou o discurso e quando eleito tentou tirar proveito do acordo comercial entre o bloco sul-americano e a União Europeia, que posteriormente entrou em estado de letargia por conta dos escândalos envolvendo Ricardo Salles, o seu ministro do Meio Ambiente.

Inspirado pelo bolsonarismo, Javier Milei parece ter dobrado a aposta contra o Mercosul, passando das bravatas de campanha e promovendo uma inédita ruptura, na qual se desgastou com os três antigos sócios e a Bolívia, que depois de anos de espera se tornou um novo membro. Resta saber se a realpolitik cobrará a conta…

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