Há tempos já se sabe que a Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, do governo Bolsonaro monitorou autoridades e adversários políticos de maneira clandestina. Dentre todas as investigações que estão em curso, as da Operação Última Milha da Polícia Federal têm sido as mais frutíferas, trazendo indícios que corroboram as primeiras suspeitas dos investigadores.
A cada enxadada, uma minhoca. Não é à toa que, entre todos os inquéritos abertos contra Bolsonaro, o da chamada “Abin Paralela” é o que mais tira o sono do ex-presidente e dos bolsonaristas. E, de fato, ela não tinha nada de “paralela”.
Quanto mais se investiga, mais se percebe o tamanho do buraco do autoritarismo no qual o país se enterrou e, por pouco, não continuou enterrado por mais alguns bons anos.
As provas recolhidas até aqui mostram que o esquema de espionagem tem se mostrado muito mais amplo e perigoso do que se imaginava. O monitoramento não era feito de maneira pontual e restrita. Era algo permanente, sistemático e sem limites.
Quase 2 mil pessoas consideradas inimigas do bolsonarismo foram monitoradas pelo software de espionagem israelense FirstMile. Segundo a PF, o programa foi acessado mais de 30 mil vezes contra jornalistas, políticos, advogados, militantes, policiais, ministros do STF e qualquer um que ousasse atrapalhar os planos da família Bolsonaro e do seu grupo político. Todos esses planos atuavam sob o pano de fundo de um plano maior: a permanência no poder mesmo com a derrota na eleição.
Os agentes da Abin trabalhavam com a possibilidade de permanecer no poder através de um golpe de estado. Recentemente, a investigação obteve uma conversa entre dois agentes do órgão em que conversavam abertamente sobre a minuta do decreto de intervenção.
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Um deles pergunta: “O nosso PR imbrochável já assinou a porra do decreto?”, o outro responde “Assinou nada. Tá foda essa espera, se é que vai ter alguma”. Ou seja, os agentes da Abin trabalhavam de maneira coordenada com a cúpula do governo Bolsonaro e tinham conhecimento dos seus planos golpistas.
Aqui temos o encontro com o 8 de janeiro. Aliás, absolutamente todas as investigações das quais Bolsonaro é alvo estão intercaladas de alguma maneira com o inquérito sobre o 8 de janeiro.
Pavão misterioso
Lembram dos dossiês produzidos pelo perfil anônimo Pavão Misterioso contra adversários políticos do bolsonarismo e dois jornalistas do Intercept Brasil responsáveis pela série de reportagens chamada Vaza Jato? O perfil foi usado para espalhar a falsa narrativa de que o Intercept contratou um hacker russo para invadir telefones de autoridades, entre elas o do ex-procurador da República Deltan Dallagnol.
Pelo menos desde fevereiro deste ano, os investigadores já haviam identificado no sistema da Abin a criação de um arquivo nomeado como “pavão.pdf”, feita em junho de 2019. Nele havia prints de uma tela de pesquisas sobre os deputados Jean Willys, David Miranda e o então jornalista do Intercept Leandro Demori.
Nesta semana, os jornalistas Juliana dal Piva e Igor Mello, do ICL Notícias, revelaram que as pesquisas no software espião foram feitas dois dias antes da publicação da primeira reportagem da Vaza Jato e nove dias antes da criação do perfil Pavão Misterioso. Ou seja, muito provavelmente a Abin já sabia que as reportagens bombásticas estavam no forno e atuou para criar um antídoto.
Os falsos dossiês do Pavão Misterioso, que tanto alimentaram a militância bolsonarista e desvirtuaram o debate público durante meses, nasceu dentro do órgão de inteligência do governo Bolsonaro. Esses crimes contra cidadãos brasileiros foram planejados e executados dentro de um órgão do estado. É um escândalo de proporções gigantescas.
O arquivo “pavão.pdf” foi salvo em um diretório da rede da Abin que estava sob a responsabilidade do setor de Coordenação de Operações de Inteligência de Sinais e Imagens. Na época em que as pesquisas ilegais foram feitas, o chefe do setor era Fabrício Cardoso de Paiva.
Poucos dias após essas consultas, ele foi nomeado para trabalhar em cargo de confiança com o então ministro de Infraestrutura Tarcísio de Freitas. O cargo? Coordenador-geral de Pesquisas e Informações Estratégicas do ministério. Mais tarde, Paiva ganhou uma licença da agência para poder trabalhar como segurança da campanha de Tarcísio para governador de São Paulo.
O ex-agente da Abin, aliás, foi protagonista de uma história nebulosa ocorrida durante a campanha eleitoral. Durante evento do então candidato Tarcísio no bairro de Paraisópolis, em São Paulo, houve um tiroteio envolvendo policiais militares e um suposto bandido que foi assassinado. Imediatamente, bolsonaristas tentaram emplacar a narrativa de que o candidato teria sofrido um atentado, mas acabaram voltando atrás.
À época, uma reportagem do Intercept revelou que Paiva exigiu que um cinegrafista da Jovem Pan — emissora alinhada ao bolsonarismo — apagasse as imagens dos policiais atirando. Até hoje essa história não foi completamente esclarecida. É esse o tipo de sujeito que trabalhava na Abin de Bolsonaro.
Um agente da Abin para chamar de seu
Mas não foi apenas Tarcísio que ganhou um agente da Abin para a sua campanha. Nesta semana revelou-se também que a PF tem fortes suspeitas de que agentes da Abin trabalharam de forma clandestina na campanha eleitoral do ex-diretor-geral do órgão Alexandre Ramagem para deputado federal em 2022.
Em uma busca e apreensão, os policiais encontraram um documento de gastos da campanha que inclui os nomes de dois agentes muito próximos de Ramagem. Eles possuíam as senhas das contas dele nas redes sociais e faziam visitas constantes ao então candidato durante a campanha eleitoral. Ramagem negou tudo em depoimento, mas não conseguiu explicar esses indícios.
O fato é que não existiu uma “Abin Paralela”. Essa definição ajuda a entender o caso, mas não é precisa. O que houve foi uma total instrumentalização do órgão. A Abin durante o governo Bolsonaro foi transformada em um órgão de inteligência a serviço dos interesses do fascismo bolsonarista.
Dinheiro público foi usado para montar uma estrutura que operava de modo permanente para atrapalhar investigações contra a família Bolsonaro e seus aliados, municiar o Gabinete do Ódio, forjar crimes contra jornalistas e políticos e disponibilizar agentes de inteligência para trabalhar em campanhas eleitorais.
Os crimes foram cometidos em larga escala e sem muita preocupação em ocultar seus vestígios. Havia a certeza de que Bolsonaro se reelegeria ou, na pior da hipótes, assinaria a “porra do decreto”. Por sorte, nada disso aconteceu.
É fundamental que esse episódio seja passado a limpo e que os criminosos sejam punidos — como já estão sendo. Não é difícil imaginar o que a Abin do segundo governo Bolsonaro faria se tivesse ganhado o aval das urnas ou se o golpe de Estado fosse concluído.
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