Uma criança me olhando no fundo dos olhos dizia algumas palavras baixinho em Guarani, enquanto apontava para um fogão a lenha. Sem compreender o que ela me falava, pedi para a mãe dela traduzir. Com os olhos marejados, a mulher disse: “ele está com fome”. O menino de três anos me pedia comida.
Faziam ao menos três dias que os alimentos da retomada Kurupa’yty, dos Guarani-Kaiowá, haviam acabado, deixando ao menos 70 indígenas em extrema vulnerabilidade. Dentre eles, ao menos 30 crianças. Quatro bebês.
O Intercept Brasil viu de perto a situação dramática dos indígenas. Desde 13 julho, os Guarani-Kaiowá da Terra Indígena Panambi – Lagoa Rica resolveram retomar mais uma área de seu território. A terra, de 12.196 hectares, já foi identificada e delimitada pela Funai em 2011.
Mas o processo de demarcação está travado por causa de uma ordem judicial e da discussão sobre o Marco Temporal, que limita os direitos territoriais indígenas às terras ocupadas na data da promulgação da Constituição de 1988.
Os Kaiowá já realizaram sete retomadas na área. No último mês de julho, além da Kurupa’yty, outras duas ocupações foram feitas, a Yvy Ajere e a Pikyxy’yn. As três recentes retomadas envolvem 126 famílias, incluindo 18 idosos, 70 crianças e 50 jovens.
Desde então, os Guarani-Kaiowá estão sob cerco de jagunços que os ameaçam física e psicologicamente. Além da violência extrema, com ataques que deixaram pelo menos 10 indígenas feridos no último sábado, 3, a fome também é uma estratégia dos que exploram a terra com monoculturas de milho e soja.
Dependendo das ameaças e do número de jagunços na área, a entrega acontece às escondidas em esquinas que limitam a visão dos homens que circulam pela região com caminhonetes e armados, além daqueles reunidos em um acampamento feito a poucos metros da retomada Yvy Ajere.
“Aqui é a nossa terra. Já estamos há muito tempo esperando pela demarcação. Cansamos disso. E quando decidimos lutar somos tratados como bichos. Somos desprezados em Douradina. Se recusam a nos vender comida, combustível, qualquer coisa. Cospem em nós. E nós só estamos pedindo que nos tratem como gente, que garantam nossos direitos” me disse E. Kaiowá.
Os indígenas temem andar por Douradina. A cidade, com cerca de 6 mil habitantes, se tornou um lugar hostil aos Guarani-Kaiowá. Quando a necessidade extrapola e não há escolha, eles não saem sozinhos. “Saímos rápido e com cuidado”, afirmam.
‘Não restaria um indígena lá’
Entre os feridos estão uma idosa de 62 anos, que levou um tiro de bala de borracha nas costas, um adolescente de 17 anos atingido no pescoço, um jovem de 20 anos com um disparo na cabeça, e outro adolescente, de 16 anos, que foi baleado na cintura e nas nádegas.
A promessa de que o ataque ocorreria aconteceu três dias antes, na quarta-feira, 31, enquanto um indígena, de 23 anos, aguardava uma ambulância em frente a Unidade Básica de Saúde. Ele havia sido atendido por causa de um tiro de raspão em seu calcanhar, após um conflito que havia ocorrido naquele dia.
“Um homem, negro e alto, chegou em mim e disse que eles invadiriam a retomada no fim de semana. Que não restaria um indígena lá”, me disse o jovem.
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Conforme relato dos Guarani-Kaiowá, os ataques aconteceram após a Força Nacional se retirar do território. De acordo com as lideranças, antes do ataque, os soldados teriam informado que os Kaiowá deveriam abandonar a retomada Kurupa’yty, afirmando que os indígenas não deveriam estar lá e que a Força Nacional não se responsabilizaria por eventuais ataques.
“Eles disseram que nós tínhamos que sair daqui, que não se responsabilizariam caso ocorresse um ataque e houvesse feridos”, me disse um Guarani-Kaiowá.
Os Kaiowá ainda afirmam que a ordem foi dada após os soldados da Força Nacional abraçarem e interagirem com os jagunços. Uma liderança ainda afirmou que a Força Nacional alegou que seu efetivo era pequeno e que recuaria.
A ausência dos agentes ocorreu mesmo com a ameaça de que o ataque aconteceria no fim de semana – informação que o efetivo já tinha conhecimento – e, no dia, com a presença de inúmeras caminhonetes no local. Porém, para os indígenas, a situação deixou evidente que não houve estratégia para lidar com a situação.
“Atiraram três vezes em mim. Um dos tiros passou de raspão. Aí depois um homem começou a me bater. Ele dizia: ‘você quer morrer aqui?’. Eu disse que sim. Que estou disposta a perder minha vida pela terra do meu povo”, afirmou uma anciã da comunidade.
No sábado, o mesmo jovem que teve o calcanhar ferido levou mais dois tiros de bala de borracha e foi atropelado pelos jagunços. Apesar dos ferimentos, ele já teve alta do hospital e se recupera na retomada.
“Olha o que fizeram com o meu filho. Isso não pode ficar assim. 10 Kaiowá feridos. Um jovem levou um tiro na cabeça. Nós também somos seres humanos, mas o branco trata a gente como bicho”, desabafou o pai do jovem indígena.
Os Kaiowá da Kurupa’yty disseram ao Intercept que os indígenas feridos estavam na linha de frente para proteger as crianças e os bebês. A maioria delas fica nesta retomada, mais ao fundo do território, a menos de um quilômetro da retomada Yvy Ajere, onde os jagunços também armaram acampamento. A ideia inicial é de que ali elas estariam fora de risco. Porém a violência extrapolou os limites.
A ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, visitou Douradina na terça-feira, 6. Dois dias antes, o ministério dos Povos Indígenas havia afirmado que “uma equipe do MPI e da Funai que estava de prontidão no estado foi até o território, junto ao Ministério Público Federal, para prestar atendimento aos indígenas”. O Ministério dos Direitos Humanos também enviou um representante ao local.
“Seguimos acompanhando a situação em Douradina”, escreveu a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, em sua conta no X, na segunda-feira, 5. Segundo ela, “Uma comitiva [de Guarani-Kaiowá] já está na capital federal dialogando com o governo em busca de soluções”.
O Intercept questionou o Ministério da Justiça e Segurança Pública a respeito da interação dos policiais com os jagunços e a mudança repentina dos agentes, conforme denunciado pelos indígenas. O órgão federal não se pronunciou a respeito.
O órgão também foi indagado sobre como se planejou diante da ameaça de que haveria um ataque na região no fim de semana e sobre a ausência dos agentes, conforme denunciado.
O ministério se limitou a dizer que “o confronto ocorreu no início da tarde, no momento em que a Força Nacional fazia o patrulhamento em outra área da mesma região. Assim que acionada, a FN chegou no local e cessou o confronto, quando iniciou o diálogo com os dois grupos e acionou o MPI e o MPF”.
As recentes retomadas são próximas e o tempo percorrido entre elas não dura 5 minutos. Questionado sobre qual região os agentes estavam, o ministério não respondeu.
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