Mais leve e solto depois de ter desistido da corrida eleitoral americana, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, convocou a imprensa para anunciar uma proposta de alteração na Suprema Corte do país.
Entre as mudanças por ele sugeridas está a criação de mandatos, uma nova lógica de nomeações que asseguraria a cada presidente a possibilidade de indicar dois ministros, e a promulgação de um Código de Ética para Ministros com força de lei.
Reforma (quase) impossível
Quem conhece minimamente a dinâmica das instituições americanas sabe que essa proposta tem baixas chances de ser aprovada.
Primeiro, haverá um debate sobre a forma. Há quem defenda ser necessário uma emenda constitucional para mudar a Corte. Se essa posição prevalecer, estaríamos diante de tarefa quase impossível.
Emendas constitucionais nos EUA requerem maioria qualificada de dois terços nas duas casas do Congresso, além da ratificação por três quartos das assembleias legislativas dos estados, isto é, 38 dos 50 estados.
LEIA TAMBÉM:
- A história da bizarra audiência no Congresso dos EUA sobre as fake news bolsonaristas
- Cinco pontos para uma discussão séria sobre a ‘ditadura do Xandão’
- Bolsonarismo entreguista articula rede internacional contra o STF
- Projeto 2025: Plano de poder de Donald Trump é mapa das suas falhas
Há também quem lembre que mudanças anteriores na Suprema Corte, como, por exemplo, o número de juízes, já foram feitas, no passado, por lei simples. Mas mesmo que se consiga sustentar essa posição, seria necessário aos democratas alcançar uma maioria improvável no Congresso.
Ainda que não venha a ser considerada pelo Congresso, a proposta de Biden tem importante conotação política. Ela coloca na sala, no ano de eleições críticas para o futuro dos EUA, um bode que foi criado e alimentado por quase 40 anos por conservadores e que, ao longo dos últimos dois anos, berrou ensandecido.
Uma longa e paciente campanha da direita para mudar a Suprema Corte
Nos anos 1970, tomados pela sensação de que os tribunais americanos eram muito liberais, no léxico político estadunidense isso significa progressista, conservadores passaram a investir na formação de quadros e na ocupação estratégica de instituições da Justiça.
No centro disso estava a Sociedade Federalista, a FedSoc, um think tank jurídico comandado por Leonard Leo, que levantou e mobilizou milhões de dólares em bolsas, cursos, patrocínio de cadeiras em universidades e formação de redes de graduados.
Com a chegada de Trump ao poder, Leo e a FedSoc passaram a dar as cartas nas nomeações de ministros da Suprema Corte, juízes federais e até mesmo de advogados públicos estaduais.
Para isso, contaram com a má-fé constitucional dos republicanos no Congresso. Ao final do segundo governo Obama, eles negaram a Merrick Garland uma sabatina para suceder a Antonin Scalia na Corte alegando que o país estava entrando em período eleitoral e o direito de indicação deveria ser dado ao próximo presidente.
Ao final do governo Trump, concederam esse mesmo direito a Amy Coney Barrett, nas mesmas condições que negaram a Garland. Essa manobra assegurou duas nomeações ao campo republicano e a solidificação de uma maioria conservadora de seis contra três na Corte.
Logo que ganhou as eleições, Biden pediu a um painel de especialistas que analisasse os danos causados ao Estado de Direito no país. O painel teceu considerações críticas sobre a fragilização institucional da Suprema Corte, indicando caminhos para reformá-la.
Mas Biden decidiu não encarar a bronca e engavetou o relatório, provavelmente confiando que os conservadores com assento no Tribunal teriam algum senso de responsabilidade.
Não à toa, a Suprema Corte vem perdendo credibilidade entre cidadãos.
Quatro anos depois, Biden viu que estava equivocado. Sem maiores cerimônias, esses conservadores vêm promovendo viradas jurisprudenciais radicais, como no caso do aborto, e proferindo decisões esdrúxulas, como a que garantiu a prestadores de serviço o direito de discriminar.
Da mesma forma, ele têm transformado a Corte num verdadeiro puxadinho do trumpismo, beneficiando-o com decisões recentes e igualmente esdrúxulas, como a que garante a presidentes imunidade criminal por atos de gestão.
Para piorar, o Tribunal se debate com situações constrangedoras, como o pagamento de despesas pessoais do juiz Clarence Thomas por empresários que têm interesse em casos que correm no Tribunal; a participação da esposa de Thomas nos movimentos golpistas por trás dos ataques de 6 de janeiro; e o apoio manifestado pelo juiz Samuel Alito às acusações infundadas de Trump sobre fraude nas eleições de 2020, ele alega ter sido por sua esposa.
Não à toa, a Suprema Corte vem perdendo credibilidade entre cidadãos, hoje amargando os piores índices de confiança de sua história.
Caso americano nada tem a ver com o brasileiro
No Brasil, a Suprema Corte, o STF, que está longe de ser perfeita, também vem sendo alvo de críticas de “politização” e propostas de reforma. Mas a semelhança com os Estados Unidos acaba aí.
A proposta de Biden representa uma reação tardia contra a captura da Suprema Corte por republicanos; no Brasil, parte da crítica vem dos que tentaram, sem sucesso, subjugar o tribunal para que pudessem governar sem amarras e se perpetuar no poder.
Aliás, no Brasil, os juízes mais acusados de serem “partidários” foram indicados por adversários do governo atual e ajudaram a mandar Lula para a cadeia, abrindo espaço para a vitória de Bolsonaro. Se tentam defender algo é a institucionalidade da Suprema Corte, não interesses partidários e facciosos.
Provas de que o STF está longe de ter sido capturado pela esquerda no país não faltam; agora mesmo, o Tribunal achou uma boa ideia sujeitar o reconhecimento de direitos territoriais indígenas, ameaçado pelo Congresso, a um absurdo processo de conciliação.
O STF está, sim, à esquerda dos trogloditas que querem regressar à Idade Média em matéria de costumes e à ditadura militar em matéria de organização política. Mas, como disse certa vez a professora Eloísa Machado, da FGV, o Tribunal se situa à direita da Constituição que deve proteger.
Num caso, portanto, a tarefa democrática é restaurar uma Corte que foi dilapidada pelo trumpismo. No outro, é protegê-la para que não seja dilapidada pelo bolsonarismo.
Você sabia que...
O Intercept é quase inteiramente movido por seus leitores?
E quase todo esse financiamento vem de doadores mensais?
Isso nos torna completamente diferentes de todas as outras redações que você conhece. O apoio de pessoas como você nos dá a independência de que precisamos para investigar qualquer pessoa, em qualquer lugar, sem medo e sem rabo preso.
E o resultado? Centenas de investigações importantes que mudam a sociedade e as leis e impedem que abusadores poderosos continuem impunes. Impacto que chama!
O Intercept é pequeno, mas poderoso. No entanto, o número de apoiadores mensais caiu 15% este ano e isso está ameaçando nossa capacidade de fazer o trabalho importante que você espera – como o que você acabou de ler.
Precisamos de 1.000 novos doadores mensais até o final do mês para manter nossa operação sustentável.
Podemos contar com você por R$ 20 por mês?