Ana Paula Salviatti

Delfim Netto nunca quis dividir o bolo

Delfim Netto, signatário do AI-5 e ministro da ditadura, morreu e foi velado com pompa nos jornais. Sua história, contudo, é repleta de defesa dos mais ricos e violência contra os demais.

Foto: Eduardo Knapp/Folhapress

No começo de agosto fiz uma rápida pesquisa na internet para minha aula sobre economia da ditadura militar brasileira.

Eis que me deparei com uma matéria bastante longa sobre o período que, como de costume, não cita o mecanismo de aceleração inflacionário que nasceu e cresceu dentro da condução econômica do país.

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Ainda nos dias atuais, a descrição econômica do período culpa as causas externas pelos problemas que feriram de morte a economia brasileira, como a crise do petróleo e a mudança na taxa de juros norte-americana. Ou seja, foi o acaso, foi azar.

 Como justificar a falta de explicação sobre a condução adotada pela ditadura para a economia do país e sua ligação umbilical com dívida externa e o fantasma da inflação? 

Diante da falta dessa peça fundamental no quebra-cabeças da nossa história sobram argumentos sobre a genialidade e excentricidade de Delfim Netto. Curioso. 

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Delfim Netto morreu na segunda-feira, dia 12 de agosto, com mais de 90 anos. Sua morte fez brotar mensagens de pesar que no geral descreviam a genialidade ímpar do economista e que, de uma forma ou de outra reforçam: “não era possível concordar com tudo o que ele dizia, mas era impossível discordar da sua inteligência”.

Inteligência imoral

Em suma, a partir dos enlutados ficamos sabendo que “entre os mortais despontou um humano de ilustre inteligência”. 

Delfim Netto participou na arrecadação de fundos para a Oban, conhecida pelas casas de tortura da ditadura.

Mas ser inteligente é sinônimo de ser ético? Porque é isso que conta em termos sociais, não? Delfim Netto  trabalhou à frente da Secretaria de Planejamento, a Seplan, o “superministério” da economia da ditadura militar.

Então, se a pessoa é louvada por seus serviços ao conjunto da sociedade, é condição necessária que ela tenha feito isso de modo ético.

Não? 

Na dúvida, vamos à história. 

Vamos começar com essa declaração dada por Delfim Netto em entrevista ao UOL em 2022, sobre sua participação na edição do AI- 5, o instrumento que recrudesceu a violência da ditadura militar. Ele reafirmou não se arrepender de ter assinado o documento.  Em resposta à Fabíola Cidral afirmou:  “naquele instante era o que deveria ser feito, só se você não conhece a cultura”.  

Não podemos esquecer a participação de Delfim Netto na arrecadação de fundos para a montagem da Operação Bandeirantes, a Oban, conhecida por instrumentalizar, dentre outras coisas, as casas de tortura da ditadura militar.

Talvez esse seja o tal traço de excentricidade muito comentado entre os enlutados. 

Genialidade econômica? Endividamento público

Agora, vejamos o exercício da sua genialidade à frente da condução econômica do país. 

De forma direta, o Brasil tinha um problema: como trazer recursos para investir no desenvolvimento econômico, leia-se industrial, do país? As voltas desse enigma estiveram Getúlio Vargas, JK, Jango e também a ditadura militar. 

Para resolver esse problema, uma engenharia econômica foi implementada ainda em 1964 e 1965. Para incentivar a entrada de moeda forte, leia-se dólares, usou-se o endividamento interno e promoveu-se a aceleração da inflação

Para a estimular a entrada da “poupança externa” pretendia-se que o setor privado nacional contraísse empréstimos lá fora. Para isso,  os títulos brasileiros teriam prazo menor, taxas de juros mais altas e correção pela inflação. Enquanto, os empréstimos internacionais eram de prazos maiores e juros mais baixos.

E se o caro leitor está atento até essa altura da coluna, já entendeu que conforme a inflação era pressionada com o aumento da liquidez gerada pelos empréstimos que entravam no país, maiores eram os juros pagos pelos títulos públicos. 

Tudo seria lindo se a imensidão de dólares que entrou no país tivesse sido investida no setor produtivo, o que não foi, e perfeito se esse circuito não tivesse incentivado a especulação financeira e a aceleração inflacionária dentro da economia do país. Essa bolha crescia aos olhos de quem quisesse ver, inclusive aos de Delfim. 

Quem tinha dinheiro ganhou ainda mais, eis o verdadeiro milagre.

À frente do tão falado “milagre econômico”, Delfim assistiu à aceleração desse circuito de empréstimos, que a bem da verdade era uma oportunidade e tanto de enriquecimento, além de endividamento público e concentração de renda.

O que  estava impulsionando o crescimento do “milagre” era a formação bruta de capital, ou seja, o aumento da capacidade produtiva do país estava baseada nos investimentos cristalizados nas décadas anteriores.Para que o país continuasse crescendo, os setores industriais deveriam ter investido recursos na ampliação de sua capacidade produtiva, mas não foi o que aconteceu.

O bolo não foi feito pra ser dividido

Com o  incentivo à entrada de dinheiro bancado com juros internos altos e crescimento da inflação, até a indústria automotiva estrangeira se aventurou a pegar dinheiro fora do país, investir em títulos brasileiros e remeter os juros para as suas matrizes lá fora.

Quem tinha dinheiro ganhou ainda mais, eis o verdadeiro milagre. E quem não tinha nada ficou completamente miserável. Delfim Netto disse que “é preciso fazer o bolo crescer, para depois dividi-lo”. Não só o bolo cresceu às custas de toda a nação, como foi repartido só entre os que já tinham repetido as fatias.

Enfim, Delfim ainda esteve à frente das maxidesvalorizações da moeda que estatizaram a dívida externa do setor privado e fizeram explodir a dívida pública do nosso país, legando mais de uma década de caos e miséria para a população que nunca participou da repartição do bolo. Por outro lado, a moeda nacional foi salva. É como dizem: vão se os anéis ficam-se os dedos. 

Bom, com tudo isso em conta, quem repetiu o bolo por todos esses anos tem muito do que lamentar sua morte. Aos que nunca sequer comeram o tal bolo, não lamentam nada.

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