Há poucos dias, a repórter Nayara Felizardo, do Intercept Brasil, noticiou que o paredão conservador e negacionista no Conselho Federal de Medicina, o CFM, ganhou mais argamassa após as últimas eleições para 27 conselheiros de cada estado e do Distrito Federal.
Além da reeleição de mais de 60% dos antigos representantes, entrou mais gente disposta a defender, por exemplo, absurdos como o não respeito ao aborto legal no Brasil — para os casos de estupro, risco de vida para mãe ou de anencefalia fetal —, direito existente desde 1940.
Mas é também verdade que a transformação dessa importante entidade em uma espécie de clube privilegiado da extrema direita passou a enfrentar, por dentro, uma resistência cada vez mais organizada.
Em dois estados, ela conseguiu abrir uma fenda no paredão: Pernambuco e Paraíba. No primeiro, venceu a Chapa 3 (Movimento e Ética), que obteve 41,19% dos votos. No segundo, foram eleitos os conselheiros da Chapa 1 (A gente sabe quem faz), com 69,35% dos votos.
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O pediatra Eduardo Jorge Fonseca (titular) e a obstetra e ginecologista e obstetra Leila Katz (suplente) serão os representantes de Pernambuco, enquanto o pediatra Bruno Leandro de Souza (titular) e o obstetra e ginecologista Antônio Henriques de França Neto (suplente) representarão a Paraíba.
Não menos importante: em Fortaleza, a Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia, a ABMMD, ganhou musculatura e hoje conta com mais de dois mil associados.
Conversei remotamente com Eduardo e Leila: me interessa entender não só como vão se posicionar profissionalmente e politicamente frente ao tal paredão que tem impacto direto na vida de todo país.
Mas também interessa saber o que pensam sobre representar a classe no mesmo estado no qual nasceu o coração cloroquinista do grupo Médicos Pela Vida, entidade que apoiou Jair Bolsonaro em sua cruzada antivacina.
O então presidente do coletivo, Antônio Jordão, participou de lives com o ex-presidente. Ele encabeçava a chapa 2 (Luta pela medicina), derrotada no recente pleito do CFM.
A estratégia para barrar o avanço de ultra-direitistas foi aquela usada nas eleições de 2022: a formação de frentes amplas.
“Temos muitos desafios nessa nossa chegada ao Conselho Federal de Medicina, especialmente nas discordâncias de muitas das decisões tomadas pelo colegiado em idos recentes”, diz Leila.
Ela ilustra as diferenças trazendo a atitude do conselho durante a pandemia, mas não só: lembra que a entidade chegou a iniciar uma, muito criticada, pesquisa entre médicos para saber se eles e elas acreditavam na vacinação de crianças contra Covid-19 – e isso ocorreu este ano, vale dizer, não no passado período pandêmico.
“A atuação da Associação Médicos pela Vida durante a pandemia foi flagrantemente anticientífica, promovendo tratamentos sem eficácia, atacando vacinas. Do ponto de vista prático, o fato de estarem sediados no Recife não é um obstáculo”, diz Leila.
E completa: “Sabemos, felizmente, que a maioria dos médicos e médicas do estado querem o fim da partidarização da prática em saúde e estão do lado da ciência e da ética. Sentimos isso muito fortemente a partir de nossas visitas aos serviços de saúde, da capital ao interior, durante a campanha para o CFM”.
Mas é sem dúvida em relação ao aborto que os novos conselhos deverão sofrer mais pressão, afinal o CFM é a entidade que deu e dá tração para os pedidos de revisão da legislação que assegura o direito à interrupção legal da gravidez em casos de estupro, anencefalia ou risco de vida para a mãe.
Falei sobre isso em coluna recente para o Intercept. Mas não só: os casos de perseguição a médicas e médicos são reais.
Em São Paulo, profissionais atuando em serviços de referência de aborto legal foram afastadas por estarem cumprindo seus deveres dentro da lei. Uma delas coordenava o setor de procedimentos de interrupção gestacional no hospital, enquanto a outra realizava a assistolia fetal, procedimento necessário após 22 semanas de gravidez.
O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, o Cremesp, braço paulista do CFM, puniu as médicas que realizaram abortos em mulheres encaminhadas para hospital pela Defensoria Pública com decisão judicial favorável à realização do aborto. Ambas tinham fetos com má formação e sem expectativa de vida após o parto.
“A interrupção da gravidez em casos de estupro e em casos específicos de risco grave à gestante ou anencefalia fetal é um direito assegurado em lei desde 1940. É uma medida de saúde coletiva importante, compreendendo os impactos para a saúde física e mental em cada um desses cenários, e é papel do Conselho, em nossa compreensão, assegurar esse direito. Não se pode punir profissionais que atuem pautados por esses princípios na garantia do direito à saúde da população”, diz Eduardo Jorge.
Importante pontuar que apenas os casos de estupro e risco de vida à gestante foram assegurados em 1940. Os casos de anencefalia fetal foram incluídos no rol do aborto legal por decisão do Supremo Tribunal Federal em abril de 2012, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54.
Na Paraíba, a chapa eleita com quase 70% dos votos derrotou a dupla concorrente, formada pelas médicas Annelise Mota de Alencar e Vanessa Rolim Barreto. Elas eram apoiadas pelo ex -ministro da saúde do governo Bolsonaro, Marcelo Queiroga. Obtiveram pouco mais de 1.700 votos. O conselheiro titular eleito, o pediatra Bruno Leandro de Souza, é considerado um perfil moderado e sempre expressou publicamente seu assombro com as decisões anticientíficas do CFM.
Em 2021, no período mais letal da pandemia, ele ocupava o cargo de Diretor de Fiscalização do Conselho Regional de Medicina da Paraíba, o CRM-PB.
Ali, disse em uma entrevista: “Sou absolutamente contra a prescrição destes kits covid, porque cientificamente não funcionam e podem provocar um dano. E se eles podem provocar um dano, eu prefiro sempre a prudência. Está mais do que provada na minha opinião e de muitos milhões de pessoas que, infelizmente, essa medicação não é eficiente, mas alguns ainda insistem na prescrição, ainda mais com essa permissão do Conselho Federal, o que na minha opinião é lamentável.”
Em diversos estados do país, a estratégia para barrar o avanço de ultra-direitistas no conselho federal foi aquela usada nas eleições presidenciais de 2022: a formação de frentes amplas.
Para o presidente da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia (ABMMD), Arruda Bastos, essa reunião conseguiu manter afastados profissionais que poderiam tornar a entidade ainda pior, ao contrário da percepção que entende o fortalecimento conservador no CFM.
“Eu não vejo um fortalecimento da extrema direita no CFM, pelo contrário. Não tínhamos antes chapas progressistas, acho que avançamos nessa eleição. Em outros estados, embora não fossem tão progressistas, chapas melhores conseguiram ganhar, escanteando as de ultra-direita”, diz Bastos.
Ele acompanha há tempos e de muito perto a radicalização ideológica à direita da medicina brasileira: estava no episódio triste no qual médicos cubanos foram atacados, em 2013, quando desembarcaram no aeroporto de Fortaleza. Arruda era secretário de saúde e recepcionava profissionais vindos pelo programa Mais Médicos na Escola de Saúde Pública do Ceará.
Ele aponta que é preciso observar outras entidades médicas no Brasil neste momento, não somente o CFM: diversas delas nunca se associaram ao negacionismo bolsonarista, como, por exemplo, a Associação Médica Brasileira.
A Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB), a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT) também se posicionaram contra o vagalhão negacionista que ainda assola o país.
A fundação da ABMMD em outubro de 2019, em Fortaleza, reuniu 98 médicos de dez estados. O mapa mostrando as federações nas quais a associação não tem núcleos (em azul) é bastante revelador: Acre, Roraima, Amapá, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Tocantins, Rondônia, Pará.
Nas redes sociais, a disputa foi especialmente acirrada este ano.
Os primeiros deram mais 70% de votos para Bolsonaro nas eleições de 2022. O mesmo aconteceu em Rondônia, onde o atual presidente do CFM, José Hiran Gallo, foi candidato único (ele, nome chave no atual ataque aos direitos das mulheres, está na entidade há 25 anos). Bolsonaro também ganhou no Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás.
Os próximos conselheiros de Pernambuco no CFM também entendem que o passeio do negacionismo e obscurantismo na entidade não vai ser feito com lustrosos sapatinhos dourados.
Leila Katz diz que viu, em todo país, importantes movimentos pedindo mudanças na condução do CFM e cobrando uma postura pautada em evidências e no cuidado efetivo com a população.
“Sentimos que a maior parte dos médicos e médicas do nosso país deseja ver um Conselho diferente. Aqui em Pernambuco, essa conquista só foi possível graças à união de semelhantes que, a despeito das diferenças, se uniram em torno do propósito comum”, disse Leila.
Para Eduardo Jorge, a maioria dos médicos e médicas deseja superar a partidarização que tomou conta do CFM “em favor da medicina baseada na melhor evidência, da defesa da ciência como norte de nossa atuação e da ética como princípio basilar de cuidado humano”.
Nas redes sociais, a disputa foi especialmente acirrada este ano, o que também resultou em uma ampla participação dos médicos no processo eleitoral: dos 534 mil habilitados a votar, 408 mil depositaram suas escolhas, uma abstenção de 25%.
No post do conselhos regional de medicina de Pernambuco no Instagram, muitos celebraram o futuro novo conselho, mas os que entendem o CFM como árbitro do corpo alheio também apareceram: “Felizmente o país segue com um CFM que zela pelo nascituro na maioria dos Estados!”, disse um. “Que pena ! Quero só ver para crer”, escreveu uma médica que, em suas redes, continua publicando sobre os efeitos “danosos” e “irreversíveis” das vacinas contra Covid-19.
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