O Partido Comunista do Chile, base de apoio fundamental do presidente do Chile Gabriel Boric, enfrenta uma série de crises e ataques.
Nos últimos meses, uma sequência de eventos estremeceu a relação do presidente chileno e do partido, visto como seu provável sucessor.
Em agosto do ano passado faleceu Guillermo Teillier, aos 79 anos, então presidente do Partido Comunista do Chile, cargo que ocupava desde 2005. A morte do dirigente comunista ocorreu durante um raro momento de estabilidade da centenária legenda partidária. Um ano depois, essa estabilidade se esvaiu.
As primeiras discordâncias públicas com Boric se deram no começo deste ano, após a morte de seu antecessor no Palácio de la Moneda, o direitista Sebastián Piñera.
Em seu discurso durante o funeral, em 9 de fevereiro, o atual mandatário se referiu da seguinte forma à repressão aos protestos durante os governos de Piñera (2010-14 e 2018-22): “as querelas e recriminações foram, em certas ocasiões, mais além do justo e razoável”.
Entre outubro de 2019 e março de 2020, o Chile viveu uma série de protestos que começaram com reivindicações em relação ao aumento de passagens em Santiago, mas se tornaram massivos em todo o país. O atual presidente chileno foi uma das lideranças dos protestantes.
Ao todo, 35 pessoas foram mortas, mais de três mil feridas, quase nove mil detidas pela repressão policial e relatos de tortura se acumularam, durante o segundo mandato de Piñera. Supermercados e museus foram incendiados, muitas vezes pela própria polícia.
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Para o Partido Comunista, o discurso do presidente chileno, relativizando a repressão e fazendo um mea culpa, foi excessivamente conciliatório. Dois dias depois da fala de Boric, o novo presidente do Partido Comunista, Lautaro Carmonaa, se manifestou: “no marco da rebelião popular, houve gravíssimas violações aos direitos humanos no Chile”, ele escreveu em um comunicado.
“O presidente Piñera teve uma responsabilidade indesmentível nesta situação. Tanto pelas medidas concretas que ordenou, quanto pela declaração de que no Chile havia uma guerra. Estas violações aos direitos humanos não podem, nem devem ficar impunes”, declarou Carmona.
Apesar da relação pouco harmoniosa, meses depois Boric saiu em defesa dos comunistas, que fazem parte da base governamental, no contexto do desaparecimento do ex-militar venezuelano Ronald Ojeda, no final de fevereiro de 2024.
Ojeda havia conseguido asilo político no Chile em novembro passado. Sua estadia no Chile se tornou notável após uma manifestação contra Nicolás Maduro em frente ao Palácio de la Moneda, no ano anterior, na qual aparecia com um saco na cabeça, exigindo a libertação dos presos políticos na Venezuela.
Condenado como traidor da pátria por Caracas, ele foi sequestrado, torturado e morto na capital chilena. Dois suspeitos de origem venezuelana conseguiram fugir. Mas para a oposição ao governo Boric, o Partido Comunista estaria envolvido no caso.
Javiera Macaya, presidenta da Unión Demócrata Independiente, partido de extrema direita, apontou em suas redes sociais para um dos assessores do Ministério do Interior, o comunista Juan Andrés Lagos, afirmando ter preocupação com o fato do governo chileno ter ” pessoas que tenham este olhar de apoio ao regime de Nicolás Maduro”.
Boric respondeu: “O anticomunismo visceral de alguns setores políticos e seus meios afins em nosso país é demasiado evidente. Não conheço outro partido que receba tantos ataques ad hominem (ataques pessoais e moralistas) e mentiras”.
Enquanto prosseguiam as investigações, Carmona, presidente do Partido Comunista, declarou que “não há nada que diga que isto tenha a ver com uma intromissão da Venezuela”. Já Carolina Tohá, titular do Ministério do Interior, tentou mediar a situação. “Até que a procuradoria estabeleça o que realmente houve aqui, nós não podemos dizer ‘isto é, isto não é’”, ela disse. Quem descarta a hipótese de sequestro não são os políticos, são os policiais investigadores”.
Lagos acabou sendo dispensado do ministério em junho. Tomou conhecimento do seu afastamento primeiro pelas manchetes jornalísticas e só depois pelo governo.
Daniel Jadue e a mini-Lava Jato chilena
Além do seu posicionamento pró-Caracas, o ex-assessor também foi fritado por setores da oposição e da imprensa pelo seu apoio ao correligionário Daniel Jadue, prefeito de Recoleta – um dos 32 distritos que compõem Santiago – que foi preso provisoriamente em regime domiciliar por conta de um escândalo de corrupção ligado à iluminação pública.
O episódio é denunciado em toda região como mais um capítulo do lawfare na América Latina e correntemente comparado com os abusos da Lava Jato e da perseguição ao ex-presidente equatoriano Rafael Correa.
Jadue é um dos principais quadros do PC e podemos dizer que quase foi presidente do Chile. Em 2021, nas primárias da coalizão Apruebo Dignidad foi derrotado com aproximadamente 40% dos votos por Gabriel Boric. Ele também faz parte da numerosa comunidade palestina no país, a maior da diáspora fora do Oriente Médio.
Sua prisão foi outra pauta que dividiu o governo recentemente. Membros mais próximos do gabinete presidencial temiam uma disputa entre os poderes executivo e judiciário, pressionando Boric para que ele se abstivesse de discutir o tema.
A crise interna do PC: os comunistas não se ajudam
Já no legislativo, os comunistas conquistaram pela primeira vez a presidência de uma das casas, com a eleição da deputada Karol Cariola ao principal posto da Câmara, em pleito apertado decidido por um único voto (76 x 75).
Mas não houve muito tempo para celebrar, já que a também deputada Carolina Tello anunciou sua saída do partido, em uma queda de braço com o senador Daniel Núñez – ambos eleitos pela região de Coquimbo.
Em um comunicado público, a seção regional comunista, aponta que espera “que no marco da reforma ao sistema político que se debaterá no Congresso, se corrija este tipo de situação, já que afeta a real representação política que autoridades eleitas por um determinado partido abandonem suas filas sem restituir a vaga”.
Em uma reunião em 14 de julho na sede central do PC, em Santiago, Carmona minimizou a crise interna ao dizer que “foi um intercâmbio muito comunista, muito fraternal, muito tranquilo, muito franco, muito construtivo”.
O impacto da crise eleitoral venezuelana
No final do mês de agosto, surgiu uma nova fricção entre o governo Boric e parte dos comunistas por conta de declarações antagônicas a respeito das eleições venezuelanas. Atualmente, os venezuelanos formam a maior comunidade estrangeira no Chile e o país é o quinto principal destino da crise humanitária que atingiu o país caribenho, mesmo com os mais de 7 mil quilômetros que separam Caracas de Santiago.
Nesta perspectiva, a sucessão no Palácio de Miraflores é um tema bastante caro para uma porção considerável da população chilena, para além da disputa de narrativas no contexto sul-americano.
O risco dessas no governo Boric não pode ser esquecido: uma das lideranças da oposição é José Antonio Kast, “o Bolsonaro chileno”.
Gabriel Boric foi o primeiro chefe de estado de esquerda na região a não reconhecer a vitória proclamada por Nicolás Maduro.
Boric fez coro à oposição venezuelana de esquerda, como a Marea Socialista e o Partido Comunista da Venezuela, que também qualificaram o regime do Partido Socialista Unido da Venezuela, o PSUV de Maduro, como uma ditadura, o que provocou uma crise diplomática entre os dois países.
Lautaro Carmona se opôs novamente a Boric em uma entrevista no programa Estado Nacional. “Somos uma força política mais que centenária, que tem uma história a seu respeito. Não vamos aceitar que nos associem com uma falta de respeito democrático”.
A porta-voz Camila Vallejo tentou se desvencilhar das discordâncias entre o chefe de governo e a liderança do seu partido, tomando uma posição mais moderada e similar à posição dos governos Gustavo Petro da Colômbia e Lula do Brasil em “não ratificar nenhum resultado”.
Faltando pouco mais de um ano para as eleições presidenciais, Vallejo ainda é o principal nome da situação para o pleito, já que no Chile não há a possibilidade de reeleição. Porém, as intenções de voto diminuíram quase pela metade nos últimos meses.
Houve uma vitória com gosto de derrota no último plebiscito constitucional e uma acentuada rejeição ao atual presidente, com taxas negativas oscilando entre 46 a 70% ao longo de 2024.
O risco de todas essas crises no interior do governo Boric e do partido comunista chileno não pode ser esquecido: uma das principais lideranças da oposição é José Antonio Kast, filho de imigrantes nazistas e chamado por muitos de “o Bolsonaro chileno”.
Kast é ferrenho defensor da ditadura militar de Augusto Pinochet, de quem o seu finado irmão mais velho foi ministro em três pastas diferentes.
Suas propostas incluem prisão de manifestantes e comunistas, como na época de Pinochet, fechamento das fronteiras com a Bolívia e fim da política de asilo político que beneficia palestinos e venezuelanos.
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