Um dia depois da explosão simultânea de pagers no Líbano e na Síria, uma segunda rodada de bombas, desta vez plantadas em walkie-talkies e equipamentos de energia solar, foi detonada na quarta-feira em Beirute e no restante do país.
O número total de mortes decorrentes dos ataques aumentou para pelo menos 37 pessoas, incluindo uma menina de 9 anos e um menino de 11 anos, e mais de 3 mil pessoas ficaram feridas. Médicos em um hospital de Beirute relataram que muitos dos feridos perderam olhos e precisaram ter membros amputados. A explosão de walkie-talkies causou mais de 70 incêndios em casas e lojas de todo o Líbano, e em mais de uma dezena de carros e motocicletas.
Embora o governo israelense ainda não tenha reivindicado a autoria do ataque, várias autoridades dos EUA já declararam que Israel estava por trás da explosão dos dispositivos.
A natureza aparentemente indiscriminada dos ataques chamou a atenção e atraiu preocupação dos especialistas em direito internacional, que consideram que as explosões podem vir a ser consideradas crimes de guerra.
“Se Israel está por trás disso, eles precisam responder algumas perguntas difíceis, inclusive ao governo dos EUA, que está fornecendo grande apoio militar”, diz Brian Finucane, ex-assessor jurídico do Departamento de Estado dos EUA nos governos de Barack Obama e Donald Trump. “Deveria realmente ser do interesse do governo dos EUA garantir que seus parceiros militares estejam cumprindo as leis da guerra.”
Finucane diz que, se ainda estivesse assessorando o Departamento de Estado, encorajaria os EUA a fazerem uma série de perguntas: Israel tomou medidas para minimizar os danos a civis? Foi previsto que as explosões poderiam ser grandes o suficiente para atingir civis? Quando e como os dispositivos foram adulterados para serem detonados?
Sobre o tema específico de pagers e walkie-talkies explosivos, ele destaca uma das normas internacionais que proíbe “o uso de armadilhas e outros dispositivos na forma de objetos portáteis inofensivos especificamente projetados para conterem material explosivo”. Israel e o Líbano concordaram com a proibição, que consta do Artigo 7(2) do Protocolo II Emendado da Convenção de Certas Armas Convencionais (CCAC), que suplementa a Convenção de Genebra e foi incluído no direito internacional humanitário, ou direito de guerra, em 1996.
‘Israel pode ter o direito de se defender, mas existem restrições jurídicas sobre a forma como isso pode ser feito.’
Finucane observa que o Manual de Direito de Guerra do Departamento de Defesa dos EUA, ao mencionar a lei de 1996, usa exemplos de fones de ouvido do tipo headset, que as forças italianas adulteraram durante a Segunda Guerra Mundial com explosivos e detonadores eletrônicos, após retirada ou rendição, para matar seus inimigos. O especialista questiona se a adulteração de pagers ou walkie-talkies com material explosivo se enquadraria nos critérios da lei.
“Israel pode ter o direito de se defender, mas existem restrições jurídicas sobre a forma como isso pode ser feito”, diz Finucane, que agora é assessor sênior da organização Grupo de Crises Internacionais. “E de uma perspectiva política, deveria ser do interesse dos EUA não serem arrastados para mais guerras desnecessárias no Oriente Médio, e sem dúvida não continuarem a alimentar essas guerras desnecessárias.”
O Hezbollah, o poderoso grupo xiita libanês apoiado pelo Irã, vem trocando ataques de foguetes com Israel desde 7 de outubro, levando ao deslocamento de dezenas de milhares de pessoas no sul do Líbano e no norte de Israel. Estima-se que mais de 600 pessoas tenham sido mortas no Líbano, incluindo mais de 130 civis, ao longo do último ano. Em Israel, incluindo as colinas de Golã anexadas, a violência matou pelo menos 24 soldados e 26 civis.
Nos últimos meses, as tensões entre os países continuaram a aumentar. Muitos consideram que o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu está ampliando a guerra na região, para além de Gaza e da Cisjordânia, para reforçar seu poder em Israel. Uma guerra regional poderia envolver Irã, Síria, Turquia, e Iêmen, além dos próprios EUA. Os ataques com pagers e walkie-talkies são um bom indício dessa nova escalada.
Na quarta-feira, Netanyahu dobrou a aposta em sua promessa de “levar os moradores do norte de volta para suas casas em segurança”, sem mencionar os ataques recentes.
Yoav Gallant, ministro da Defesa de Israel, foi mais direto e disse que o país está “no início de uma nova fase da guerra”, e que “o centro de gravidade está migrando para o norte” em direção ao Líbano.
Tanto Netanyahu quanto Gallant já enfrentam possíveis mandados de prisão do Tribunal Penal Internacional por acusações de crimes de guerra cometidos durante a guerra de Israel em Gaza, que incluem atacar e causar fome a civis.
‘Acho que parece bastante flagrante, ambas violações à proporcionalidade e aos ataques indiscriminados.’
“Eu acho que detonar pagers nos bolsos das pessoas, sem nenhum conhecimento sobre onde elas estão, naquele momento, é um ataque indiscriminado bem evidente”, diz Jessica Peake, professora de direito internacional na Faculdade de Direito de Los Angeles da Universidade da Califórnia. “Acho que parece bastante flagrante, ambas violações à proporcionalidade e aos ataques indiscriminados.”
Israel já assassinou seus inimigos do outro lado da fronteira no passado. Em agosto, o bombardeio de um apartamento em Teerã, no Irã, matou o líder do Hamas, Ismail Haniyeh. Os ataques aéreos de Israel no Líbano também mataram líderes militantes do Hezbollah. Em 1996, Israel instalou uma armadilha e explodiu um telefone usado por Yahya Ayyash, fabricante de bombas do Hamas, que foi morto instantaneamente em sua casa, em Gaza.
Tanto Peake quanto Finucane dizem que a escala dos ataques dessa semana não tem precedentes.
Os militares israelenses já usaram algoritmos e sistemas de inteligência artificial para direcionar seus ataques aéreos contra as casas de potenciais militantes do Hamas em grande escala durante a guerra em Gaza. Esses ataques mataram e feriram milhares de civis que estavam nas proximidades dos supostos militantes do Hamas, e o programa foi criticado por oficiais das forças de defesa israelenses que trabalham nas operações de IA por ignorar o direito internacional humanitário.
Mas a natureza do ataque com eletrônicos explosivos dificulta a avaliação dos alvos e da intenção.
“Sem dúvida se percebe um esquema para atingir alvos individuais em massa nessa situação”, diz Finucane, em referência aos ataques por pagers e walkie-talkies. “Israel, ou quem quer que tenha lançado esses ataques, não sabia onde essas pessoas estariam em um determinado momento, o que dificulta muito avaliar a proporcionalidade e outras precauções.”
Finucane cobrou dos EUA que usem sua influência para obter uma resolução de cessar-fogo na guerra em Gaza, que, segundo ele, é a raiz do conflito no Líbano e em toda a região. Ele considera que os EUA deveriam interromper a ajuda militar a Israel, o que deteria as campanhas militares do país, e o empurraria para uma resolução.
“Eu diria que já chega”, opina Finucane. “Esse governo quer entregar ao seu sucessor uma guerra entre Israel e o Hezbollah, envolvendo os EUA?”, continua. “Esse governo quer continuar a lutar contra os hutis [no Iêmen] sem nenhum fim à vista? Esse governo quer continuar a fomentar a catástrofe humanitária em Gaza? Se não quer, a solução é óbvia: conseguir um cessar-fogo em Gaza e acalmar as coisas na região.”
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