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Fabricante considerou lançar vape barato no Brasil para vender em botecos

Executivos da indústria do tabaco brasileira deram dicas à empresa norte-americana Juul de como entrar no mercado nacional e estimaram cigarros eletrônicos liberados até 2024, mostram relatórios internos da empresa.

Arte Denise Matsumoto/ O Joio e O Trigo

A fabricante norte-americana de cigarros eletrônicos Juul estudou lançar “vapes de baixo custo” no Brasil e vendê-los em botecos e pequenos comércios de bairro, considerados locais em que normas antifumo “geralmente não são aplicadas”, mostram documentos da companhia obtidos pela Truth Tobacco Industry Documents (TTID), da Universidade da Califórnia, e revisados pelo Joio.

Os relatórios mostram que o país era “prioridade” nos projetos de expansão mundial da empresa, que estimou um público potencial de mais de 18 milhões de pessoas e um mercado de até 540 milhões de dólares para vapes só no Brasil, quase um terço do que era projetado para a América Latina inteira. Para isso, a Juul avaliava o lançamento de um vape barato, que pudesse equivaler a um maço inteiro de cigarros e custasse R$ 35 no varejo, com opções de refis a R$ 8, segundo a análise da reportagem.

No entanto, o projeto se frustrou após a empresa se tornar alvo de dezenas de ações judiciais nos EUA por ter promovido seus produtos a adolescentes, impulsionando o tabagismo e complicações pulmonares entre jovens norte-americanos. No início deste ano, quase 4 milhões de e-mails e relatórios internos foram entregues à TTID como parte dos acordos que a Juul fez para encerrar os processos, além de pagar ao menos 462 milhões de dólares em indenizações. 

O repositório completo da Universidade da Califórnia pode ser consultado aqui. A partir desse arquivo, revisamos cerca de 40 documentos que mostram os interesses da Juul no consumidor brasileiro. 

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Um deles, intitulado “Um mergulho profundo no Brasil”, indica que pequenos comércios como bares e mercadinhos seriam importantes para a distribuição de vapes no país, já que poucos cumprem restrições comerciais obrigatórias, como não vender cigarros avulsos ou só exibir maços à venda no interior das lojas, longe de doces e guloseimas. Esse tipo de restrição, em comparação, deixa a compra “mais onerosa” em supermercados e grandes redes brasileiras, diz o levantamento. 

“Botecos são onipresentes; as pessoas vão lá para comer, ou comprar pequenos itens, e comprar cigarros; dado o local de exposição desses cigarros nos caixas, eles às vezes impulsionam compras por conveniência”, explicou um executivo da indústria do tabaco brasileira consultado pela Juul e mantido anônimo no estudo. No total, esses pequenos comércios e bares geram 31% das vendas de cigarros no país, segundo o relatório.

Como dispositivos eletrônicos para fumar, os DEFs, são proibidos no Brasil desde 2009 por decisão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, os estudos da fabricante incluíram também consultas a ex-executivos da Philip Morris e da BAT, a antiga Souza Cruz, sobre o futuro regulatório do país. Na época, eles disseram que a agência se recusava a conversar com o setor, mas que a expectativa era de uma liberação em até cinco anos – ou seja, 2024. Já a Juul era mais otimista: apostava na legalização para 2021 e projetava 214 milhões de dólares em receitas no país até 2023.

“O Brasil geralmente segue o Canadá em termos de regulação; lá, há lojas de vapes e eles querem regulamentar mais; o Brasil possivelmente está a quatro ou cinco anos de distância”, disse um ex-executivo da BAT, que produz cigarros como Dunhill e Lucky Strike, num relatório da Juul de 2019. 

Hoje, a fabricante de cigarros é uma das principais apoiadoras de um projeto de lei (PL) da senadora Soraya Thronicke, do Podemos do Mato Grosso do Sul, que tenta legalizar cigarros eletrônicos no país. Enquanto isso, o próprio Canadá precisou criar novas restrições aos produtos e investir milhões para conter o avanço de uma epidemia de vaping entre jovens. Em 2022, a Vuse, marca de vapes da BAT nos EUA, era a segunda mais popular entre estudantes de ensino médio norte-americanos, atrás somente da chinesa Puff Bar.

Ao Joio, a Juul disse que “não vende seus produtos no Brasil ou em qualquer mercado que proíbe a venda de cigarros eletrônicos”. Na época, a empresa planejava sua expansão internacional após ter tido 35% de suas ações compradas pela Altria, a empresa-mãe da Philip Morris, que fabrica marcas como Marlboro e L&M. A subsidiária brasileira da fumageira afirmou à reportagem “que não mantém qualquer relação comercial com a empresa Juul”.

Influencers primeiro, vapes baratos depois

Esses estudos integravam um plano confidencial chamado “Project Ernest”, cuja ideia era estudar os hábitos de consumidores em “mercados importantes” para se lançar novos vapes globalmente. Uma das prioridades envolvia México, Nigéria e Filipinas, além do Brasil. O planejamento foi contratado junto à multinacional de consultoria corporativa Bain e contou com a participação do escritório da empresa em São Paulo.

Procurada pelo Joio, a Bain afirmou que “não comenta trabalhos desenvolvidos para seus clientes, que ocorrem sob políticas de confidencialidade, e esclarece que sua atuação é restrita ao planejamento e execução de projetos estratégicos”.

A meta do projeto era promover os DEFs como uma alternativa mais segura ao cigarro tradicional e com foco em tabagistas, mas sem vendê-lo como um vape comum, o que poderia afastar consumidores mais conservadores, geralmente homens. “Uma comunidade vaper já existe e os fumantes podem não sentir que se encaixam nesta cultura”, disse o então diretor de produto da fabricante, Nihir Shah, em um email de 18 de dezembro de 2018, uma das primeiras discussões sobre o Ernest. 

A estratégia de apresentar cigarros eletrônicos como produtos de “redução de danos” para auxiliar pessoas a pararem de fumar tem guiado o lobby do setor pela liberação, mas sem que existam evidências sólidas sobre benefícios à saúde pública na medida. Na prática, em países como Canadá, EUA e Reino Unido, a liberação facilitou o avanço do tabagismo, e não sua redução, ainda que esses governos defendam que vapes sejam uma opção menos prejudicial para fumantes.

“Quando há legalização, o que nós vemos é que a explosão de uso não é entre quem quer parar de fumar, e sim entre os jovens que não usavam nenhum produto anteriormente”, explica a enfermeira Stella Bialous, professora da Universidade da Califórnia, que hospeda o arquivo da Juul via TTID. “É gente que não usava nicotina nenhuma e começa a vapear”, diz.

Nos e-mails, Shah considerou que, enquanto um vape de baixo custo não fosse lançado, “produtos [da Juul] já disponíveis podem penetrar nas classes médias e altas, atraindo influencers e primeiros interessados criando momentum e aceitação social” em países emergentes. 

“Nesses mercados, precisaremos de uma forte estratégia de redes sociais”, disse o diretor da Juul, que considerou que as versões baratas de vapes só ganhariam tração após haver “confiança popular no produto”. “Em nossas entrevistas [com consumidores], reviews do YouTube e posts no Facebook foram citados como a melhor fonte de conhecimento para cigarros e vaping”, afirmou Shah. 

Em casos como o brasileiro, o preço é essencial para a entrada no mercado porque há mais tabagistas entre pessoas com menor renda e sem educação formal, mostraram os estudos contratados pela empresa.

Segundo o último documento disponível a respeito do projeto Ernest no arquivo do TTID, de abril de 2019, as últimas estimativas de preço da Juul para países como o Brasil incluíam o lançamento de vapes com custo entre 8,24 e 12,38 dólares, valores que corrigidos pela inflação e câmbio ficariam entre R$ 56 e R$ 84. 

Hoje, cigarros eletrônicos vendidos no Paraguai e contrabandeados ao país já superam facilmente essas margens. Na fronteira, um vape descartável de 15 mil tragadas da Ignite, uma das marcas mais populares, sai por 7,5 dólares, ou R$ 40. 

‘Brasil – bom exemplo do que queremos evitar’

Uma expansão para o Brasil, no entanto, já estava no radar da Juul antes mesmo do projeto Ernest. Os arquivos indicam o forte interesse do público brasileiro nos cigarros eletrônicos da Juul, o que justificava o apetite da empresa pelo mercado nacional. Em setembro de 2017, o país foi listado como tendo a maior quantidade de produtos da empresa sendo vendidos irregularmente na internet, a maioria deles por meio do Mercado Livre. 

Só em agosto daquele ano, foram 6,1 mil violações identificadas na plataforma no Brasil contra 1,4 mil no eBay norte-americano, o segundo lugar no ranking. Além disso, dos cinco principais contrabandistas online de vapes da Juul mapeados, três eram brasileiros, mostra o relatório da empresa.

Essa preocupação não impediu a fabricante de cigarros eletrônicos de negociar com contrabandistas para tentar emplacar seus produtos por aqui. Em janeiro de 2017, uma loja catarinense chamada VapoKings contatou a Juul por e-mail. Estava interessada em vender vaporizadores de ervas da Pax, uma das marcas de DEFs da empresa, apesar deles serem “proibidos pela Secretaria de Saúde”, dizia a mensagem. 

A empresa norte-americana sabia que o vaporizador era proibido no país. No ano anterior, em 2016, os arquivos do TTID indicam que a Juul tentou registrar o Pax junto à Anvisa e teve seu pedido rejeitado – a agência não confirmou a existência do pedido de registro ao Joio. No entanto, ainda assim, a marca foi receptiva à VapoKings dizendo que seu “time de compliance” achava “que a importação não deveria ser um problema para o Brasil”. 

O negócio, no entanto, não foi adiante porque a loja de vapes não estava disposta a firmar nenhum contrato para se tornar uma distribuidora oficial da Pax no país e propôs apenas a importação de quantidades pequenas.

O interesse da Juul no mercado brasileiro, no entanto, não diminuiu nos anos seguintes. Em agosto de 2018, por exemplo, um dos executivos da empresa, Ben Schwartz, enviou um e-mail com o título “Brasil – bom exemplo do que queremos evitar” para seus colegas, Riaz Valani e Daniel Cruise, investidores na fabricante de vapes. 

A mensagem comentava um “briefing regulatório” que incluía a notícia de um encontro em junho daquele ano entre a Anvisa, o Instituto Nacional do Câncer  e a Associação Médica Brasileira onde uma possível liberação de cigarros eletrônicos foi discutida e rechaçada pelos especialistas. Na ocasião, os experts destacaram a falta de evidências confiáveis sobre possíveis benefícios no uso desses produtos em iniciativas de “redução de danos” ou “cessação de tabagismo”, dois dos pilares do marketing da Juul. 

“O Brasil é um dos muitos países adotando uma abordagem ‘tudo ou nada’ à nicotina no lugar de uma baseada na redução de riscos”, resumiu o briefing da Juul, compartilhado entre os executivos. “A notícia, apesar de desapontadora para apoiadores de cigarros eletrônicos, não é inesperada em um país que segue de perto as orientações da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, da OMS, ratificada em 2005”, concluiu o texto.

“Há uma lógica de redução de danos em remédios via oral ou de reposição de nicotina, enquanto o vape, pelo contrário, você vê gente fumando mil, cinco mil puffs (tragadas) ao dia”, critica a médica psiquiatra Carolina Costa, vice-presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas. “Gente que dorme com um vape debaixo do travesseiro e se assusta porque usou durante o sono e não se lembra, ou seja, é altamente causador de dependência e não salva seu pulmão.”

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