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Gastos ambientais não deveriam entrar no arcabouço fiscal

Queimadas de setembro e enchentes no RS provam que não é 'fiscalmente responsável' cortar em prevenção de desastres para gastar muito mais desfazendo o estrago.


O Brasil arde em chamas. E não é só o fogo que consome nossas florestas. É também a omissão estrutural e deliberada dos governantes, que, presos às regras de austeridade fiscal, repetem que “não há recursos” para combater a destruição ambiental.

A deterioração do orçamento federal destinado ao meio ambiente reflete essa lógica perversa, onde a austeridade é tratada como um dogma, enquanto a realidade arde diante de nossos olhos. O mesmo tipo de corte orçamentário foi visto na prevenção às enchentes no Rio Grande do Sul, no início do ano.

Responsabilidade fiscal não se faz com irresponsabilidade ambiental

O orçamento atual do Ministério do Meio Ambiente ainda é inferior ao observado durante a gestão Temer e até mesmo no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, que foi marcado por uma agenda de absoluto e agressivo negacionismo climático.


Os dados das últimas duas décadas deixam claro que, conforme a destruição ambiental aumenta, os recursos destinados a combatê-la sofrem uma queda estrutural alarmante, agravando ainda mais a situação.

Fonte: SIOP. Elaboração própria. Valores ajustados pelo IPCA para o ano de 2024.

Apesar disso, o discurso do mercado financeiro e de seus representantes, tanto na grande imprensa quanto nos últimos governos, continua o mesmo roteiro previsível: “não podemos gastar mais, há um risco fiscal a ser considerado”.

Risco fiscal? O que realmente enfrentamos é uma tragédia ambiental já em andamento, com a degradação visível dos ecossistemas e o abandono de qualquer responsabilidade socioambiental nas políticas fiscais.

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Diante das queimadas atuais, a resposta tem sido mínima: o ministro do Supremo Tribunal Federal Flávio Dino fez o que pôde: liberou crédito extraordinário. Um gesto importante, mas insuficiente diante da gravidade da crise. E o mais preocupante: não há qualquer sinal de que haverá uma mudança estrutural.

As atuais queimadas são apenas o sintoma visível de uma crise mais profunda: a crise estrutural do capitalismo neoliberal, cujo projeto passa por desmontar o estado, especialmente em seu papel de proteção social e ambiental. Para consolidar esse desmonte, as políticas de austeridade fiscal são a ferramenta central.

As soluções mais urgentes e básicas, como a exclusão dos gastos ambientais do Novo Arcabouço Fiscal, estão ausentes da agenda política.

Nos países periféricos, como o Brasil, essa realidade é ainda mais drástica. O país está preso a uma lógica extrativista e destrutiva, liderada por um agronegócio que se autoproclama “motor da economia”, mas que na verdade age como o maior destruidor do nosso futuro.

E, associado ao agronegócio, está o setor rentista, que, diante da crise climática, prioriza a austeridade fiscal e seus ganhos financeiros espoliativos acima de qualquer ação ambiental.

A pergunta que precisamos nos fazer é: vamos seguir com essa política de austeridade fiscal, destruindo a capacidade do estado de agir preventivamente e aguardando a próxima crise para improvisar mais uma resposta? Vamos continuar aceitando esse ciclo vicioso de desastres mal administrados, como ocorreu nas enchentes no Rio Grande do Sul e agora se repete com as queimadas?

Como apontou a socióloga Sabrina Fernandes em coluna para o Intercept Brasil, também é negacionismo climático apresentar respostas inadequadas ou ineficientes. No fim das contas, o verdadeiro negacionismo não se trata apenas de ignorar a ciência, mas de negar ao planeta a possibilidade de um futuro sustentável.

As soluções mais urgentes e básicas, como a exclusão dos gastos ambientais do Novo Arcabouço Fiscal, estão ausentes da agenda política. Sequer são debatidas, infelizmente. Mas não podemos esquecer: não é fiscalmente responsável economizar dinheiro para prevenção de desastres ambientais e ter que gastar muito mais para reconstruir depois.

A regra de ouro verde

O arcabouço perpetua a verdadeira irresponsabilidade fiscal ao não garantir as funções mínimas do estado diante das crises ambientais. Retirar os gastos ambientais das restrições fiscais é o mínimo, mas ainda está longe do ideal — que seria o abandono completo de regras fiscais negacionistas e pró-cíclicas, que inviabilizam o cumprimento dos direitos fundamentais garantidos pela Constituição.

Entretanto, mesmo esse mínimo parece revolucionário em tempos de negacionismo e brutalização do neoliberalismo.

Cortar despesas não garante eficiência — muito pelo contrário.

O caminho inicial deveria ser a aprovação imediata de uma regra de ouro verde, conforme defendida por economistas como o prêmio Nobel Joseph Stiglitz. Essa regra permitiria ao estado investir em políticas ambientais de maneira planejada e contínua, sem as restrições impostas por uma ficção fiscal que sufoca a capacidade de ação pública.

A regra de ouro em finanças públicas tradicionalmente se refere ao tratamento privilegiado das despesas de capital, permitindo o endividamento para aumentar a capacidade produtiva da economia.

No contexto ambiental, a regra de ouro verde segue a mesma lógica, mas focada em excluir os investimentos verdes dos cálculos fiscais que medem o cumprimento das regras de austeridade. Este conceito está em discussão em diversos países, especialmente na União Europeia, mas segue praticamente ignorado no debate fiscal brasileiro.

Alguém poderia argumentar que uma regra fiscal desse tipo tornaria os gastos públicos irresponsáveis e fora de controle. No entanto, essa é uma das falácias mais comuns no debate orçamentário. Não é o esmagamento dos gastos públicos que os torna mais responsáveis, transparentes e eficientes.

No Brasil, a deterioração da qualidade orçamentária nos últimos anos, especialmente devido ao “orçamento secreto”, ocorreu justamente em um período de austeridade fiscal extremista. Isso demonstra que cortar despesas não garante eficiência — muito pelo contrário.

Responsabilidade é gastar com planejamento, não cortar todos os gastos

A verdadeira responsabilidade com os gastos públicos, especialmente os ambientais, deve estar atrelada a um planejamento sólido de curto, médio e longo prazo, focado em preparar e adaptar o país para eventos climáticos extremos, como secas e enchentes, ao invés de esperar pela tragédia para, então, buscar crédito extraordinário.

O caso do Rio Grande do Sul é um exemplo do impacto devastador do negacionismo fiscal. A região sofreu perdas e danos muito maiores do que deveria, simplesmente porque a prevenção foi deixada de lado em nome da austeridade fiscal.

Sabemos que a regra de ouro verde não nos salvará da tragédia ambiental causada pelo capitalismo predatório, mas é um ponto de partida.

Ao ignorar os alertas e negligenciar os investimentos necessários para evitar catástrofes, o governo foi forçado a gastar muito mais em reconstrução do que teria gasto se houvesse investido previamente na prevenção e adaptação.

Dados do governo federal mostram que, entre 2018 e 2024, os recursos destinados à reconstrução de desastres no estado foram sete vezes maiores que os recursos alocados para prevenção. Isso reflete uma escolha política desastrosa, onde o foco reativo gera um custo financeiro e social muito mais elevado, além de perdas irreversíveis ao meio ambiente e à vida das pessoas.

Sem planejamento adequado e recursos garantidos, o Brasil está vulnerável diante de eventos climáticos extremos, como queimadas e enchentes. Em vez de agir preventivamente, os gastos ambientais aumentam drasticamente apenas após as tragédias, seguidos de cortes severos. 

Esse ciclo de austeridade fiscal, que catalisa desastres e depois responde com créditos extraordinários, compromete gravemente a fiscalização, criando brechas para desvios e falta de transparência.

Ironicamente, a própria austeridade, que segundo seus defensores deveria garantir eficiência, tem se mostrado uma das principais causas da desorganização orçamentária e da falta de controle sobre os recursos destinados à proteção ambiental.

Quando o estado só age após a catástrofe, sem planejamento, fica ainda mais difícil garantir a transparência nos gastos, e a resposta emergencial acaba se tornando mais uma ferramenta de improviso e desperdício.

Ou, pior, como nos relatou Antony Loewenstein em entrevista ao Intercept Brasil, a resposta emergencial pode ser usada como oportunidade de lucro, retirada de direitos e gentrificação, numa espécie segunda tragédia, política, após a tragédia ambiental.

Apesar dos inúmeros argumentos e dados científicos que mostram os impactos das mudanças climáticas, as elites provavelmente continuarão a defender o mito do “desequilíbrio fiscal”.

Se for esse o caso, é hora de levantar um ponto igualmente urgente: a implementação de uma tributação verde sobre o agronegócio, a mineração e outros setores predatórios. Por que não reverter o crédito do Plano Safra para financiar a transição energética?

Isso exigirá uma mobilização popular forte — e é exatamente disso que precisamos. Esta crise é uma oportunidade de organizar o povo em torno de suas demandas imediatas e pressionar por mudanças reais.

Sabemos que a regra de ouro verde não será suficiente para salvar-nos da tragédia ambiental causada por um capitalismo predatório, mas é um ponto de partida para confrontar diretamente as elites e forçar transformações concretas. O processo será árduo, e os interesses dominantes resistirão.

No entanto, é no calor dessas lutas que preparamos o terreno para uma verdadeira transformação, que é a única saída viável para reverter a destruição ambiental e garantir um futuro sustentável.

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