Os limites da democracia têm sido sistematicamente testados nos últimos anos e parece que estamos nos acostumando com isso. A popularização do bolsonarismo e sua consolidação como uma corrente política aceitável no jogo democrático ajudaram a normalizar absurdos até então inimagináveis.
Não faltam exemplos. Já tivemos deputada correndo atrás de críticos na rua com revólver na mão, deputado fazendo ameaças a ministros do STF, presidente sonegando vacina durante a pandemia enquanto recomendava um vermífugo para combater o vírus, e por aí vai.
Essa normalização da bizarrice no cenário político pavimentou o caminho para o surgimento de Pablo Marçal, o bolsonarista 2.0 que elevou o absurdo à máxima potência e interditou a disputa eleitoral em São Paulo.
De maneira proposital e sistemática, o coach acusa falsamente seus adversários políticos de crimes graves, agride verbalmente jornalistas, descumpre leis eleitorais de todas as maneiras e esculhamba com os debates.
Esse vandalismo não é um expediente ocasional do candidato, mas permanente. Pablo Marçal é um vândalo profissional. A estratégia principal da sua campanha é puxar a atenção para si e pautar o debate público a todo momento com as piores baixarias.
Tem funcionado até certo ponto. Apesar de ter consolidado em torno de 20% das intenções de votos, o candidato coach também tem visto sua rejeição aumentar a cada pesquisa.
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Marçal criou um ambiente de violência na disputa eleitoral de São Paulo. Sua agressividade contra os adversários foi aumentando a cada debate e era fácil prever que a coisa iria acabar terminando em porrada.
Era uma questão de tempo. Depois das cadeiradas, Marçal fez aquela encenação no vídeo da ambulância, deixando claro que o que ele queria mesmo era ser agredido para poder armar o circo da vitimização.
O mesmo aconteceu no debate seguinte, quando seu assessor enfiou a mão na cara do marqueteiro de Nunes, que teve a retina deslocada. É um sujeito inconsequente, violento, com espírito de autocrata e com clara intenção de atacar a democracia.
Papel da imprensa
O que pode vir depois de uma cadeirada e um soco na cara? Um tiro de revólver? Um ataque a facas? Foi preciso duas agressões físicas para suscitar um debate na imprensa: Marçal deve continuar sendo convidado para os debates? Ninguém é obrigado a convidá-lo, já que a lei só garante a presença de candidatos de partidos políticos que tenham ao menos cinco parlamentares eleitos na Câmara dos Deputados.
O PRTB de Marçal não cumpre esse requisito. Uma pergunta melhor seria: devemos convidar pro debate alguém cujo único objetivo é inviabilizar o debate? Me parece evidente que não.
Entendo a intenção do jornalismo em garantir que parte relevante do eleitorado esteja representada no debate. Afinal de contas, Marçal está na terceira posição nas pesquisas, com chances de alcançar o segundo turno. Mas a função primordial do jornalismo é a defesa da democracia, até porque só nela sua existência é possível.
Em nome da pluralidade, não podemos mais continuar abrindo as janelas da democracia para populistas radicais que pretendem destruí-la. Quem não respeita adversários políticos e jornalistas e a todo momento lança mão de violência, não reúne os requisitos mínimos para participar do jogo democrático.
Desagradar o eleitorado que endossa o vandalismo de Marçal me parece um custo muito baixo para garantir que todos possam assistir a debates políticos minimamente civilizados. Ou fecha-se a porta para esse tipo de candidato, ou abriremos precedente para o surgimento de coisa pior nas próximas eleições.
O mediador do debate da cadeirada, o jornalista Leão Serva da TV Cultura, escreveu um artigo para a Folha de S. Paulo questionando o papel da imprensa na normalização de candidatos que ameaçam a democracia. Ele defende que o coach não deve ser convidado para debates.
O artigo começa perguntando: “Dado o conhecimento que temos hoje, se Adolf Hitler fosse candidato a um cargo de governo, deveríamos convidá-lo para um debate? Um líder político que promete atos disruptivos pode, um dia, ser considerado um participante legítimo da democracia?”.
É inviável convidar quem já demonstrou que não é capaz de respeitar regras básicas de civilidade.
Segundo ele, a imprensa brasileira, enfraquecida pela perda de audiência, vive uma “síndrome de Estocolmo em relação às mídias digitais”, e acaba andando a reboque delas. A realidade, porém, é que o jornalismo parece ignorar que é ele próprio quem alimenta e pauta os assuntos nas redes sociais através do noticiário.
Se essa permissividade com candidatos vândalos continuar, o jornalismo será engolido por eles junto com a democracia. Há que se impor os limites permitidos por lei para evitar que os debates se tornem picadeiros de palhaços autocratas que dominam as ferramentas da era da economia da atenção.
“O jornalismo, desde o século 18, é um elemento estrutural das democracias, funcionando como um microcosmo do debate político geral. Ao atacar jornalistas ou subverter o debate, movimentos autocráticos anunciam a destruição de todos os espaços democráticos do Estado. O alvo não é o jornalista, mas o jornalismo e a democracia.”, destacou Serva.
No debate seguinte ao da cadeirada, a Rede TV aparafusou as cadeiras no chão para evitar que elas sejam usadas para agressões. Chega a ser engraçado, mas não deixa de ser deprimente.
Qual será o próximo passo? Distribuir protetores bucais com os de pugilistas para os candidatos? Distribuir coletes à prova de bala? Há que se ter um limite. É inviável convidar quem já demonstrou em diversas oportunidades que não é capaz de respeitar regras básicas de civilidade.
Além de ser violento, Marçal desperta a violência nos seus adversários. Alguém como ele não seria aceito em reunião de condomínio ou numa reunião de pais na escola. Por que deveríamos aceitá-lo nos debates políticos das eleições da maior cidade do país?
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