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A mídia transforma a população do Líbano em terroristas para justificar Israel

Imprensa chama bairros de Beirute de "redutos do Hezbollah" enquanto a guerra expansionista de Israel massacra civis.

Ataque de Israel em Beirute, no Líbano, destrói edifícios residenciais. 20/09/2024.

Israel: estado genocida

Parte 3

Em um ano, Israel matou mais de 186 mil palestinos e aniquilou a infraestrutura de Gaza. Ao contrário do que a mídia hegemônica afirma, não se trata de uma "resposta ao ataque do Hamas" de 7 de outubro.


Na sexta-feira da semana passada, Israel atacou uma reunião de lideranças do Hezbollah no bairro de al-Qaem, no sul de Beirute. Foi uma operação de assassinato, que se seguiu à detonação, ocorrida dias antes, de milhares de pagers e walkie-talkies com explosivos plantados.

Em al-Qaem, os militares israelenses se vangloriaram de seu “ataque de precisão” no “coração do reduto do Hezbollah em Beirute”. A escolha de termos evocava imagens de uma operação audaciosa contra um complexo militar bem protegido, uma espécie de Pentágono, em uma empreitada inteiramente valorosa.

Na realidade, o que aconteceu foi um imenso ataque que destruiu completamente um edifício residencial e matou os líderes do Hezbollah, mas também as inúmeras famílias que moravam no local.  Muitas dessas famílias ainda estão sob o os escombros, e outras seguem desaparecidas.

Quase toda vez que chegam notícias do sul de Beirute, a imprensa ocidental só imita a terminologia usada pelos militares israelenses, como se “reduto do Hezbollah” fizesse parte do nome do bairro. Os defensores desse tipo de terminologia podem até apontar o uso de “redutos” para descrever bases de apoio do Partido Democrata dos EUA, ou do Partido Trabalhista, no Reino Unido, mas são usos que acontecem em um contexto ocidental que não confunde ninguém.

No Líbano, as conotações são óbvias, e atendem diretamente aos interesses israelenses.

“Israel faz os civis pagarem o preço de qualquer coisa que o Hezbollah supostamente tenha feito, e depois culpa o Hezbollah pelas mortes que os próprios israelenses causaram.”

Retratar como reduto militar o sul de Beirute, conhecido coloquialmente em árabe como Dahiyeh, é dar a Israel autorização para usar uma força descomunal — direcionada à infraestrutura civil tanto quanto aos líderes do Hezbollah. O objetivo declarado é impedir qualquer ataque futuro atingindo a base de suporte mais concentrada do Hezbollah. Israel faz os civis pagarem o preço de qualquer coisa que o Hezbollah supostamente tenha feito, e depois culpa o Hezbollah pelas mortes que os próprios israelenses causaram.

A estratégia tem até nome: Doutrina Dahiyeh, cunhado depois que Israel praticamente destruiu a região em sua guerra contra o Hezbollah, em 2006. Ela passaria a ser o modus operandi de Israel nas guerras seguintes, e o roteiro para a atual destruição completa de Gaza.

Agora, com a rápida escalada dos ataques de Israel contra o Líbano, a doutrina Dahiyeh está voltando para a origem, justificada pela terminologia que chama a região de “reduto” militante.

“Doutrina Dahiyeh”

Dahiyeh é um conjunto de bairros de maioria muçulmana xiita no entorno dos limites da cidade de Beirute, onde vivem centenas de milhares de pessoas. É uma área muito mais densamente povoada que a própria capital. Dentro de Dahiyeh existem diversos campos de refugiados para palestinos e outros grupos, que são ainda mais densamente povoados que as aglomerações urbanas ao redor.

Na década de 1980, durante os 15 anos de guerra civil do país, a região sofreu massacres por integrantes de organizações paramilitares cristãs libanesas de direita, apoiadas por Israel. Dahiyeh também sofreu um número gigantesco de mortes em 2006, quando recebeu um intenso bombardeio israelense durante a guerra entre Israel e o Hezbollah.

Grupos como o Hezbollah, que se opõem às organizações que causaram tanta destruição, recebem na região um apoio significativo. O Hezbollah é um partido político, com alas militares e civis, uma organização que interage com instituições públicas e concorre às eleições como qualquer outro partido político do Líbano. Ao caminhar por Dahiyeh nos últimos dias, era impossível não ver as inúmeras fotos de combatentes do Hezbollah abatidos e retratos do então secretário-geral do Hezbollah, Hassan Nasrallah, morto esta semana por Israel.

Embora o nome “Doutrina Dahiyeh” tenha vindo logo depois da guerra, as autoridades militares israelenses falavam abertamente sobre sua abordagem na região e declaravam uma política com explícita intenção de não distinguir entre infraestrutura civil e militar.

Em uma entrevista de 2008, o general israelenses Gadi Eisenkot, que ajudou a formular a doutrina, deixou claro que os ataques desproporcionais contra a infraestrutura civil eram parte da estratégia, não um efeito indesejado.

“O que aconteceu em 2006 no bairro de Dahiyeh, em Beirute, vai acontecer em todas as aldeias de onde Israel seja alvejado”, disse. “Vamos aplicar força desproporcional [no vilarejo] e causar grandes danos e muita destruição lá. Da nossa perspectiva, não são vilarejos civis, são bases militares.”

E acrescentou: “Essa não é uma recomendação. É um plano. E foi aprovado.”

As vidas dos libaneses são descartáveis na luta contra o Hezbollah, pura e simplesmente. As repercussões dessa mudança declarada se mostraram com ainda mais clareza na Faixa de Gaza.

Gaza como Base do Hamas

Há meses estamos sendo expostos a uma sequência de relatórios declarando que praticamente tudo na Faixa de Gaza é uma base do Hamas, um lugar que abriga terroristas do Hamas, um centro de comando do Hamas.

Mesquitas, hospitais e escolas são todos alvos declarados dos militares israelenses, e suas ligações com o Hamas muitas vezes não são nem explicadas. Quando as explicações surgem, elas se baseiam em absolutamente qualquer interação com o Hamas — que é o governante do território onde esses lugares existiam.

“Tudo que toca o Hezbollah automaticamente se transforma em alvo militar na interpretação mais extensiva possível.”

A grande mídia ocidental vem seguindo diligentemente essa escolha de termos, preparando o terreno para que locais como o Hospital al-Shifa fossem destruídos sem muito alarde, nem muita comprovação. O renascimento da doutrina Dahiyeh no Líbano adota a mesma lógica: tudo que toca o Hezbollah automaticamente se transforma em alvo militar na interpretação mais extensiva possível. 

A imprensa ocidental, no entanto, jamais toleraria que esse tipo de terminologia fosse usado contra os israelenses. Nenhum veículo de comunicação dos EUA jamais defenderia a sério o argumento de que as Forças de Defesa Israelenses estão usando “escudos humanos” por manterem seu quartel-general no centro de Tel Aviv.

As FDI, por sua vez, reagiram a um ataque iemenita com drones em Tel Aviv com uma ilustração da área, mostrando a proximidade da infraestrutura civil importante e condenando a imprudência, aparentemente sem perceber qualquer ironia.

O objetivo dessa terminologia é claro: apagar a ideia de que esses lugares, cidades, vilarejos, e bairros como Dahiyeh existem como centros populacionais movimentados, com tanta complexidade política quanto outros lugares, e, principalmente, que são o local de residência de milhões de pessoas que vivem seu cotidiano.

Enquanto existirem fora das esferas de influência dos EUA e de Israel, as vidas dessas pessoas são consideradas descartáveis, feitas apenas para serem jogadas fora como dano colateral, de uma forma que estadunidenses e israelenses jamais aceitariam. Essas vidas só têm importância quando podem ser usadas como massa de manobra contra os grupos a quem os países ocidentais se opõem, e quando elas se recusam a colaborar, são esquecidas na mesma velocidade.

A população de Dahiyeh não deveria precisar comprovar sua humanidade para o mundo. Ela deveria ser inerente.

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