O INTERCEPT BRASIL FOI A RECIFE para conferir a situação das creches festejadas pelo candidato à reeleição, o prefeito João Campos, do PSB, e ver de perto se as parcerias da prefeitura com instituições sem fins lucrativos, ONGs, fundações e cooperativas educacionais estão funcionando tão bem como ele diz na sua propaganda eleitoral.
Depois de mapear todas as entidades selecionadas pela prefeitura, percorrer oito bairros do Recife e visitar 11 creches, o que vimos foram unidades improvisadas, inseguras para as crianças e inauguradas às pressas.
João Campos prometeu que iria dobrar o número de vagas nas creches do Recife logo que assumiu a prefeitura, em 2021. Seriam “7 mil vagas ao longo dos próximos quatro anos”.
Passado esse tempo, ele garante que cumpriu a promessa e tem usado esse discurso como uma das principais bandeiras na campanha pela reeleição. Agora, diz que vai triplicar o número de vagas.
Para cumprir a promessa, a prefeitura firmou parcerias com instituições sem fins lucrativos, ONGs, fundações e cooperativas educacionais. Paga entre R$ 477 e R$ 564 mensais por criança matriculada, dependendo do tempo que elas ficam na creche ou na pré-escola. Além disso, as entidades recebem dinheiro para adequação da estrutura física.
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Sem estrutura nem experiência
Também descobrimos que a prefeitura despejou verba pública em instituições que não tinham qualquer experiência comprovada com educação na primeira infância.
Mapeamos 46 entidades que, incluindo suas filiais, somam ao menos 77 unidades parceiras da prefeitura. Dessas unidades, 41 ou cerca de 53% abriram CNPJ de creche ou pré-escola somente em 2023, nos meses próximos ao lançamento de um dos editais – o primeiro foi lançado em 23 de dezembro de 2022 e o segundo, em 25 de agosto de 2023.
Um exemplo é a Associação Centro de Progressão Nossa Senhora Aparecida. Segundo dados da Receita Federal, a empresa foi registrada em 3 de janeiro de 2023, 11 dias após o lançamento do primeiro edital da prefeitura.
Em maio do mesmo ano, houve o registro de uma filial da entidade. Como o edital de 2022 ainda estava aberto, as duas unidades da associação concorreram e foram selecionadas. Receberam cerca de R$ 4,6 milhões desde então (matriz e filial).
Outro caso é o da Associação Centro de Progressão Nossa Senhora das Graças, que abriu uma matriz e duas filiais em novembro de 2023 e já teve verba da prefeitura empenhada três meses depois, em fevereiro de 2024.
As três unidades da associação foram selecionadas no segundo edital aberto pelo município e receberam, juntas, mais de R$ 1,6 milhão entre março e setembro de 2024. Mas as aulas só começaram em maio.
Tanto o Centro de Progressão Nossa Senhora Aparecida como o Centro de Progressão Nossa Senhora das Graças estão registrados em nome de Jaciara Vieira Gomes de Melo. Somando o repasse feito para as duas entidades, foram recebidos mais de R$ 6 milhões.
Melo foi condenada por estelionato, falsidade ideológica e falsificação de documentos em Pernambuco e Rondônia. Atualmente, está em liberdade porque conseguiu medida com efeito suspensivo no Tribunal de Justiça de Pernambuco. Procuramos a instituição, mas não tivemos retorno. Não conseguimos contato com Melo.
Ao todo, as 41 unidades abertas em 2023 receberam mais de R$ 29 milhões da prefeitura do Recife, segundo dados do Tribunal de Contas do Estado. Algumas são filiais de instituições que já existiam, mas nunca tinham trabalhado com educação infantil e apenas incluíram a atividade no registro da Receita Federal. Outras foram criadas do zero, por isso, também não têm experiência comprovada.
Em resposta ao Intercept, a secretaria de educação alegou que existe a possibilidade de dispensar a exigência de experiência mínima de um ano das entidades, caso não tenha outra proposta que preencha todos os requisitos e considerando “a escassez na oferta de vagas na Educação Infantil […] e a pouca disponibilidade de alternativas para atendimentos às crianças de 0 a 5 anos.” Aqui está o posicionamento da prefeitura na íntegra.
Inaugurações aconteceram às vésperas da campanha eleitoral
Em junho de 2024, o prédio onde hoje funciona a creche Amparo Brasil, na rua Resplendor, bairro Vasco da Gama, estava deteriorado. A imagem do Google Maps feita na época mostra uma fachada pintada em preto e branco. Dentro, se vê paredes descascando e restos de tijolo e areia. Moradores disseram que ali já tinha sido um salão de dança.
Quando visitamos o local, no final de setembro, a fachada tinha sido pintada de amarelo e um portão novo foi instalado, assim como uma pequena janela no segundo andar. É a única entrada de ar na frente do prédio.
Além disso, as paredes foram pintadas, houve algumas reformas e o entulho foi retirado. Também tem um banner com o nome da instituição, inaugurada em 29 de agosto, com 75 matrículas, segundo a secretaria de educação. Ela foi selecionada no edital de 2023 e recebeu cerca de R$ 146 mil entre maio e setembro de 2024.
Ao menos cinco creches que visitamos estão em situação parecida: foram inauguradas entre maio e agosto, às vésperas da campanha eleitoral, em locais improvisados, como imóveis residenciais.
Quando chegamos na creche Amparo Brasil, um funcionário nos disse que o local estava sem energia. Como não vimos crianças, perguntamos para a administradora Silvania Maria Benício Barbosa se as aulas haviam sido suspensas por causa disso.
Contradizendo o funcionário, ela respondeu que as lâmpadas foram apagadas para as crianças dormirem. Não explicou, porém, por que a creche estava escura nem por que a luz do banheiro não acendia.
Lá foi o único local onde nos deixaram entrar ao menos no primeiro portão. Nas outras creches, os funcionários abriram apenas uma pequena brecha na porta e avisaram que não tinham tempo, não queriam ou não podiam falar, por orientação da Secretaria de Educação do Recife.
Em uma delas, a Associação da Primeira Infância Mãe Rainha, na rua Engenheiro Nestor Moreira Reis, bairro Rosarinho, fomos expulsas aos gritos. Aberta em outubro de 2023, a entidade foi selecionada no segundo edital da prefeitura e já recebeu mais de R$ 530 mil neste ano.
O CNPJ está registrado no nome de Talita Vieira Gomes de Melo, filha de Jaciara Vieira Gomes de Melo – dos Centros de Progressão Nossa Senhora Aparecida e Nossa Senhora das Graças – , condenada por estelionato, falsidade ideológica e falsificação de documentos.
Encontramos o local em obras, apesar de haver crianças no mesmo prédio. Os pedreiros instalavam pisos de cerâmica e usavam ferramentas para serrar madeira. O barulho era intenso.
A funcionária não soube responder de imediato quantas crianças estavam matriculadas. Quando nos identificamos como jornalistas, ela informou que eram “mais de 10 salas”.
Fomos expulsas logo em seguida, após sermos filmadas, ouvirmos gritos de uma das gestoras por telefone e sermos acusadas de estarmos a serviço do candidato bolsonarista Gilson Machado, do PL, que tem usado o tema das creches para atacar João Campos.
A Secretaria de Educação informou que são 171 alunos matriculados e justificou que as obras não colocam a segurança das crianças em risco.
Em um dos endereços, na rua do Campo, bairro Joana Bezerra, só conseguimos localizar a creche porque uma moradora nos levou até lá. A Associação Aprender e Conviver do Coque, onde estão matriculadas 108 crianças, segundo a secretaria, não tem qualquer identificação. É apenas uma casa, com uma porta estreita e sem janelas.
Somente essa creche recebeu R$ 318 mil da prefeitura de João Campos em 2024. Ela é ligada à Associação dos Educadores das Escolas Comunitárias de Pernambuco, que possui ao menos outras cinco creches selecionadas no programa municipal e já recebeu mais de R$ 6,4 milhões desde 2023.
Na creche, não conseguimos falar com a administradora nem fomos autorizadas a entrar. Ligamos para o telefone fixo que seria da associação, mas a chamada não foi atendida.
Já na rua da Capela, no bairro Jardim São Paulo, havia o prédio de uma academia até julho de 2024, no lugar onde vai ser o Centro Educacional Infantil Criar. Quando visitamos o local, a fachada já tinha sido pintada de amarelo e um banner foi colocado para indicar que ali é uma creche parceira da prefeitura.
De acordo com a Secretaria de Educação, a unidade, que recebeu R$ 114 mil em 2024, está em fase de adequação da estrutura física e não tem alunos estudando. Um papel na parede informa que o horário de matrículas, pela manhã, é de 8h ao meio dia. Chegamos por volta das 11h e não encontramos ninguém. Procuramos a entidade, mas não tivemos resposta.
Já em uma creche na rua Martin Luther King, no bairro São José, foi possível ver que as crianças precisam subir uma escada íngreme, curvada e insegura, para ter acesso à parte superior do prédio. O local não era uma unidade escolar até junho de 2024 e, agora, é identificada apenas por um banner de boas-vindas aos recém-matriculados. A creche Pão da Vida não respondeu ao nosso contato.
Os repasses feitos às creches inauguradas recentemente referem-se principalmente à verba de adequação, paga pela prefeitura para que as unidades façam as reformas necessárias.
Segundo a secretaria de educação, “não existe um padrão único de estrutura física”. Teoricamente, as obras são definidas por uma equipe técnica especialista que visita o local antes de ser formalizada a parceria. Nessa etapa, as entidades também recebem 10% do valor que será pago mensalmente quando as crianças estiverem matriculadas.
O edital prevê que o repasse de adequação é pago em três parcelas: 40% quando a entidade assina o Termo de Colaboração, 30% quando as obras estruturais forem concluídas e 30% quando for apresentado o alvará de funcionamento.
Na prática, porém, ao menos seis creches foram autorizadas pela prefeitura a funcionar sem alvará ou mesmo vistoria do Corpo de Bombeiros.
Segundo a pedagoga Catarina Gonçalves, professora do Centro de Educação da Universidade Federal do Pernambuco, todas as questões que verificamos nas creches no Recife são problemáticas não só para a segurança, mas também para o desenvolvimento na primeira infância.
“Quando se fala de creche e pré-escola, os espaços não constituem apenas os prédios. Todo o ambiente deve ser pensado para favorecer o desenvolvimento pleno. Tem que ser motivador, promotor da autonomia da criatividade, da interatividade e da apredizagem”, disse a especialista em educação infantil.
Por isso, acrescenta Gonçalves, as tentativas de alavancar os números de matrículas em creches de qualquer forma, inclusive com estímulo a parcerias público-privadas, como acontece no Recife, é equivocada. “Faz com que qualquer espaço seja utilizado como creche, mesmo sem a estrutura mínima necessária para a oferta de uma educação de qualidade para os bebês e as crianças”, afirmou.
De acordo com a pesquisa Retrato da Educação Infantil no Brasil, 44% dos municípios pernambucanos têm crianças em fila de espera por uma vaga na creche. “Essa realidade faz com que a população, desesperada, aceite qualquer tipo de oferta”, analisa Gonçalves.
Instituto abriu CNPJ de 10 creches no mesmo dia
De todas as entidades que mapeamos, o Instituto de Consultoria, Cidadania e Assessoria Social, o Iccaspe, é a que abriu o maior número de creches em 2023. Foram 10 CNPJs registrados como filiais no mesmo dia: 10 de dezembro de 2023. Ao todo, a entidade já recebeu R$ 3,8 milhões da prefeitura do Recife.
Uma série de reportagem da Marco Zero Conteúdo mostrou que ao menos duas pessoas ligadas à prefeitura também trabalham para o Iccaspe.
Uma delas é Nerivaldo Bezerra dos Santos, que se identifica como coordenador do instituto nas redes sociais e possui um cargo comissionado na secretaria de meio ambiente. A pasta é administrada por Oscar Barreto, irmão do vereador Osmar Ricardo, do PT, de quem Santos é um apoiador.
O outro é Francisco Soares de Santana, designado para fazer parte da Comissão de Seleção para Parcerias na Educação Infantil em abril de 2023. Ele era um dos responsáveis por escolher as entidades que estavam concorrendo no primeiro edital quando, de acordo com a denúncia da Marco Zero Conteúdo, criou um grupo no WhatsApp chamado “ICCASPE – Coordenação Pedagógica e Administrativa das Creches-Escolas”.
Por lá, ele passou a direcionar equipes e adicionar coordenadoras e outros funcionários da entidade. “Que venham a nós as criancinhas”, escreveu em uma das mensagens enviadas no grupo.
O instituto existe desde 2009, mas tinha, entre suas atividades secundárias registradas no CNPJ, os serviços de restauração e conservação de lugares e prédios históricos e de pesquisas de mercado e opinião pública, de acordo com dados da Receita Federal.
Mas só em agosto de 2022, quatro meses antes do lançamento do primeiro edital de seleção de entidades parceiras para o Programa Creche na Infância, o Iccaspe passou a ter educação infantil como parte das suas atividades. Procurado, o instituto não respondeu e disse para falarmos com a secretaria de educação.
Prefeitura afrouxou regras de edital
O Iccaspe seguiu as orientações da própria secretaria de educação do Recife para incluir a atividade. Em uma cartilha que distribuiu com informações sobre o segundo edital, em 2023, o órgão aconselhou que as entidades que não trabalhavam com educação infantil acrescentassem os serviços de creche e pré-escola em suas atividades secundárias e orientou que ajustassem seus estatutos.
“Para os casos em que o Estatuto não possua os requisitos exigidos [pelo edital], deve-se ajustar o documento através de ata de alteração do estatuto registrada em cartório”, dizia a cartilha, na página 6.
A entidade também não precisava comprovar expertise em educação infantil. Se nunca trabalhou com crianças de zero a cinco anos, bastava informar os projetos que pretendia realizar e mostrar “trabalhos na comunidade em que atua, como, por exemplo, distribuição de cestas básicas”.
Ter estrutura física adequada tampouco foi uma exigência. Segundo a cartilha, a unidade poderia, simplesmente, “planejar ter, pelo menos, 5 turmas e 3 salas no seu espaço”.
Questionada, a prefeitura justificou que a cartilha “busca orientar de forma didática e simples as instituições”. Quanto à menção à apresentação de trabalhos na comunidade, afirmou que isso “funciona apenas como uma oportunidade para que a instituição demonstre ter trânsito, legitimidade e reconhecimento”.
O Ministério Público do Estado de Pernambuco e o Tribunal de Contas do Estado estão investigando indícios de irregularidades no Programa Creche da Infância. Há denúncias de favorecimento político e de falta de transparência nos contratos feitos com as entidades parceiras.
Os critérios de seleção das entidades também suscitam dúvidas, já que foram escolhidas organizações recém-criadas, incluindo algumas sem qualquer experiência comprovada com educação infantil, como é o caso do Iccaspe e dos Centros de Progressão Nossa Senhora das Graças e Nossa Senhora Aparecida.
Além disso, R$ 29 milhões foram pagos para 41 instituições novas, às vésperas da eleição. O Instituto Nossa Senhora Aparecida, por exemplo, cuja matriz é de 2018, abriu quatro novas filiais em outubro de 2023 e já recebeu R$ 5,5 milhões. Quase 80% desse valor, cerca de R$ 4,3 milhões, foram pagos só este ano. A entidade não respondeu ao nosso contato.
Correção: 8 de outubro, 17h45
Ao contrário do que foi informado na primeira versão deste texto, a creche Instituto Criança Feliz – Anexo I existe. Depois de não localizarmos a creche no endereço publicado no Diário Oficial do Recife, questionamos a prefeitura sobre a localização exata da unidade, mas não tivemos resposta. Após a publicação da reportagem, a prefeitura enviou um comunicado informando que a creche estava em funcionamento. O Intercept, então, constatou que o estabelecimento fica nos fundos de uma construção, com acesso por uma rua diferente do endereço da creche publicado no Diário Oficial do Recife. A informação foi corrigida.
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