Israel matou ao menos 558 pessoas no Líbano no dia 23 de setembro. Entre elas, 50 crianças e 94 mulheres. Mais de 1.800 pessoas ficaram feridas e milhares de famílias fugiram de suas casas no sul do país.
Dias depois, em 27 de setembro, cerca de 85 bombas “bunker buster”, que pesam de 900 a 1.800 kg cada, foram lançadas sobre o subúrbio de Dahieh, ao sul da capital, área residencial que é uma das mais densamente povoadas do país. Seis prédios residenciais foram demolidos no ataque, que matou Hassan Nasrallah, secretário-geral do Hezbollah.
“Ataque a Hezbollah era necessário para conter ameaça”, disse o editorial de O Globo em 29 de setembro, dois dias depois do bombardeio ao subúrbio sul de Beirute. “Ataque do Irã a Israel, que enfrenta o Hezbollah, abre caixa de Pandora; escalada de embates será paga por todo o mundo”, disse a Folha de S.Paulo, também em editorial, em 2 de outubro.
Um ano depois do ataque do Hamas a Israel em 7 de outubro, as coberturas do genocídio na Palestina e da agressão ao Líbano seguem insistindo que a atual onda de barbárie na região começou ali – e, se tudo começou em 7 de outubro de 2023, tudo o que Israel fizer depois disso é “resposta”.
Israel implementa agora, no Líbano, os mesmos métodos aplicados aos olhos do mundo em Gaza há um ano. Punição coletiva, confinamento de civis em evacuações forçadas e ataques a profissionais e serviços de saúde são algumas das violações fartamente documentadas, que se repetem dia após dia.
Escrevo do centro de Beirute, uma área ainda considerada “segura”, não bombardeada até agora, mas sob o som constante dos drones israelenses que estão sobre nossas cabeças há semanas. Também há o som ocasional – mas nem tanto – das ambulâncias que tentam socorrer vítimas a cada novo bombardeio e das próprias explosões, que ocorrem a poucos quilômetros e podem ser ouvidas daqui.
Já são mais de 1.400 pessoas mortas no Líbano desde o dia 16 de setembro, quando a agressão israelense se intensificou. Entre os mortos nesse período, mais de 110 crianças, 120 mulheres e 100 paramédicos. A crise humanitária tem ainda 1 milhão e 200 mil desalojados e mais de 400 mil pessoas que fugiram por terra pela Síria, segundo o governo libanês. Desde 8 de outubro de 2023, o número de mortos ultrapassa os 2 mil.
Cito os editoriais dos dois principais veículos impressos do país porque são ilustrativos de um padrão na cobertura ocidental, aquele que dá o seu tom dominante. Há, é claro, honrosas exceções, mesmo nesses veículos, sobretudo na cobertura factual.
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A olhos mais ingênuos, esse padrão poderia soar como uma espécie de dissonância cognitiva: a mesma mídia que, há um ano, televisiona e estampa em matérias factuais (algumas das) cenas de um genocídio o faz sob o guarda-chuva de uma linha editorial que assume a justificativa isralense de “auto-defesa” como ponto de partida inquestionável.
“Ataque ao Hamas”, “ataque ao Hezbollah”: a fórmula gasta, que briga com a realidade, mas segue dominando as manchetes – mesmo que cerca de 60% das 42 mil vítimas fatais em Gaza sejam crianças e mulheres. Aos olhos de O Globo, o assassinato de 50 crianças em um único dia no Líbano é justificável, apesar de “lamentável”, pois é efeito colateral de um “ataque necessário” para combater o “mal maior”.
A capa de O Globo de 7 de outubro não deixa dúvidas: “Um ano depois, ataque do Hamas ainda deixa marcas”, diz a manchete. “Gatilho para a atual deflagração de conflitos no Oriente Médio, ataque terrorista que vitimou mais de mil pessoas completa hoje um ano e ainda traumatiza moradores do sul de Israel”, segue a chamada de capa. Um ano de genocídio de palestinos – que não mereceram sequer uma palavra na capa do jornal.
Um ano e 86% de Gaza destruída com explosões equivalentes a cinco bombas nucleares. De imagens de soldados israelenses quebrando pertences e vestindo lingeries de mulheres palestinas, um ano de crianças despedaçadas reduzidas a sacos plásticos em Gaza – para o Globo, parece que nada disso merece ser lembrado. Nem mesmo os 175 jornalistas ou os 880 profissionais de educação assassinados foram mencionados.
Como também não merece ser lembrado nada ocorrido antes de 7 de outubro de 2023. Jornalistas gostam de – e sabem, por obrigação da profissão – fazer perguntas. Mas o jornal, aparentemente, não quer perguntar por que, numa madrugada de sábado, a violência e o sangue romperam (literalmente) as cercas de Gaza, e chegaram também pelos céus e o mar a Israel, assassinando militares e civis israelenses.
A mídia ocidental se torna parte ativa da legitimação do genocídio em Gaza e da política expansionista do Estado de Israel.
Um ano depois, O Globo prefere insultar a inteligência dos seus leitores e nos fazer acreditar que a região vivia em paz e calmaria, até que bárbaros selvagens resolveram dar o primeiro passo, do mais absoluto nada.
É o mesmo O Globo que noticiou, como toda a mídia brasileira e mundial, a decisão do Tribunal de Haia de julho deste ano, que considera ilegal a “prolongada ocupação, colonização e anexação” dos territórios palestinos na Cisjordânia e Jerusalém Oriental por Israel desde 1967.
Mas uma coisa não deve ter nada a ver com a outra. Falemos de Gaza, então: ao procurar a reportagem deste ano sobre as crianças destroçadas recuperadas em sacos plásticos, o primeiro resultado da pesquisa foi esse, de 2014. Na ocasião, Salem Antez, um pai palestino em Gaza, carregava em um saco os restos mortais de seu filho, assassinado pela invasão isralense de uma década atrás. Deve ser apenas uma coincidência mórbida.
Todos lembramos da CNN divulgando um calendário em árabe como uma “lista de terroristas do Hamas”, atuando como porta-voz do exército israelense para justificar um ataque a um hospital. Seja reproduzindo acriticamente a perspectiva israelense, seja naturalizando os 76 anos de limpeza étnica, apartheid, ocupações ilegais e violações sistemáticas cometidas por Israel desde 1948, a mídia ocidental se torna parte ativa da legitimação do genocídio em Gaza e da política expansionista do estado de Israel.
E repete o procedimento na cobertura sobre a agressão ao Líbano. A história que se conta é que tudo teria iniciado porque o Hezbollah começou a lançar foguetes em direção ao norte de Israel em 8 de outubro de 2023, “horas depois do monstruoso ataque terrorista do grupo palestino Hamas em 7 de outubro”. “Foi esse o motivo [o lançamento de foguetes pelo Hezbollah] para Israel atacar o Líbano nas últimas semanas, começando com a explosão sincronizada de perto de 3 milhares de pagers usados para comunicação entre integrantes do Hezbollah e culminando com a morte de seu líder, Hassan Nasrallah, atingido por um ataque em Beirute enquanto participava de uma reunião no subsolo de um prédio residencial na sexta-feira”, diz o editorial de O Globo de 29 de setembro.
Quando Israel invadiu o Líbano em 1978, não existia Hezbollah. Quando o fez novamente em 1982, também não – é precisamente aí que surge o grupo paramilitar (hoje também um partido político), aliás. Mas o jornalismo parece poder se esquecer disso sempre que precisar.
Em poucas linhas, O Globo concede, a Israel, a permissão para violar o princípio da distinção, ao transformar dispositivos civis em alvos militares e explodir pagers em apartamentos, bairros residenciais e supermercados, matando crianças e civis no caminho. “Explosão sincronizada” da “comunicação entre integrantes do Hezbollah”.
A lógica sionista, introjetada por essa linha editorial, espera simplesmente que os palestinos, libaneses e quem mais estiver pelo caminho da expansão colonialista aceite viver sob submissão.
Se essas linhas dizem muito, também são reveladoras as ausências: O Globo não menciona, mas em 8 de outubro, o Hezbollah lançou foguetes contra posições israelenses nas fazendas em Shebaa e nas Colinas de Golã, ambos territórios ocupados por Israel desde 1967. Desde então, e até as últimas semanas, o Hezbollah vinha restringindo seus ataques a alvos militares em Israel.
“Atacar alvos do Hezbollah em solo libanês foi uma medida necessária diante dos riscos que corria”, diz o mesmo editorial, afinal, “o Hezbollah opera, a exemplo de seu congênere Hamas, infiltrado na população civil libanesa, usada como escudo humano para dissuadir ataques”. Sim, é outubro de 2024, um ano depois do genocídio em Gaza, e o jornalismo segue falando em “escudos humanos” para justificar a carnificina.
A pecha de “terrorista”, afinal, só se aplica ao Hezbollah e ao Hamas: o criminoso de guerra Benjamin Netanyahu pode violar quantas leis internacionais quiser, ir à ONU apresentar mapas de Israel que apagam toda a Palestina, ocupar ilegalmente territórios, explodir hospitais e assassinar crianças – mas continuará sendo tratado como “primeiro-ministro”, “chefe de Estado”. Terroristas são sempre os outros.
“Biden tem razão em dizer que, uma vez contida a ameaça iminente dos grupos extremistas, é preferível o cessar-fogo à guerra que perdure”, continua o texto. Há 76 anos, sempre há “mais uma”, “a última” barbárie autorizada em nome do combate ao terror, depois da qual a paz voltaria a reinar – não importando as pilhas de corpos, de escombros e o banho de sangue deixado pra trás.
Não importa também que, na “normalidade”, os palestinos retornem ao cotidiano de ocupação ilegal, apartheid, roubos de terras, envenenamento de cursos d’água, prisões arbitrárias, tortura, cerco a civis e sem qualquer perspectiva quanto à “solução dos dois Estados” (negada pelo Likud de Netanyahu, defendida em abstrato cinicamente pelo Ocidente que o financia).
A lógica sionista, introjetada por essa linha editorial, espera simplesmente que os palestinos, libaneses e quem mais estiver pelo caminho da expansão colonialista aceite viver sob submissão (ou mesmo ser varrido do mapa). Mas, surpresa: a carnificina não sustenta a “paz” prometida, apenas prepara a próxima, sempre maior que a anterior.
Na Folha de S.Paulo de 24 de setembro, após o dia mais mortal da agressão isralense ao Líbano, o mesmo padrão: “Em escalada no conflito no Oriente Médio, Israel realizou o maior ataque ao Hezbollah desde o início da guerra em Gaza”, diz a chamada de capa. Nenhuma menção às 50 crianças mortas no ataque “ao Hezbollah”. Há crianças mais propícias a serem contabilizadas como “dano colateral” nessa cobertura – e elas são sempre árabes.
Em seu editorial de 2 de outubro, a Folha se refere ao 7 de outubro de 2023 como “a caixa de Pandora aberta na região”, sem qualquer referência ao que acontecia antes daquele dia. Enquanto o ato do Hamas é “terrorista” e um “ assalto da horda bárbara”, o genocídio palestino é classificado como “a violenta operação militar de Israel na Faixa de Gaza”.
Em um dos cada vez mais raros momentos de debates francos sobre o Oriente Médio na mídia brasileira, o Canal Livre da Band de 29 de setembro, Salem Nasser, professor de Direito Internacional da FGV, usou a imagem do “cadáver esquecido” para rebater a ideia de que o Oriente Médio caminhava para “um mundo novo, sem conflitos” antes do 7 de outubro.
Era uma referência à célebre frase de Waldir Troncoso Peres – advogado criminalista conhecido por sua atuação na defesa de acusados de feminicídio –, que dizia que a função do advogado é fazer o jurado esquecer que existe um cadáver, contando uma história que tire de foco a vítima.
Salem Nasser usou a imagem para denunciar como a alegada “estabilidade” pré-7 de outubro tira de cena o apartheid, o genocídio e da limpeza étnica sistematicamente promovidos pelo sionismo no Oriente Médio, naturalizando décadas de violência.
A triste constação é a de que não são advogados de defesa de Israel escondendo o cadáver do genocídio colonial – mas o jornalismo.
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