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Dançando diante da dor dos outros

MC Livinho performa durante um acidente de ônibus. Integrantes de uma carreata política bailam em frente a uma ambulância tentando prestar socorro. É a vitória da barbárie nacional.

Dançando diante da dor dos outros

É uma imagem inesquecível: em Naypyitaw, capital de Mianmar, a professora de ginástica Khing Hnin Wai dança para um lado e para outro, agitando os braços e levantando os joelhos, ao som frenético da música Ampum bang jago.

Enquanto isso, vemos ao fundo uma coluna de veículos blindados passando pela rotatória Royal Lotus, caminho do parlamento nacional. Um golpe militar começava ali, e a Nobel da Paz Aung San Suu Kyi, líder democraticamente eleita, seria presa. Outros integrantes do seu governo também foram detidos, todos acusados de fraude eleitoral.

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Era 2021, e a professora foi duramente criticada, acusada de apoiar um golpe violento que já matou milhares de pessoas – mais de 5 mil até agora, segundo a ONU. Seu exercício matinal foi lido como insensível ao banho de sangue que já começava ali. Khing Hnin Wai, no entanto, afirmou que treinava há tempos no local e não estava “zombando, ridicularizando ou fazendo palhaçada”. Diversos vídeos comprovam que ela falava a verdade.

Professora de ginástica Khing Hnin Wai dança enquanto veículos blindados passam a caminho do parlamento nacional de Mianmar para dar um golpe militar (Crédito: Reprodução)
Professora de ginástica Khing Hnin Wai dança enquanto veículos blindados passam a caminho do parlamento nacional de Mianmar para dar um golpe militar (Crédito: Reprodução)

Dois mil e vinte e quatro, 21 de setembro. A repórter Isabela Campos, ao vivo, cobria o acidente de ônibus que transportava o time Coritiba Crocodiles. O veículo tombou enquanto descia a Serra das Araras, no RJ. Três pessoas morreram. Enquanto a jornalista falava sobre o atendimento aos feridos, alguns em estado grave, o funkeiro MC Livinho apareceu no vídeo e começou a dançar. 

Ao contrário da professora de ginástica, ele entrou em cena justamente para fazer graça, ou melhor, palhaçada: deu tchau, fez caretas, passou a mão no pênis. Criticado nas redes sociais, ele postou um vídeo dizendo que – a despeito de todo o contexto caótico – não sabia sobre o acidente.  “Meus pêsames para a perda que teve aí”, poetizou.

MC Livinho dança enquanto repórter noticia acidente com ônibus que resultou em três mortes (Crédito: TV Globo/Reprodução)
MC Livinho dança enquanto repórter noticia acidente com ônibus que resultou em três mortes (Crédito: TV Globo/Reprodução)

Dois mil e vinte e quatro, 29 de setembro. Uma semana antes das eleições para prefeitos/as e vereadores/as. É domingo à noite no povoado de Algodão do Manso, em Frei Miguelinho, agreste de Pernambuco. Uma ambulância do Samu tenta chegar ao local de um acidente grave, mas é impedida por dezenas de pessoas que participavam de uma carreata em apoio à  Luiza de Lula, do Podemos.

Vestidas de azul e empunhando bandeiras, muitas delas dançam em frente ao carro com as sirenes ligadas. Sem poder seguir, a ambulância dá ré e tenta outro caminho. É novamente impedida. Mastros das bandeiras são usados para atacar o veículo, cujo motorista, Marcílio, 31 anos, há dois servindo ao Samu, gravou um vídeo relatando a barbárie.

Integrantes de carreata política impedem ambulância de seguir caminho para prestar socorro à idosa (Crédito: Reprodução)
Integrantes de carreata política impedem ambulância de seguir caminho para prestar socorro à idosa (Crédito: Reprodução)

Gilvanete Maria de Arruda, 80 anos, estava na calçada em frente à casa da família. Ela e as filhas observavam a movimentação causada pela disputa política local: a cidade se dividia entre a chamada “nação azul” e a “nação verde” – apoiadora de Lindonaldo da Farinha, do PSB, que venceu a eleição com 50,3% dos votos válidos. Gilvanete e a família faziam parte dos verdes, como mostra esse vídeo divulgado pelo então candidato. 

Um sobrinho de Gilvanete, este membro da “nação azul”, realizava manobras com um carro em uma rua repleta de pedestres. Foi advertido pelos próprios parentes sobre o perigo e não gostou. O clima de animosidade entre as nações azul e verde cresceu: o rapaz acelerou o automóvel em direção à calçada na qual a família estava reunida.  Atropelou a idosa e ainda sua filha, Iolanda, de 54 anos.

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Gilvanete teve as duas pernas destruídas. Em choque, morreu no local. Iolanda foi ferida gravemente e ficou na rua até a chegada da  ambulância, que demorou cerca de 40 minutos a mais por conta do bloqueio imposto pela “onda azul”. O caso está sendo investigado pela polícia: o agressor se apresentou na delegacia três dias após o trágico evento. 

(…)

Se em 2021 os exercícios físicos ambientados por um golpe militar em Mianmar pareciam uma obra surrealista, as performances de MC Livinho e dos apoiadores da candidata à prefeitura de Frei Miguelinho surgem como expressões de puro horror. 

Nelas, reside o desapreço pelo humano, que é solapado pela mais absoluta desconexão com o Outro, este dizimado pela emergência do Eu. A ânsia em ser “resenha”, como disse o MC em suas desconexas desculpas, o impediu de, em algum mínimo segundo, levar em consideração que um grande engarrafamento em uma estrada poderia se tratar de um acidente. 

Em Pernambuco, os tantos corações azuis postados nas redes sociais dos apoiadores da candidata do Podemos foram traduzidos em sentido inverso no momento da carreata: uma pessoa dançando em frente a uma ambulância que tenta prestar socorro não significa nada além de ódio, obtusidade e canalhice.

Os animais tendem a ser mais civilizados do que nós.

Não, não são “animais”, nem “selvagens”, como li em alguns comentários. São pessoas que fizeram escolhas. Os animais tendem a ser mais civilizados do que nós.

O socorrista Marcílio, após postar sua experiência em vídeo, passou a ser atacado. “Por que você escolheu o caminho da carreata?”, questionou uma pessoa. Conseguem ver o alçapão no fundo do poço? Chegamos ao ponto no qual abrir passagem para uma equipe de socorro é um incômodo a ser normalizado. Pior: chegou a circular um post com uma nota de repúdio ao socorrista, o chamando de irresponsável, pois sabia que “as vias centrais estavam obstruídas”.

O artigo 29 do Código de Trânsito estabelece que os veículos de emergência, entre eles ambulâncias, têm prioridade de trânsito. Além disso, o artigo 189 trata o impedimento da passagem de ambulâncias e veículos de socorro como infração gravíssima, passível de multa para os condutores.

Conversei rapidamente com Marcílio, que estava evitando se expor após o episódio justamente por conta do clima de violência instaurado. “Meu sentimento é de tristeza ao ver como o ser humano não se importa com a vida do próximo.”

Terezinha, 62 anos, filha de Gilvanete, estava presente no momento do atropelamento. Conta que o sobrinho, um homem de 49 anos, jogou o carro para cima da calçada após um tio, este partidário do PSB, reclamar sobre o perigo das manobras (segundo Terezinha, ele fazia “cavalos de pau”).

“Depois de atropelar minha mãe e minha irmã, ele deu ré e veio de novo para cima. Então fugiu”, contou. Ela chora muito e pede pela volta da mãe, com quem morava ao lado do pai, de 87 anos. Adoentado, o idoso ainda estava sem entender bem o que aconteceu dois dias após o sepultamento: 

“Que casa vazia é essa? Cadê a tua mãe?”

Nas redes, a então candidata do Podemos prestou condolências à família, mas tratou o episódio como uma contenda familiar, e não política. Não fez nenhuma menção ao bloqueio da ambulância por parte de sua militância, apesar dos vídeos. 

O silêncio e a falta de nomear as coisas pelo o que elas são segue o jogo de naturalização da nova barbárie mundial. Nela, os personagens que sorriem e juntam as mãos em forma de coração nas redes sociais engatam a ré e jogam automóveis sobre mulheres. Atropelam e arrastam aqueles escolhidos como seus mais eloquentes inimigos.

Importa somente o que está nas redes e o caráter, ainda que virtual, que sugerimos ter.

*O título desta coluna faz referência ao livro Diante da dor dos outros, de Susan Sontag. 

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