Esta matéria, originalmente publicada no site Pluralistic, foi traduzida em parceria com Cory Doctorow.
A legislação antitruste dos EUA tem um macete, que vem sendo cada vez mais usado desde o governo Reagan, quando a teoria do “bem-estar do consumidor” (“tudo bem com os monopólios, desde que façam os preços caírem”) empurrou para longe a tradicional ideia de que a legislação antitruste existia basicamente para evitar que os monopólios se formassem em qualquer situação.
A ideia de que uma empresa pode fazer qualquer coisa para criar ou perpetuar um monopólio, desde que seus preços caiam e/ou sua qualidade aumente é diretamente responsável pela ascensão das Big Tech. Essas empresas torraram o dinheiro de seus investidores por anos, vendendo bens e serviços abaixo do custo, ou até distribuindo coisas de graça. Pense no Uber, que perdeu 41 centavos para cada dólar de receita ao longo dos 13 primeiros anos de existência, uma medida que custou 31 bilhões de dólares (175 bilhões de reais) aos seus investidores (quase todos da realeza saudita).
A torcida dos monopólios no campo do bem-estar do consumidor entendeu que essas orgias de desperdício de dinheiro não podiam continuar para sempre, e que os investidores que as financiavam não estavam fazendo isso por caridade. Mas eles rejeitaram a possibilidade de que os candidatos a monopolistas aumentassem o preço após atingir a dominância, porque esses aumentos de preço trariam novos competidores para o mercado, e o processo começaria mais uma vez.
Bem, a Uber dobrou o preço da corrida e reduziu pela metade os ganhos dos motoristas (não que os teóricos do bem-estar do consumidor se preocupem com a remuneração do trabalhador — eles estão preocupados com o bem-estar dos consumidores, não dos trabalhadores). E não é só a Uber: empresas que capturaram mercados inteiros aumentaram os preços e reduziram a qualidade de forma geral, uma Grande Merdificação cujo manual foi apelidado de “predação de risco”.
Não só essa virada era previsível, ela foi prevista. Já em 2017, Lina Khan, que na época era estudante de direito, publicou uma matéria na revista Yale Law Journal que abalou as estruturas, intitulada “Amazon’s Antitrust Paradox” (O paradoxo antitruste da Amazon), descrevendo como os monopolistas iam aprisionar seus consumidores e barrar novos concorrentes, ao mesmo tempo em que aumentariam os preços e reduziriam a qualidade.
Khan atualmente é a presidente da FTC, a Comissão Federal de Comércio dos EUA, e abriu um processo contra a Amazon que coloca em prática suas teorias jurídicas, com o apoio de um coro entusiasmado de clientes da Amazon, funcionários, fornecedores e concorrentes que foram passados para trás pela gigante do comércio eletrônico.
A ação de Khan argumenta que a Amazon não é a central de ofertas que tanto diz ser. Ela aponta para as taxas altíssimas que a Amazon cobra de seus vendedores (45% a 51% de cada dólar!), e o uso que a empresa faz de acordos com cláusulas de “nação mais favorecida”, que obrigam os vendedores que aumentam seus preços na Amazon para cobrir esses custos a aumentarem seus preços em todos os outros lugares também.
Agora, um novo Paradoxo da Amazon surgiu, e se aprofunda em outra forma que a Amazon encontrou para cobrar até 29% a mais de nós em praticamente todas as compras, o que a desqualifica para usar aquele macete do bem-estar do consumidor. O novo artigo se chama “Amazon’s Pricing Paradox” (O paradoxo dos preços da Amazon), dos professores de direito Rory Van Loo e Nikita Aggarwal, para a revista The Harvard Journal of Law and Technology.
Os autores admitem que, embora a Amazon tenha algumas excelentes ofertas, ela faz um esforço enorme para tornar quase impossível obter essas ofertas. Com base na literatura sobre economia comportamental, os autores partem da suposição razoável (e confirmada experimentalmente) de que os consumidores normalmente presumem que os primeiros resultados na busca da Amazon são os melhores resultados, e clicam neles.
Mas a ordem dos resultados de busca da Amazon está merdificada: ela transfere valor dos vendedores e compradores (você!) para a empresa. Uma combinação de auto-preferência (colocando no topo do ranking as próprias versões da Amazon), listas pagas (anúncios da Amazon), outras formas de jabá (se um comerciante está pagando pelo Prime), e “anúncios inúteis” (que não correspondem à sua busca) transformaram a ordenação das buscas na Amazon em um jogo de cassino viciado.
A capacidade de manipular consumidores e vendedores para conseguir mais dinheiro de ambos é o motivo para a Amazon oferecer tantos incentivos ao uso de sua busca interna, em vez de, por exemplo, usar a busca do Google, que pode fornecer resultados muito superiores. Por alguns anos, a Amazon manteve um programa chamado Amazon Smile, que doava um percentual de cada compra que você fizesse para uma instituição de caridade à sua escolha — mas apenas se você tivesse encontrado aquele item na busca da Amazon, e não pelo Google ou um link direto.
Em seu novo artigo, os autores extraem e analisam um grande conjunto de dados de itens comuns que você pode comprar na Amazon, determinando qual dos resultados é o melhor — preço mais baixo com melhor avaliação — e então calculando quanto você pagaria a mais por aquele item se clicasse no primeiro item relevante (não publicitário) dos resultados de busca.
Se você confiar na busca da Amazon para encontrar o melhor produto para você, e clicar no primeiro link, você pagará um sobrepreço de 29% naquele item. Se você ampliar sua seleção para o “título”, os primeiros quatros itens, que normalmente são o que é possível ver sem rolar a página, pagará em média 25% a mais. Essa linha superior representa 64% dos cliques da Amazon.
Em média, a melhor opção na Amazon pode ser encontrada no décimo sétimo item dos resultados da busca. Dezessete!
A Amazon alega que nada disso é importante, porque ela permite que os usuários refinem a busca para conseguir as melhores ofertas, mas a busca da Amazon não permite selecionar “preço unitário”, isto é, o preço por unidade. Então, se você organiza uma busca por preço, o vendedor que está vendendo um único lápis por 10 dólares vai aparecer acima do que oferece dez lápis por 10,01 dólares.
Segue uma outra lei imutável dos golpes: toda vez que alguém aumenta a complexidade de uma aposta, essa complexidade existe apenas para dificultar que você decida se está fazendo ou não um bom negócio. Sejam as regras de aposta na mesa de dados, a complexa interação entre as franquias e coparticipações do plano de saúde, a tabela de taxas cobradas pelos bancos, ou os detalhes do seu contrato de telefonia, a complexidade existe para confundir sua intuição e sobrecarregar o seu raciocínio.
E a Amazon sabe sem dúvida nenhuma como potencializar a complexidade! Em primeiro lugar, estão os resultados irrelevantes: pilhas AAA que aparecem em uma busca por pilhas AA, ou acessórios para cães que aparecem em uma busca por acessórios para gatos.
Em seguida vêm os “preços ocultos”: cobranças extras que só aparecem no pagamento, como taxas de frete. Eu encontrei certa vez um produto na Amazon que estava anunciado com “frete grátis” — mas na hora de pagar, esse “frete grátis” tinha uma data de entrega que era dali a três meses. Ao trocar a entrega para o mesmo trimestre em que já estávamos, o preço dobrou.
Os preços ocultos também dificultam calcular se o Prime é um bom negócio. É preciso lembrar que a Amazon já oferece frete grátis em pedidos acima de um certo valor (99 reais em livros, 149 reais em outros produtos). Por isso, quem pensa em assinar o Prime precisa avaliar se fará pedidos abaixo desse valor em volume suficiente para justificar o preço, e também levar em conta que os produtos marcados como Prime frequentemente têm um preço unitário mais alto que os equivalentes não Prime. Sim, o Prime tem outros benefícios, como música e vídeos, mas avaliar isso só aumenta a complexidade do cálculo para saber se é ou não uma boa aquisição para você, e exige que você leve em conta a possibilidade de que a Amazon merdifique esses serviços e reduza seu valor ao longo do ano seguinte, por exemplo, retirando a possibilidade de desligar o modo aleatório para ouvir música.
Ou que ela coloque anúncios nos seus vídeos.
Por fim, vêm as categorias sem sentido que a Amazon atribui aos resultados de busca: “Mais vendido”, “Escolha da Amazon”, “Bem Avaliado”, e outras bobagens que não necessariamente significam o que parecem. Um produto é “mais vendido” porque o preço dele caiu um pouco, ou porque foi promovido nos resultados de busca, ou ambos, ou é porque outros compradores realmente gostaram mais dele?
Os autores concluem que conseguir o melhor preço na Amazon exige que você “gaste primeiro um tempo considerável procurando em várias páginas de resultados, e use, no mínimo, recursos algébricos de planilha para avaliar o preço total do produto (…) [e] de alguma forma desvie dos efeitos psicológicos do viés de ancoragem, e de categorias como ‘promoção por tempo limitado’ e ‘mais vendido’, além de muitas outras influências psicológicas sutis”.
A Amazon afirma ter o direito de usar o macete do bem-estar do consumidor para fugir da fiscalização de concorrência porque tem tantas ofertas. Mas para conseguir essas ofertas, você precisa prestar uma atenção tão minuciosa, fazer literalmente uma planilha com as opções e programar fórmulas matemáticas para compará-las entre si, que é quase certo que você vai falhar. O preço do fracasso é incrivelmente alto, e chega a um sobrepreço de 25% a 29% em cada compra.
A ocultação dessa informação pela Amazon parecerá familiar para os leitores de Douglas Adams, que conhecem a estratégia “Cuidado com o Leopardo”. Não é nem a primeira vez que a Amazon usa isso.
Um outro grupo de pesquisadores recentemente criou um termo útil para descrever esse golpe: em um artigo publicado em 2023, Tim O’Reilly, Mariana Mazzucato e Ilan Strauss apelidaram o custo de toda essa complexidade de “aluguel de atenção“.
É fascinante perceber como dois grupos diferentes de pesquisadores, que se depararam com esse problema em várias disciplinas, acabaram convergindo para a mesma análise! Quando tecnólogos, economistas tradicionais, economistas comportamentais e advogados de direito da concorrência estudam a Amazon e acabam apontando a mesma estratégia lamentável como o centro do golpe, talvez seja Um Momento Importante. Além do mais, tudo isso foi previsto de forma tão completa pelo artigo de Khan, em 2017, que é possível deduzir que ela seja uma espécie de profeta de boa-fé.
Os autores desse novo artigo têm bastante certeza de que o esquema viola a legislação da concorrência. Eles apontam que não importa se os consumidores da Amazon sentem que estão fazendo um bom negócio, da mesma forma que não importa se você não sabe que sua hipoteca teve juros mais altos porque você é negro, isso continua sendo ilegal.
E mais, a legislação de proteção ao consumidor não exige que o comerciante tenha a intenção de prejudicar você. Existem várias disposições legais que exigem que os supermercados exponham os preços unitários nas prateleiras. Essas normas não presumem que os supermercados que não usam os preços unitários estejam tentando passar a perna em você. Na verdade, elas partem do pressuposto de que você tomará decisões de compra mais bem informadas se tiver essa informação, e por isso você deve ter acesso a ela.
Regular a apresentação dos preços está sem dúvida na alçada da legislação da concorrência, especialmente na lógica do bem-estar do consumidor, que fetichiza os preços baixos acima de qualquer coisa. Quanto menos um mercado é competitivo, menor a pressão que uma empresa sofre para oferecer informações de preço claras aos seus consumidores, porque esses consumidores terão menos lugares para ir se não gostarem das práticas comerciais da empresa.
Tudo isso demanda a intervenção antitruste: regras de como a Amazon deve fazer seus negócios. Os autores propõem três tipos de regras:
I. Obrigar a Amazon a interromper suas práticas mais enganosas, como esconder o preço real, incluindo o frete, ou mascarar os resultados de busca com confusos anúncios inúteis. Um detalhe fascinante: apenas alguns dias depois da publicação desse artigo, a FTC revelou que a Amazon estava deliberadamente entulhando seus resultados com anúncios inúteis para aumentar o faturamento.
II. Determinar a interoperabilidade entre a Amazon e os sites de comparação de preços, obrigando a empresa a publicar seus dados de preços em um formato que permita a leitura por máquina, e permitindo que os consumidores autorizem bots de compra a acessar seus dados de compras para ajudá-los a descobrir como conseguir melhores negócios. Outra reviravolta fascinante: na mesma semana em que o artigo foi publicado, a agência de proteção ao consumidor dos EUA propôs uma regra que obrigaria os bancos a fazer a mesma coisa: permitir que os clientes encaminhem seus dados para sites de comparação que informariam qual deles seria a melhor opção.
Essa regra ainda vai além, e limita estritamente como esses sites de comparação podem usar os dados, proibindo que sejam mantidos, vendidos, compartilhados, ou usados para direcionar anúncios para você. Essa é a abordagem que eu e meu colega da Electronic Frontier Foundation, Bennett Cyphers, propomos em nosso artigo sobre “Privacidade sem monopólio“.
III. Criar regras específicas para raspagem. A raspagem é uma forma de “interoperabilidade concorrencial“, as medidas de autoajuda que os tecnólogos usam para modificar e adaptar os serviços existentes sem consentimento de seus proprietários. É só pensar em engenharia reversa, bots, etc.
Sites de comparação de preços historicamente dependem da raspagem para ajudarem os usuários a conseguir melhores negócios. A Amazon certamente faz raspagem nos sites da concorrência para descobrir se um comerciante está vendendo mais barato em outros lugares (esses comerciantes são punidos com a expulsão para a milionésima página de resultados de busca, o que tem praticamente o mesmo efeito de serem expulsos da Amazon).
A raspagem já foi a regra na internet, depois diminuiu, à medida que os monopolistas foram usando suas reservas de caixa e seu poder de mercado para fazer os governos punirem os adversários que usavam esse recurso. Mas a raspagem é um suporte importante para qualquer tipo de análise de preços. Embora Mario Zechner tenha usado as próprias APIs oficiais dos supermercados para comprovar que eles estavam em conluio para combinar preços, ele afirma que também usaria raspagem caso eles fechassem essas portas ou lhe negassem acesso a elas.
No meu mais recente livro de não ficção, The Internet Con (O golpe da internet), eu descrevo praticamente o mesmo programa para lidar com o poder monopolista em todos os setores da indústria tecnológica.
I. Começar com medidas tradicionais de proteção da concorrência (separações, proibição de práticas desleais ou enganosas)
II. Esabelecer APIs obrigatórias que permitam que curiosos, cooperativas, organizações sem fins lucrativos e startups interajam com as plataformas dominantes e ofereçam a seus usuários e fornecedores melhores serviços e negócios;
III. Criar medidas de proteção à interoperabilidade concorrencial, para que, quando as empresas tentarem enganar as APIs obrigatórias com bloqueios ou piora da qualidade, os serviços concorrentes possam manter as coisas funcionando enquanto aguardam que os procedimentos regulatórios analisem os fatos e obriguem as grandes empresas a retornarem à conformidade.
Ao ler este novo artigo, fiquei impressionado com a extensão da convergência entre os diferentes profissionais que combatem os pecados digitais em diversos setores empresariais: dos mandados e regras de privacidade que a proteção ao consumidor usa para combater a enganação dos bancos à forma como os economistas comportamentais pensam os resultados de busca manipuladores da Amazon
Esse tipo de convergência é muito animador. Depois de anos fingindo que as empresas de Big Tech eram boas para “os consumidores”, não apenas acordamos para o quanto elas são destruidoras, mas também estamos cada vez mais de acordo sobre o que precisa ser feito. Caramba!
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