Em meados do ano passado, quando Lula planejava uma reforma ministerial, o Centrão passou a salivar pelo Ministério da Saúde. O motivo da cobiça era claro: abocanhar um dos maiores orçamentos do governo — cerca de R$ 189 bilhões em 2023.
Assim seria possível ampliar a capacidade de liberação de emendas para seus redutos eleitorais e turbinar as campanhas municipais deste ano. A ministra Nísia Trindade passou então a ser fritada em praça pública com a ajuda da grande imprensa, em especial da revista Veja, que ajudou a manter o óleo fervendo no noticiário.
O PP de Arthur Lira atuou fortemente nos bastidores para recuperar a pasta, que foi do partido durante o governo Michel Temer. Em junho, uma matéria sensacionalista da revista Veja apontava uma suposta irregularidade cometida pela ministra. “Disputa política e apuração de irregularidade elevam temperatura na Saúde”, dizia a manchete.
A revista requentou um factóide criado pelo bolsonarismo nos tempos em que Nísia era presidente da Fiocruz. A tal “irregularidade” não passava de mais um ataque dos negacionistas contra a ciência, como explicou o Intercept à época.
A reportagem revelou também que o deputado Doutor Luizinho, então secretário de Saúde do Rio de Janeiro, já era o nome mais cotado para substituir a ministra. No mesmo dia, a revista Veja publicou uma nova matéria sobre o assunto, dessa vez cravando o nome do novo ministro na manchete: “Dr Luizinho, o ‘futuro ministro da Saúde’ escolhido pelo Centrão”.
Mas a coisa não parou aí. A Veja parecia estar bastante empenhada em emplacar Doutor Luizinho no Ministério da Saúde. No dia seguinte, uma nova reportagem chegou para aumentar a fritura da ministra. “Nísia Trindade é alvo de críticas da oposição e de aliados”, dizia a manchete. Em nenhuma dessas reportagens o jornalismo entrou em campo para contextualizar a fritura da ministra.
De um lado, tínhamos uma ministra conhecida por ser rigorosa com o orçamento. Do outro, um partido que quer de volta a chave do cofre de um ministério bilionário para fortalecer aliados políticos através de emendas. Mesmo com toda essa pressão, Nísia resistiu bravamente e foi mantida no cargo por Lula.
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Quase um ano e meio depois, Doutor Luizinho voltou para as manchetes. Estourou nesta semana o escândalo dos transplantes com HIV, um crime hediondo que infectou seis pacientes transplantados.
O laboratório que está sendo investigado como o responsável pelo crime tem como um dos sócios Matheus Sales Teixeira Bandoli Vieira, que é nada mais nada menos que primo do Doutor Luizinho, que hoje atua como líder do PP na Câmara dos Deputados. Outro sócio do laboratório é Walter Vieira que, vejam só, é tio de Luizinho.
Os dois já fizeram campanha para ele em eleições passadas. Além do tio, outros três funcionários do laboratório foram presos e vão responder por crimes contra as relações de consumo, associação criminosa, falsidade ideológica, falsificação de documento particular e infração sanitária.
À época em que o governo assinou contrato com o laboratório, Doutor Luizinho havia deixado a Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro há apenas três meses. Mas não saiu sem deixar tudo preparado: o contrato do laboratório foi firmado com a Fundação Saúde — uma empresa pública do estado em que trabalha Débora Lúcia Teixeira, irmã de Luizinho.
Não importa de que ângulo você olhe para esse escândalo, lá estará um parente do Doutor Luizinho. Esse é o homem que recebeu um lobby agressivo para ser o ministro da Saúde do Centrão. Ao contrário do que aconteceu à época em que Nísia era fritada no noticiário, desta vez o nome de Luizinho evaporou das manchetes.
Entre as sete reportagens publicadas pela revista Veja sobre o caso, o nome do líder do PP não recebeu destaque em nenhuma manchete.
A mesma imprensa que participou da fritura de Nísia no ano passado, agora, salvo raríssimas exceções, omite o nome de Luizinho das manchetes sobre o caso. Pior que isso: há publicações que estão tentando de alguma maneira envolver o nome da ministra da Saúde no caso.
Não tiveram o mínimo pudor de colocar Nísia nas manchetes como alguém que sabia das infecções antes da polícia e nada fez — o que não é bem uma verdade. A ministra acionou a Polícia Federal logo que as suspeitas do foram confirmadas.
Como se já não bastasse o empenho da grande imprensa, a máquina de fake news do bolsonarismo trabalhou a todo vapor para queimar a ministra. Uma postagem difundida nas redes dizia que duas portarias publicadas pelo Ministério da Saúde durante o governo Jair Bolsonaro, mas revogadas por Lula, teriam impedido a transmissão do HIV a pacientes transplantados no Rio de Janeiro.
A informação é falsa, claro, mas foi replicada no X por Jair Bolsonaro (PL). O ex-presidente reproduziu trecho de um vídeo em que o apresentador repete a fake news que atribui ao Ministério da Saúde a responsabilidade pelos crimes. Outra publicação mentirosa afirma que o governo Lula repassou R$ 11 milhões para o laboratório da família do Doutor Luizinho sem licitação.
Tudo isso serviu para embaralhar os fatos e turvar os acontecimentos do ano passado, quando a imprensa e o Centrão estavam juntos fritando Nísia e amaciando o terreno para a entrada do Doutor Luizinho.
As digitais do homem que o Centrão quis transformar em ministro da Saúde estão todas presentes nesse escândalo, mas, curiosamente, seu nome não aparece mais com destaque no noticiário. Pelo contrário, parte da imprensa segue tentando colar Nísia de alguma maneira no caso.
Aos incautos, fica a sensação de que o crime está na conta do governo federal, quando, na verdade, é o bolsonarismo e o Centrão que estão envolvidos até os ossos. Seria de bom tom uma autocrítica da imprensa, mas esperemos sentados.
Correção: 22 de outubro de 2024, 19h01
O vídeo compartilhado por Jair Bolsonaro não era da produtora Brasil Paralelo. A informação havia sido divulgada pelo projeto Comprova, mas foi corrigida.
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