O escândalo de contaminação do sangue de pacientes do SUS transplantados por HIV no Rio de Janeiro se enquadra naquilo que, no meio médico, se convencionou chamar de evento sentinela, espécies de “canários na mina”.
Trata-se de ocorrências graves, indesejadas e inesperadas em produtos ou serviços de saúde, que causam ou podem causar danos significativos aos pacientes e à própria reputação das instituições de saúde. E que poderiam ser evitadas.
Chamamos de sentinelas porque alertam para falhas de segurança que exigem intervenção imediata, rigorosa apuração, revisão de procedimentos e responsabilização de envolvidos. Mais do que isso, podem indicar problemas estruturais ou sistêmicos, cuja resolução extrapola apenas o nível técnico, da normatização, fiscalização e vigilância sanitária dos produtos e serviços de saúde.
Ao ser identificada e publicizada, a criminosa violência sofrida pelas vítimas revelou toda uma cadeia de erros, fraudes, esquemas, negligências e omissões, que vão desde a bancada do laboratório PCS LAB em Nova Iguaçu até as bancadas no Congresso Nacional.
A quantidade de pacientes afetados e os danos causados ainda são inestimáveis, pois envolvem dezenas de serviços que atendem milhares de pessoas expostas a riscos inaceitáveis. São incontáveis as decisões clínicas tomadas com base em exames fraudulentos, o que coloca sob suspeita desfechos, intervenções e diagnósticos que se utilizaram das informações do laboratório.
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Alguns detalhes geram revolta, como o despudor, a irresponsabilidade e a completa falta de ética de técnicos e profissionais envolvidos. Ou o mau-caratismo de gerentes e proprietários do laboratório, que deliberadamente agiram para fraudar resultados de exames médicos extremamente sensíveis.
Outros são velhos conhecidos, como o envolvimento da cúpula da Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro, que já foi liderada por Sérgio Côrtes, Edmar Santos e pelo próprio Dr. Luizinho, cujas relações com o PCS Lab vêm sendo amplamente divulgadas. Porém, o alerta que o evento sentinela nos traz vai além da corrupção. E a resposta a ele não deve ser apenas técnica ou criminal.
Um caso grave, mas sem precedentes. Não por um acaso.
A gravidade do ocorrido não tem precedentes nas últimas três décadas. E isso não é uma coincidência. Entre 1987 e 1988, Betinho e Henfil, vítimas de contaminação pelo vírus do HIV em transfusões de sangue para tratamento de hemofilia, lideraram a campanha ‘Sangue Não é Mercadoria’ para pressionar a sociedade brasileira e a assembleia constituinte pela vedação à comercialização de sangue e hemoderivados.
O Brasil mostrou para o mundo, e para o Sul Global em especial, que é possível encontrar coletivamente soluções para saúde.
Em 1986, Betinho, junto de profissionais e ativistas de diversas áreas, já havia criado a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids, a ABIA, lutando pelo tratamento adequado, respeitoso e público para os portadores do HIV. Estes movimentos se somavam ao conjunto de reivindicações e demandas da sociedade por uma reforma profunda no sistema de saúde brasileiro.
Valeu a pena lutar. Em 1988, a Constituição reconheceu a saúde como direito social universal e dever do Estado brasileiro. A comercialização de sangue foi proibida. Em 1990, foi criado o Sistema Único de Saúde e, na esteira de sua criação, diversas políticas, instituições, sistemas e programas de excelência foram implementados, como o Sistema Nacional de Transplantes, o Programa de HIV/Aids, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Política Nacional de Sangue e Hemoderivados e a Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia, a Hemobras.
Tijolo por tijolo a sociedade brasileira construiu democraticamente exemplos a serem exaltados orgulhosamente. Escândalos envolvendo a contaminação de sangue deixaram de ser notícia. O Brasil mostrou para o mundo, e para o Sul Global em especial, que é possível o sonho de um país soberano, autossuficiente, inclusivo, democrático, capaz de encontrar coletivamente soluções efetivas para as necessidades de saúde de seus cidadãos.
Mas nem só de sucessos essa história é feita. A mesma Constituição estabeleceu que a saúde era livre à iniciativa privada, que deveria atuar em caráter complementar ao SUS.
A necessária ampliação da oferta de serviços públicos desmercantilizados esbarrou no subfinanciamento da saúde imposto pelas políticas macroeconômicas, na grande dependência de prestadores privados – em especial hospitais e laboratórios – e nos limites da lei de responsabilidade fiscal.
Ao mesmo tempo em que o modelo tradicional de administração direta de serviços mostrou limites, as alternativas gerencialistas como as organizações sociais e fundações foram estimuladas e passaram a ser escolha prioritária para expansão da rede pública por todo país.
Enquanto os recursos das secretarias estaduais e municipais foram drenados para estas modalidades, a promessa de mais eficiência e qualidade não se confirmou, os resultados de saúde foram heterogêneos e ampliou-se a fragmentação do sistema.
Mais do que isso, tais modelos foram facilmente capturados pelos poderes regionais e locais, utilizados como mecanismos de reprodução política e eleitoral do poder, com consequências nefastas para a saúde.
A estes impasses, se somam os anos recentes de teto de gastos, austeridade, obscurantismo, enfraquecimento do Ministério da Saúde como autoridade sanitária, e desestruturação de parte de sua capacidade técnica e operacional.
Atualizou-se a requentada concepção de que o SUS deveria direcionar os esforços aos mais pobres, ao mesmo tempo em que o acesso a planos de saúde de cobertura limitada deveria ser estimulado.
Todavia, a pandemia de Covid-19 nos trouxe para a realidade, mostrando ao mesmo tempo as consequências dramáticas destes caminhos e a relevância estratégica do SUS para o Brasil.
A solução do neoliberal para o SUS? Privatizar mais, claro!
Longe de Nova Iguaçu e no mesmo dia em que estourou o escândalo do PCS Lab, Armínio Fraga, um renomado financista e ideólogo, manifestou suas preocupações com o futuro da saúde no Brasil. Corretamente, apontou que deve se pensar o sistema de saúde brasileiro como um todo, sem tratar público e privado como partes isoladas.
Equivocadamente, defendeu que devemos caminhar para um modelo mais híbrido, já que um ‘retorno’ ao modelo original do SUS não seria mais possível. Ora, há aí grande cinismo ou negação dos fatos, que o evento sentinela nos ajuda a desvelar.
É justamente o hibridismo o cerne do problema envolvendo o escândalo de contaminação. Foi o argumento de que o Hemorio estava “sobrecarregado” que justificou a terceirização dos exames para o PCS Saleme.
Hoje, mais de 90% dos laboratórios de diagnóstico no Brasil são privados, e há uma enorme dificuldade em se ampliar investimentos e oferta pública neste campo, bem como em fiscalizar os inúmeros estabelecimentos privados tão precários quanto o PCS Lab.
É justamente o hibridismo a marca do sistema de saúde brasileiro contemporâneo, fruto de décadas de políticas de saúde com sinais contraditórios. A compatibilização entre universalização e privatização se deu às custas de um SUS enfraquecido, parasitado por todo tipo de negócio, aquém de suas possibilidades e das necessidades dos brasileiros. Nós não precisamos caminhar para esta direção. Nós já estamos aí.
Corremos o risco de ver a reputação do SUS e da saúde pública, construída a duras penas, na mesma vala comum dos esquemas mais sujos.
De fato, não é possível um retorno ao “modelo original” do SUS proposto pela reforma sanitária, que pressupunha um sistema realmente único. Simplesmente porque não é possível voltar a algo nunca implementado integralmente. Nunca ocorreram movimentos concretos na direção da desprivatização do sistema.
Por outro lado, foram mais bem-sucedidas justamente as experiências que se aproximaram do “modelo original”, com forte protagonismo da provisão pública: a atenção primária, os programas de imunização, transplantes, sangue e hemoderivados, HIV/Aids, entre outras.
O caso do PCS Saleme exige respostas muito mais duras e enfáticas das autoridades políticas e sanitárias do que temos visto até o momento. E exige, sobretudo, uma ampla resposta social.
Se formos capazes de captar o alerta, entenderemos que é necessário reconstruir um projeto estratégico para a saúde no Brasil, com base social e força política para implementar uma agenda de mudanças estruturais progressivas.
Caso contrário, corremos o risco de ver a reputação do SUS e da saúde pública, construída a duras penas, na mesma vala comum dos esquemas mais sujos e pueris. Seria uma grande derrota para o Brasil e para a democracia.
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