Hoje assisti ao primeiro dia de julgamento de Ronnie Lessa e Élcio Queiroz, os executores de Marielle Franco e Anderson Gomes.
Já fui a muitos júris populares. É óbvio que um julgamento pelo júri é mais emocional que os demais. Um juiz criminal profere centenas de decisões por ano, o que dessensibiliza todo o processo. É hábito da prática advocatícia nos tribunais do júri, portanto, dar maior foco ao lado emocional.
O caso da Marielle, porém, é peculiar. Não apenas porque Mari era minha amiga. Nos dois anos anteriores, eu havia participado da mobilização de centenas de militantes do PSOL por uma candidatura de uma mulher negra; depois, fui da equipe responsável por filmá-la, mais de uma vez.
Sempre pensei: “nossa, se as pessoas conhecessem a Mari fora das câmeras…”. Falamos muito a palavra “interrupção” para descrever o assassinato bárbaro da quinta vereadora mais bem votada da cidade, aquela que saiu da Maré para conquistar o mundo. Marielle foi interrompida porque nada a pararia.
No julgamento, após o sorteio, há uma seletiva de jurados. Acusação e defesa excluem aqueles que consideram que podem ser imparciais. Não por acaso, todos os sete jurados do caso são homens: a defesa impugnou todas as mulheres sorteadas.
O motivo é claro: a melhor chance da defesa é achar quatro jurados bolsonaristas, que acreditaram na rede de esgoto e fake news que milicianos, fascistas e ideólogos da extrema direita começaram a disseminar poucas horas após o assassinato da Marielle.
E, claro, o eleitorado bolsonarista é flagrantemente mais forte entre homens.
A cada vítima, a acusação e a assistência de acusação perguntavam ‘Qual a falta que Marielle faz para a família dela?’
A reação à partidarização desmedida do assassinato de uma vereadora pelo crime organizado, por um grupo de extermínio a mando de milicianos, gerou uma reação dantesca: a acusação dividiu a Marielle em duas. De um lado, Marielle Franco, a vereadora de esquerda, feminista, bissexual, aguerrida; de outro, Marielle Francisco da Silva, filha de Dona Marinete, madrinha de casamento de Fernanda Chaves, irmã que criou Anielle, mãe de Luyara, carinhosa, amiga, cuidadosa.
A cada vítima, a acusação e a assistência de acusação perguntavam: “Qual a falta que Marielle faz para a família dela?”
O valor da vida atrelada a ter família. A família obrigada a explicar porque a vida da familiar morta valia. Uma espécie de inversão do julgamento, onde quem está sendo julgada é a Marielle. E as demais vítimas desse crime, seus familiares e familiares de Anderson, tem que contar porque aquele crime foi um caso de barbárie.
Mãe teve que explicar porque a vida da filha tinha valor
Fernanda Chaves, assessora de imprensa do mandato de Marielle Franco, estava no carro quando Marielle e Anderson foram mortos, e abriu os depoimentos das vítimas do crime. Ela relatou tanto a amizade de anos com Marielle quanto como o crime arrasou sua vida.
Contou o momento do crime, quando após ouvir tiros, ela se abaixou no carro. Sobre como saiu coberta do sangue de Marielle do carro e foi socorrida por uma mulher carregando uma criança de colo. E como sua vida virou de cabeça para baixo nos dias seguintes: Fernanda, seu marido e sua filha foram obrigados a fugir do país temporariamente. Ele deixou o escritório para trás, a filha deixou todas as amiguinhas, todos deixaram toda a família e amigos.
Em questão de horas, estavam num carro blindado a caminho do aeroporto para deixar o país sem saber quando poderiam retornar. Ao longo dos dias seguintes ao assassinato, diversas testemunhas foram mortas. Defensores de direitos humanos sabiam e não queriam que Fernanda fosse mais uma.
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Chegando ao avião, a filhinha de Fernanda perguntou, segundo ela narrou em seu depoimento: “mamãe, o que é um assassinato?”. Eu não consigo imaginar o que possa ser tentar explicar isso para um filho numa situação como essas.
Mas a coisa mais difícil de imaginar é o que Dona Marinete, mãe de Marielle, tentou explicar no seu depoimento: a vida de sua filha tinha valor. Marinete falou do quão importante Marielle foi pra vida dela, o quanto ela ajudou na criação de Anielle, como ela era estudiosa e trabalhadora.
Marinete foi buscar na sua memória, na sua dor, no seu catolicismo, na sua dedicação, nos orgulhos que acumulou da filha favelada que fez primeira comunhão, foi monitora da escola, fez faculdade, mestrado e foi vereadora. Foi buscar em pequenas histórias de amor e carinho, explicar algo que uma mãe jamais deveria ser obrigada a explicar.
“Eu me dediquei a vida inteira para criar ela”. “Um filho é dádiva que Deus te dá, só ele poderia tirar ela de mim”. “Eu não podia deixar de estar aqui. Não, porque as pessoas não sabem. Sabem da Marielle como símbolo, sabem da Marielle como parlamentar, sabem da mulher aguerrida que ela era, mas não sabem da família dela”.
Nada reflete mais a imagem dessas duas Marielles que essa fala de sua mãe.
Mônica, Marinete e Fernanda foram instadas a demonstrar a dor da ausência da Marielle para além da política
No depoimento da viúva de Marielle, a vereadora Mônica Benício, o padrão se repetiu. A acusação perguntou: “a Marielle como pessoa, não como vereadora, como ela era?”
Mônica passou alguns minutos chorando antes de começar a responder.
“A Marielle era a pessoa mais companheira que eu conheci”. Mas, coube a Mônica reunificar a Marielle: “Hoje se fala da política feita com afeto da vereadora, porque tinha muito da Marielle Francisco na atuação dela”. Concluindo: “Mas esse companheirismo dela estava em tudo, nos almoços de domingo, nas tarefas de casa, no acolhimento de cada pessoa da família e cada amigo, ela não precisava passar por uma dor igual ao do outro para se comover com aquilo, se indignar e tentar ajudar”.
Justo ali, onde Mônica, Marinete e Fernanda foram instadas a demonstrar a dor da ausência da Mari para fazer com que jurados se comovessem e se indignassem. Porque vai que a ideologia de extrema direita os tornou incapazes de entender que, concordando ou não com a Marielle politicamente, sua vida tinha valor.
Seguindo os depoimentos, foi a vez de Agatha Arnaus, viúva do motorista Anderson Gomes. Tristemente, a mesma rotina de ter que explicar porque a vida de seu marido valia. Aqui, havia algo ainda mais destruidor: Anderson deixou um filho de um ano e oito meses que, tornando tudo ainda mais trágico, enfrentou sérios problemas de saúde desde antes do nascimento.
No julgamento, vimos, de novo, Marielle dividida em duas. Mas é importante lembrar que antes da barbárie que a milícia fez ela era uma só.
O menino, felizmente, parece bem. O que Agatha passou para que ele chegasse aqui bem é inexplicável. A descrição de cuidar do filho doente, sozinha e vivendo um luto tão violento, arde o coração de quem escuta.
Anderson não era o motorista regular de Marielle, ele estava cobrindo as férias do motorista dela. Ficaria nesse trabalho por poucas semanas e calhou de estar na semana errada. Seu nome muitas vezes é esquecido.
Mas a história de sua morte repete as mesmas histórias da morte da Marielle. O Rio de Janeiro tem diversos murais, grafites, pinturas e colagens com o rosto de Marielle. Um dos poucos que também traz o rosto de Anderson é justamente no Estácio, logo no lugar onde eles foram mortos.
Segundo Agatha, seu filho Arthur passou a reconhecer o rosto do pai nas paredes. Pai que ele mal deve se lembrar. De novo, dois Andersons: um pai que se foi, uma foto sorrindo num grafite que ficou na esquina onde foi assassinado.
Eu já tive que explicar aos meus filhos quem foi Marielle e porque tem foto do pai e mãe deles com aquela moça que está em tantos grafites cidade afora. “A amiga do papai que morreu”, eles dizem quando passamos por um. Sem perceber, eu também tive que explicar aos meus filhos, que sequer eram nascidos quando a Marille morreu, o que diabos era um assassinato.
Se de um lado é comovente ver a foto da Mari pela cidade, de outro é sempre impactante perceber que a pessoa que deixou tanta falta em tantos nós foi se tornando o nome, o grafite, o símbolo, para todos que não tiveram a oportunidade de conhecê-la.
No julgamento, vimos, de novo, Marielle dividida em duas. Mas é importante lembrar que antes da barbárie que a milícia fez ela era uma só.
Após o depoimento das vítimas, o julgamento prosseguiu para a parte técnica, com descrição sobre os métodos da polícia para rastrear o carro de Queiroz e Lessa e provar que eles passaram meses seguindo Marielle, em busca do momento certo para praticar o crime. Beira o anticlimático: são réus confessos que, inclusive, delataram os mandantes: a família Brazão e o delegado Rivaldo Barbosa.
O julgamento deve durar, ao menos, dois dias. Apenas após todas as testemunhas serem ouvidas, haverá um pronunciamento de acusação e defesa e será entregue um questionário aos jurados. De acordo com as respostas, o juiz ditará a pena.
O julgamento dos mandantes ainda não tem nenhuma previsão para ocorrer. Veremos se as famílias de Marielle e Anderson serão obrigadas à violência de novamente explicar porque a vida deles tinha valor.
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