Desde o começo de setembro, as armas de gel vêm se tornando uma nova moda entre jovens das periferias de todo o Brasil. São simulacros de pistolas, submetralhadoras e outras armas, de origem chinesa, que disparam bolinhas de gel à base de água, com uma força consideravelmente inferior à das armas de paintball e airsoft.
Apesar da popularidade crescente — impulsionada pela visibilidade de artistas como MC Cabelinho e pelas brincadeiras de “guerras” em espaços abertos —, as elites e classes médias brasileiras não têm enxergado esse brinquedo com o mesmo entusiasmo. Afinal, o perfil dos principais consumidores dessas armas de gel é formado por jovens negros e moradores de favelas, exatamente aqueles que, num país racista, são muitas vezes vistos como inimigos.
A falsa preocupação com a segurança negra direciona o debate sobre as armas de gel, como se a violência do Estado dependesse do comportamento dos homens negros. A retórica é frágil, especialmente diante de evidências de que seus corpos são alvos preferenciais da polícia, independentemente de qualquer atitude. O jornalismo, por sua vez, historicamente colabora em legitimar ações policiais, construindo discursos que associam essa população a perigos potenciais, como descrevem autores como Abdias do Nascimento, Sueli Carneiro e Paulo Cesar Ramos.
Programas como o Balanço Geral exploram a popularidade das armas de gel, apresentando-as como um “terror” nas periferias de São Paulo e Rio de Janeiro. Casos isolados são amplificados para sugerir um medo generalizado, transformando a brincadeira em um suposto perigo à sociedade. A música sensacionalista e o tom alarmista reforçam esse pânico moral, sempre usado para fortalecer o controle social.
Esse pânico não é novidade na mídia brasileira, que tende a transformar manifestações culturais em ameaças públicas, especialmente quando associadas à população negra. No caso das armas de gel, há o risco de que a brincadeira, menos ofensiva que airsoft ou paintball — esportes populares entre as classes médias e altas —, seja criminalizada justamente por seu uso entre jovens periféricos.
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A retórica da “segurança pública” aparece como uma justificativa para essa criminalização. Em uma reportagem recente, o portal Metrópoles trouxe a declaração da Polícia Militar de São Paulo, a mesma que em 58 dias da Operação Escudo matou 56 pessoas no começo deste ano, sobre o risco de os policiais confundirem as armas de gel com armamentos reais. A PM alegou que “a semelhança pode confundir tanto a população quanto os policiais em situação de emergência”.
A deputada estadual Martha Rocha, do PDT, em entrevista ao Globo, reforçou esse argumento ao afirmar que o uso das armas de gel “incita o uso de armas e o comportamento violento”. Com ou sem intenção, esses discursos incentivam abordagens violentas e sugerem que jovens negros poderiam ser mortos pela polícia ao serem confundidos com criminosos. Assim, transfere-se o controle para os jovens negros, enquanto a responsabilidade das abordagens policiais violentas é diluída na tentativa de criminalizar um simples brinquedo.
Casos de abuso policial recentes mostram que o discurso de confusão frequentemente justifica ações letais. Onde estavam as armas de brinquedo quando, no ano passado, a polícia brasileira matou 6.393 pessoas, 82,7% delas negras? Exemplos como o do DJ Pudou, morto em uma operação no Complexo do Chapadão, no Rio de Janeiro, e Rodrigo Alexandre da Silva Serrano, morto ao portar um guarda-chuva confundido com fuzil, evidenciam que a violência policial não depende de brinquedos, mas de uma estrutura racista que legitima ações contra corpos negros.
A questão central é por que ver jovens negros e pobres se divertindo incomoda tanto? Reportagens como as da Band revelam esse desconforto: ao iniciarem matérias sobre a brincadeira com uma referência ao funk, descrevendo-o de forma pejorativa, relacionam o objeto de diversão a um estereótipo de violência. A equipe da Band até coloca o termo “brincadeira” entre aspas, demonstrando desconfiança e estigma contra essa forma de lazer.
Enquanto armas de verdade tiram vidas, a diversão negra é interrompida e censurada.
A aversão ao funk se mistura ao desprezo pelo brinquedo e seu uso, tratado quase como uma extensão simbólica do medo do estereótipo do homem negro violento. Não surpreende que a mídia trate as armas de gel como uma questão de segurança pública, incluindo especialistas em segurança e discursos de criminalização, em uma tentativa de transferir a brincadeira do ambiente comunitário para o da violência urbana.
O consenso entre as partes envolvidas não parece ser prioridade nesse debate. Seria possível construir normas de segurança, como o uso de proteção nos olhos e o respeito a terceiros, mas esse não é o foco. A preocupação central é impedir que jovens negros tenham diversão, especialmente quando ela desafia o imaginário racista que associa corpos negros a perigo e violência.
É uma questão de controle social. A resistência a deixar que jovens negros vivenciem suas próprias formas de lazer evidencia a recusa em reconhecê-los como sujeitos plenos de direitos e autonomia. Como explica Sueli Carneiro em Dispositivo de Racialidade, a “brancura” é vista como padrão de virtude e humanidade, enquanto corpos negros são reduzidos à animalidade.
Enquanto armas de verdade tiram vidas, a diversão negra é interrompida e censurada. Bailes, funks e até armas de brinquedo são vistos como ameaças, como se a moral branca fosse atacada por cada expressão cultural que jovens negros criam para alimentar a alma e a imaginação. Em breve, é possível que se alcance um nível de criminalização semelhante ao dos “rolezinhos” nos shoppings de zonas nobres nos anos 2010, quando a simples presença de jovens favelados foi tratada como motivo de pânico.
Afinal, pode o subalterno se divertir?
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