Por muitas décadas, jornalistas aprenderam a não fazer analogias com Hitler nas matérias sobre política dos EUA. A maldade de Adolf Hitler era tão peculiar, que qualquer comparação entre um político estadunidense e o líder nazista era considerada injusta e fora dos limites.
Até que veio Donald Trump.
Trump é a primeira figura política moderna nos Estados Unidos a obrigar os jornalistas a reavaliarem se as referências a Hitler se enquadram em seus padrões editoriais.
Em minhas colunas e outros artigos para o Intercept, venho chamando a atenção para os paralelos cada vez mais óbvios entre Hitler e Trump, e entre o movimento nazista e o culto MAGA (Make America Great Again). No entanto, a maioria dos jornalistas tradicionais vem se mantendo obstinadamente aferrada à proibição não declarada de analogias com Hitler, e se recusa a comparar os dois. Essa relutância em apontar a verdade sobre Trump faz parte de um padrão mais amplo da chamada “sane-washing”, ou normalização de Trump: a imprensa política dá crédito e seriedade à sua demagogia, às alucinadas teorias conspiratórias e às propostas racistas.
Mas o próprio ex-chefe de Gabinete da Casa Branca do governo Trump deu novas declarações bombásticas que praticamente impossibilitam que a mídia continue a justificar uma proibição às comparações Trump/Hitler. John Kelly, um general da Marinha reformado e o chefe de Gabinete que trabalhou por mais tempo com Trump, disse ao jornal The New York Times e à revista The Atlantic, em entrevistas publicadas recentemente, que, durante seu mandato como presidente, Trump deixou claro que admirava Hitler e desejava ter seu poder autoritário.
‘Kelly declarou estar convencido de que Trump é um fascista.’
Kelly relatou que Trump teria dito repetidas vezes, em particular, que Hitler “fez algumas coisas boas”, e que Trump queria ter o tipo de “generais alemães” que serviram a Hitler e cometeram crimes de guerra indescritíveis durante a Segunda Guerra Mundial.
Kelly declarou estar convencido de que Trump é um fascista.
Em sua entrevista ao New York Times, ele mencionou a definição de fascista, e disse que Trump se encaixa nela: “Bem, olhando para a definição de fascismo: é uma ideologia e um movimento de extrema direita autoritária e ultranacionalista, caracterizado por uma liderança ditatorial, autocracia centralizada, militarismo, supressão da oposição com uso da força, crença em uma hierarquia social natural (…) ele certamente se encaixa na definição geral de fascista, sem dúvida”.
Da mesma forma, Kelly disse à The Atlantic que Trump gostaria que os generais americanos agissem como os generais nazistas de Hitler. Kelly se lembra de uma pergunta que fez a Trump: “‘mas certamente você não se refere aos generais de Hitler?’ e ele respondeu ‘sim, sim, os generais de Hitler'”.
É de conhecimento geral há anos que Kelly sabia detalhes bombásticos sobre o mandato de Trump na Casa Branca, mas até agora ele vinha se mantendo praticamente em silêncio. Ele diz que finalmente decidiu revelar o que sabe sobre Trump porque teve medo das recentes declarações do ex-presidente, de que quer usar as Forças Armadas dos EUA contra seus adversários políticos e dissidentes. Trump já chamou seus opositores políticos de “o inimigo interno”, e Kelly diz que essas declarações finalmente o levaram a ir a público.
É importante que Kelly tenha finalmente se manifestado, antes das eleições. Mas ele poderia ter feito isso muito antes; é uma surpresa que a insurreição de 6 de janeiro de 2021 não o tenha encorajado.
Obviamente, 6 de janeiro também não convenceu a grande imprensa a começar a comparar Trump a Hitler com regularidade, embora as semelhanças entre a insurreição de 2021 e o Putsch de Munique de Hitler, em 1923, estivessem bem à frente dos olhos de todos.
A ironia é que, se Trump fosse uma figura política de qualquer outro país, a imprensa dos Estados Unidos há muito tempo já o teria rotulado como autocrata. A mídia estadunidense é muito suscetível à pressão doméstica, por isso frequentemente evita dizer verdades óbvias sobre as figuras políticas dos EUA e sobre as ações do governo do país.
Na verdade, a recusa da imprensa estadunidense em dizer que Trump é um potencial ditador é semelhante à forma como a mesma imprensa se recusava a dizer que a Agência Central de Inteligência, a CIA, havia torturado prisioneiros em suas prisões clandestinas durante a guerra ao terrorismo. Em vez de dizer que a CIA havia praticado tortura, a imprensa usou vergonhosamente eufemismos como “interrogatório intenso” e “interrogatório duro”. Por muitos anos, o uso da palavra “tortura” para descrever o que a CIA fazia era proibido em muitos veículos de comunicação. Esse abrandamento retórico ajudou a evitar a responsabilização da CIA.
Neste momento, a imprensa precisa evitar repetir essa falha e fazer claramente as comparações entre Trump e Hitler.
Agora, finalmente, as declarações de Kelly forneceram toda a munição que era necessária. Ele confirmou que Trump quer ser um ditador e que representa uma ameaça existencial à democracia dos Estados Unidos. Seu alerta vem como um alarme de incêndio durante a noite, que a imprensa dos EUA — e o povo dos EUA — precisa escutar.
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