A esquerda precisa se reconectar com a defesa da classe trabalhadora, sem se descaracterizar nem fragmentar pautas sociais. A avaliação é da deputada federal Natália Bonavides, do PT, que chegou ao segundo turno na disputa pela prefeitura de Natal, capital do Rio Grande do Norte, mas foi derrotada.
Para ela, este realinhamento é um dos caminhos para “reencantar” os eleitores e superar uma extrema direita que joga duro e desrespeita as regras.
No início da campanha, as pesquisas eleitorais apontavam Natália em terceiro lugar, com, no máximo, 15% das intenções de voto. Em alguns levantamentos, ela não chegava aos 7%.
O cenário na capital do Rio Grande do Norte não costuma ser bom para um partido de esquerda. Natal é conhecida por ser uma cidade conservadora, onde os candidatos do PT poucas vezes obtiveram mais que 30% dos votos e há quase 30 anos não chegavam sequer ao segundo turno.
Bonavides não ganhou este ano, mas seu desempenho na campanha foi surpreendente. Ela conseguiu chegar ao segundo turno e conquistou mais de 44% dos votos, mesmo enfrentando violência política e tendo contra si veículos de comunicação tradicionais do estado e a máquina da prefeitura, já que o atual prefeito Álvaro Dias, do PSDB, se uniu ao candidato Paulinho Freire, do União Brasil.
“Uma derrota eleitoral nem sempre significa uma derrota política. Abrimos um novo momento da disputa política na cidade. E é importante destacar que usamos todos os símbolos [do PT]. Usamos o vermelho, reafirmamos o partido, chamamos o presidente Lula e a governadora Fátima para participar”, me disse Bonavides, em uma entrevista de quase uma hora, a primeira que ela concedeu depois da eleição.
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Essa não foi a única campanha que a petista se destacou. Em 2022, ela foi a deputada federal mais votada no Rio Grande do Norte e a única mulher eleita, defendendo pautas lidas como identitárias e ocupando espaço em uma bancada formada principalmente por políticos do PL e do União Brasil.
Perguntei para Natália Bonavides o que sua experiência ensina para outros candidatos da esquerda. Ela destacou o formato da campanha, que foi essencialmente de rua, mas também com uso das redes sociais. Citou, ainda, os bons desempenhos nos debates e as denúncias constantes dos abusos de poder econômico, político e dos meios de comunicação por parte dos seus oponentes.
Falou também que a esquerda precisa ter nitidez do que defende, reafirmando sua posição ao lado da classe trabalhadora, mas entendendo que ela é diversa. “Isso tem um potencial muito maior de dialogar com a população do que abrir mão de mais pautas para ir ao centro. Se nós só nos parecemos com o outro lado, não estaremos em vantagem alguma”.
Confira os principais trechos da entrevista:
Intercept Brasil – As pesquisas eleitorais apontavam você em desvantagem, com percentual de intenção de voto baixo no início da disputa, mas sua candidatura foi crescendo. Mesmo não tendo ganhado, foi para o segundo turno e sua campanha se destacou. A que se deve isso, na sua avaliação?
Natália Bonavides – Nós tivemos uma conjunção de fatores. O Partido dos Trabalhadores foi muito unido para a eleição; a minha atuação como parlamentar expressou um posicionamento de defesa da classe trabalhadora, dentro da sua diversidade; e foi uma campanha de muita proximidade com a população.
As eleições municipais estão cada vez mais permeadas por uma série de metodologias que flertam com práticas criminosas ou são efetivamente crimes, e que estão influenciando os resultados eleitorais.
São práticas como compra de voto, uso da estrutura pública para prática de assédio eleitoral e abuso de certos meios de comunicação, porque a predominância da direita nos veículos é muito forte.
A gente sabia o que ia enfrentar. Então, nossa campanha tinha que ser de rua. Para falar com o povo, ia ter que ser cara-a-cara. A partir da segunda quinzena do primeiro turno até o final, praticamente todos os dias, era uma caminhada em algum bairro diferente.
A gente também se dedicou muito às redes sociais. Buscamos fazer uma comunicação mais direta, mostrar as atividades de campanha, fazer a chamada para eventos. Nos debates, fazíamos com que o desempenho tivesse um destaque.
Uma derrota eleitoral nem sempre significa uma derrota política.
Para enfrentar uma estrutura tão poderosa, não dava pra escolher uma estratégia. Tinha que ir bem nas redes, tinha que ser a melhor nos debates e nas sabatinas, tinha que fazer a campanha de rua mais próxima.
Isso não é meramente eleitoral, parte de uma perspectiva de que é assim que precisamos atuar na política, se temos como horizonte um projeto de sociedade que seja diferente do que está posto.
Além disso, buscamos desnaturalizar essas práticas de compra de voto, abuso de certos meios de comunicação e assédio eleitoral. Eu não entendo como, nas campanhas em geral, esses temas não são centrais para os próprios candidatos. Esse é um desafio para ser debatido nacionalmente, de como lidar com essas práticas.
Precisamos ter um processo de denúncia muito mais forte, senão os resultados vão ser sempre esses, que favorecem quem está com a máquina e quem domina determinadas estruturas – quase sempre, a direita.
Muito se fala sobre o que a esquerda precisa fazer para não perder mais espaço. O que você pensa sobre isso?
A gente tem visto, em toda eleição, um sentimento de desesperança, muitas vezes de descrença nos processos políticos eleitorais. Precisamos dialogar com essa desesperança. A direita faz isso através do medo. A campanha do meu adversário [Paulinho Freire, do União Brasil] foi essencialmente de atacar, de espalhar fake news, ameaçando os servidores terceirizados de perder o emprego. A gente dialogou pela esperança.
Quando se fala de novos caminhos, de melhora das condições de vida, de mudança em projetos de desenvolvimento, é muito comum, principalmente quem se beneficia da apatia e da desesperança, taxar isso como utópico, idealista.
Para mim, longe de ser uma palavra que eu utilizo porque é bonitinha, a esperança é um fator fundamental na luta política. Na campanha, a gente tinha que despertar esse sentimento de que tem outro caminho possível, de que se resignar com a mediocridade não seria a única opção.
A sua campanha fortaleceu a esquerda em Natal?
Fazia quase 30 anos que o PT não estava no segundo turno. Existia um mito de que a cidade é muito conservadora e de que a esquerda nunca teria mais que 30% dos votos. Isso já era! Tivemos a maior votação da história do partido em Natal [44,6% dos votos] e fizemos história, inclusive em números.
Uma derrota eleitoral nem sempre significa uma derrota política. Abrimos um novo momento da disputa política em Natal. E o mais interessante é o retorno das pessoas, dizendo que voltaram a acreditar na política com essa campanha, que voltaram a ter esperança.
Separar essas lutas é como ignorar que, para a maior parte das pessoas, participar da luta de classes requer lutar pela sua existência.
Importante destacar que usamos todos os símbolos [do PT], sem esconder nada. Usamos o vermelho, reafirmamos o partido, chamamos o presidente Lula e a governadora Fátima para participar.
Você, uma mulher jovem, de esquerda, que defende pautas lidas como identitárias, foi a deputada federal mais votada do Rio Grande do Norte em 2022, em uma bancada estadual marcadamente masculina e de direita. Agora teve essa votação expressiva e até inesperada. O que o seu caso mostra para a esquerda?
Existe hoje uma polêmica de que as chamadas lutas das identidades atrapalhariam a luta geral da classe trabalhadora. Eu acho um absurdo essa divisão.
A classe trabalhadora é diversa e não tem como separar o seu gênero, sua cor e sua raça, sua classe social. Separar essas lutas é como ignorar que, para a maior parte das pessoas, participar da luta de classes requer lutar pela sua existência.
Quando a gente fala de uma luta de classe, para uma mulher participar disso, ela tem que não ter sido vítima de feminicídio. A pauta que o tema gênero traz de combate à violência, de política do cuidado, não é uma pauta apartada.
Para um jovem negro participar da luta de classes, ele precisa não ter sido exterminado, como acontece de forma epidêmica no nosso país. Não é possível apartar, porque as pessoas não têm como sofrer uma opressão de cada vez.
A solução seria tratar desses temas, mas de uma forma mais próxima da realidade da população?
Sim. Basicamente, fazendo a relação dos problemas que existem hoje na vida das pessoas com a importância dessas lutas todas. O tema da creche, por exemplo, esteve ausente nas últimas campanhas em Natal.
Aqui, tem sorteio de criança para ver quem vai ter vaga. Eu, como única candidata mulher, pautei isso exaustivamente, até fazer com que todos os candidatos se comprometessem com a pauta.
Para algumas pessoas, isso pode ser visto como um tema das feministas, mas é fundamentalmente de classe. Tem milhares de mulheres que não podem trabalhar por causa disso e ficam, inclusive, mais submetidas às situações de violência, porque não têm autonomia financeira.
Então, a nossa concepção é de interseccionalidade de raça, classe, gênero. Dividir essas lutas é como se a gente estivesse dizendo que dá para tratar de uma de cada vez.
E qual seria essa pauta geral, se a classe trabalhadora é majoritariamente feminina? Por que a pauta das mulheres não deve ser considerada? Aqui em Natal, esse tema das creches mobilizou muito.
É muito importante que a esquerda reafirme suas posições de defesa da classe trabalhadora.
Falar de racismo é muito concreto quando a gente pega o mapa da cidade e vê o acesso a serviços onde está a população branca e onde está a população negra. Os bairros onde a maioria é de população negra não têm cobertura de saúde ou as linhas de ônibus foram retiradas.
Como você avalia a tese de que a esquerda precisa ir mais ao centro ou mesmo se aproximar da direita para ganhar eleição?
Primeiro, o que seria o centro, hoje, no Brasil? Muitas vezes, o que se chama de centro, na verdade, é uma direita não radical, não extrema. Quem estaria em vantagem nesse campo de disputa que tem envolvido tanto uso de máquina, de emendas parlamentares, de compra de votos, de abuso dos meios de comunicação?
Nós vamos enfrentar, em 2026, um jogo em que a extrema direita não respeita as regras, segue usando métodos criminosos de disseminação de desinformação, de tentativa de intimidação com ameaças, com violência política.
Por isso, eu acredito que é muito importante que a esquerda reafirme suas posições de defesa da classe trabalhadora. Isso tem um potencial muito maior de dialogar com a população do que abrir mão de mais pautas para ir ao centro.
Mesmo na análise pragmática e eleitoral, eu não acho que faça sentido que a esquerda se descaracterize, porque nós não temos essa prática generalizada de jogar fora das regras.
Não precisamos inventar a roda. A gente tem que ter nitidez das pautas que defendemos, porque, sem elas, nós só nos parecemos com o outro lado e não estaremos em vantagem alguma.
O resultado das eleições municipais mostra que a esquerda se consolidou no Nordeste, enquanto a extrema direita ganhou terreno em outras regiões. Qual a relevância disso?
A lição sobre o resultado eleitoral no país não é só de avanço da direita. É de avanço também de práticas que tiram a liberdade das pessoas de escolher o voto. Até quando a gente vai ficar naturalizando que as pessoas votem sob ameaça, como na República Velha? Isso é algo para ser tratado institucionalmente, no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral, do Congresso.
Sobre o Nordeste, acho que teve resultados muito importantes, mas busco sempre analisar com muito pé no chão, com muito cuidado para não minimizar as vitórias, mas para analisar as derrotas a partir da perspectiva da lição e da tarefa para o próximo período.
Temos a direita muito mais organizada, mobilizada, perdendo qualquer constrangimento em defender pautas muito antipovo.
Embora tenha havido eleições importantes, a gente tem que ter aceso o alerta de que essas práticas [crimes eleitorais] estão permitindo que a direita avance em locais, inclusive no Nordeste, onde a esquerda já teve mais força.
Uma parte desse avanço se dá efetivamente pela disputa ideológica. Hoje, nós temos a direita muito mais organizada, mobilizada, perdendo qualquer constrangimento em defender pautas muito antipovo.
No entanto, para além da disputa ideológica, eu repito, há o uso de métodos que tiram a liberdade do povo de votar. Isso está sendo também um fator decisivo.
Em Natal, teve uns três casos de assédio eleitoral que estão na justiça e, pelo menos, um caso de compra de voto com comprovação. A gente partiu para um processo de denúncia disso tudo.
De que forma seu perfil político pode ser melhor aproveitado nas disputas eleitorais? O que candidatos e candidatas de esquerda precisam ter mais de Natália Bonavides?
Peraí que essa pergunta é difícil. Eu sei que tem características individuais que são muito importantes na disputa eleitoral. O nosso sistema político e a nossa cultura política são muito personalistas. Mas há algumas características que são coletivas. Eu posso, individualmente, ser carismática e me comunicar bem, mas era preciso usar isso a favor de uma análise política.
Se a esquerda tem que estar nas bases, então nossa campanha tem que estar na rua. Se a gente acha que existe abuso de poder econômico, abuso de poder de comunicação, então vamos denunciar isso como pauta de campanha. Se acreditamos em uma perspectiva de diversidade da classe trabalhadora e de isso ser um fator muito importante para a gente se comunicar, vamos trazer pautas que importem para os setores da classe trabalhadora.
O formato que a gente escolheu para a campanha, a forma de se comunicar, a forma de se posicionar sobre diversos temas foi muito importante.
Foi uma candidatura para além da disputa eleitoral, mas também um instrumento de disputa política. Não é à toa que a esquerda sai maior dessa eleição em Natal, mesmo tendo perdido. A gente sai com outras condições de diálogo com a população.
Se for para mencionar algumas características minhas, eu acho que essa disposição de compreender a classe trabalhadora como diversa. Também tem o fato que eu gosto muito de gente.
E eu acredito, de verdade, que as coisas podem mudar. Isso é muito genuíno e me faz ter disposição e energia para enfrentar várias coisas, como ataques e ameaças.
A palavra que me vem à mente, ouvindo você, é engajamento. A esquerda precisa aprender com você a engajar?
Eu acho que a gente tem que reencantar.
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