Momentos antes de lançar bombas contra o Supremo Tribunal Federal e, em seguida, se explodir, Francisco Wanderley Luiz, o Tio França, fez uma publicação no Facebook com prints de mensagens que havia enviado a si mesmo pelo WhatsApp. Ali, vários elementos mostram as influências do terrorista. Também servem de alerta para o processo de radicalização da extrema direita que está em curso – e sua normalização.
Para entender as referências de Tio França, mostramos as mensagens para especialistas, que explicam que o ataque foi alimentado por teorias conspiratórias e extremistas. Afinal, o terrorista, um típico “patriota de quartel”, bebia de fontes ligadas à extrema direita brasileira e a vários setores do bolsonarismo.
O historiador Odilon Caldeira Neto, professor de História Contemporânea da Universidade Federal de Juiz de Fora e coordenador do Observatório da Extrema Direita, observa que, em meio a emojis excessivos e mensagens truncadas, há uma mentalidade política no discurso de Tio França que é “plenamente associada à extrema direita brasileira”, em duas dimensões principais.
“Primeiro, que são os valores históricos consolidados e a atualização deles a partir de questões do campo da extrema direita global mais recente. A segunda dimensão é que, além dessa perspectiva entre valores antigos e padrões novos, existe uma relação entre o local e o global, ou seja, eles vão juntando esse repertório que vem muito da extrema direita dos Estados Unidos, das redes de desinformação e conspiracionismo que são globais, a questões locais”, diz Caldeira Neto, citando como exemplos a menção à fraude nas urnas e ataques ao poder Judiciário.
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Para Letícia Cesarino, antropóloga, professora e pesquisadora na Universidade Federal de Santa Catarina, as publicações deixadas por Tio França mostram um “combo holístico” de vários segmentos do bolsonarismo. “Ele me pareceu num nível muito avançado de radicalização, em que você chega em um ponto onde não vê outra solução a não ser desencadear algo mais extremo, como ele fala várias vezes ali”, pontua.
Uma das principais marcas, na visão dela, é uma dimensão milenarista que fala em segunda vinda de Cristo e apocalipse. Na avaliação de Cesarino, essa gramática cristã das postagens, que não se encaixam plenamente no discurso evangélico típico, é muito presente no extremo da extrema direita.
‘Manda o FBI aqui pra ilha de Marajó’
Em uma das mensagens que publicou no Facebook, Tio França pede que Donald Trump “acelere a operação Storm” e mande o FBI para a ilha de Marajó. O termo ‘storm’ é uma referência à QAnon, uma teoria da conspiração que surgiu em fóruns dos Estados Unidos por volta de 2017 e propaga que Donald Trump estaria trabalhando em segredo para desmembrar uma rede de pedófilos satânicos presentes em Hollywood, no partido Democrata e no chamado “Estado Profundo” do governo norte-americano.
Na mensagem, Tio França cita Marajó, arquipélago localizado no Pará. Marajó foi alvo de uma falsa narrativa em fevereiro deste ano divulgada por líderes evangélicos, pela ex-ministra e atual senadora Damares Alves e por outros atores da extrema direita baseada em uma teoria da conspiração de que a ilha seria o epicentro de um esquema de tráfico sexual de crianças.
Cesarino explica que a gritaria de Damares sobre Marajó tem uma estrutura semelhante à narrativa do do QAnon que surgiu nos EUA, que tinha como um dos lemas “salvem as crianças”. “Marajó é uma espécie de QAnon brasileiro”, diz a antropóloga.
A ligação a mundos conspiratórios e fantasiosos como estes é mais uma característica de um grau extremo de radicalização, de acordo com a pesquisadora. Mas embora tenha se iniciado em comunidades conspiracionistas, essa narrativa furou a bolha e virou pauta do noticiário político nacional – o que concedeu a ela certa legitimidade, observa Caldeira Neto.
“É uma rede que liga, de fato, a dimensão institucional às comunidades conspiracionistas. E existe uma mobilização dessas comunidades conspiracionistas, à medida que a dimensão institucional traz essas pautas, traz esse imaginário para o debate público efetivo e, em certa medida acaba legitimando essa premissa anti-institucional”, ressalta. Esse caminho anti-sistema e anti-institucional, por sua vez, leva também aos atos extremados, avalia o historiador.
Combo de teorias conspiracionistas
Além do discurso ligado às comunidades conspiracionistas que disseminam conteúdo sobre QAnon, as mensagens de Tio França fazem referência ao cenário político brasileiro através de pautas-chave do bolsonarismo, como ataques ao Judiciário, desconfiança sobre as urnas e anticomunismo.
Em uma das mensagens, Tio França diz que o “Judiciário por si só não se sustenta” e que a “base da pirâmide judicial está em todas as cidades do Brasil”. Essa característica do “de baixo para cima” está muito presente nos ecossistemas derivados do bolsonarismo, explica Cesarino. E não só no Brasil: nos Estados Unidos, diz ela, a preparação para uma eventual derrota de Trump e para contestar a eleição passava por essa organização de baixo para cima.
“No Brasil, é exatamente essa mesma coisa. Eles [apoiadores da extrema direita] estão entrando nos conselhos tutelares e de baixo para cima em todo tipo de representação capilarizada que eles podem”, afirma Cesarino. “É algo para olharmos com muita atenção, porque essa é uma direção de organização deles que é muito clara, muito concisa e que passa pela questão das eleições municipais, mas não apenas”.
Para Caldeira Neto, as referências a elementos e símbolos da extrema direita global se somam a alusões específicas ao contexto brasileiro. O historiador aponta, por exemplo, para o argumento anticomunista que aparece nas mensagens de Tio França. “É claro que o anticomunismo é importante nas narrativas de toda a extrema direita, mas na extrema direita brasileira ele tem um aspecto muito central”, destaca.
No Brasil, esse discurso ganha ainda mais tração por ser colocado desde uma perspectiva do catolicismo, do cristianismo conservador, do integralismo, do fascismo e, sobretudo, do campo militar – para quem o anticomunismo desempenha um papel estrutural.
Um terceiro símbolo que aparece nas mensagens é a referência à degeneração, que é um componente comum ao imaginário da extrema direita desde o fascismo e o nazismo. Em uma mensagem, França diz que o Brasil atravessa “um período bastante turbulento e degenerativo”. O conceito de degeneração está ligado a uma ideia de ampla e profunda decadência da sociedade, seus valores, normas e tradições, explica o historiador.
“Essa perspectiva biologizante aparece num sentido de ‘nós somos pessoas comuns, os verdadeiros brasileiros, e nós vamos nos unir contra a ameaça’”, frisa Caldeira Neto.
“Os fascismos, inclusive o integralismo brasileiro, propunham formas políticas para lidar com a degeneração, e, por isso, vislumbravam a ideia de regeneração ou de construção de novas sociedades”, ressalta o historiador.
Do meme à normalização do extremo
Nas horas seguintes ao atentado, as redes sociais foram tomadas por memes em torno da figura de Tio França, tanto sobre suas intenções com o ataque até a respeito do seu suicídio. Nas mensagens deixadas por ele, pessoas deixaram comentários rindo e fazendo piada.
Para Cesarino, essa reação de olhar para o atentado pela via do humor é sintomática e alarmante. “As redes sociais sempre evocam algum tipo de afeto. Pode ser de revolta, indignação, mas também pode ser essa linguagem mais memética, do humor e das piadas”, diz.
Ela enxerga dois fatores que podem explicar o porquê da reação generalizada ter sido de humor. O primeiro é que Tio França se encaixa em um fluxo de piadas que já vem desde 2022 ligado aos bolsonaristas, com menções a gado e ao “patriota do quartel”, ou seja, há um histórico de humor em torno desse tipo de personagem.
Outro fator é que, diferentemente do 8 de janeiro, Tio França não destruiu nada nem feriu ninguém a não ser a si mesmo – para Cesarino, isso também abriu espaço para o humor vir à tona.
Por outro lado, ela pontua que essa reação das redes de fazer piada acaba, muitas vezes, normalizando o extremismo. “Normaliza porque o ato não está sendo reconhecido pelo que ele é, porque é um ato extremo, é um ato de doença social, de uma trajetória extrema”, salienta Cesarino.
A pesquisadora afirma que a mídia tradicional também desempenha um claro papel em normalizar as trajetórias extremas que vão se “hibridizando” com o Centrão e com a velha política. Ela cita como exemplos a campanha de Pablo Marçal em São Paulo e a declaração do governador Tarcísio de Freitas no dia do segundo turno das eleições municipais de que o PCC teria apoiado o candidato Guilherme Boulos, do PSOL.
“Essa parte da normalização não está separada e não vai contra a trajetória de radicalização, mas sim permite a trajetória de radicalização. Foi assim no fascismo, na década de 30, na Alemanha e na Itália. É exatamente a mesma coisa que está acontecendo hoje”, alerta Cesarino.
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