A mobilização em torno do fim da escala 6×1, tema que ganhou força com o grupo Vida Além do Trabalho e deve entrar na pauta do Congresso Nacional por meio de uma Proposta de Emenda Constitucional apresentada pela deputada federal Erika Hilton, do PSOL de São Paulo, é uma reação à flexibilização das leis trabalhistas no Brasil.
A avaliação é de Renan Kalil, doutor em Direito na USP, professor do Insper e procurador do Ministério Público do Trabalho. Para ele, o debate surge de forma orgânica na sociedade, trazendo à tona uma demanda legítima por melhores condições de trabalho.
“Há um excesso de jornadas no Brasil. As pessoas trabalham muito, e o tema só ganhou essa dimensão porque reflete uma necessidade real”, avalia Kalil, em entrevista ao Intercept Brasil.
Segundo ele, a discussão ocorre em um cenário de retrocessos acumulados ao longo de mais de 30 anos, marcados por iniciativas legislativas que, em sua maioria, fragilizaram os direitos dos trabalhadores.
“Nos últimos dez anos, a maioria das propostas aprovadas no parlamento não foi pró-trabalhador. Reformas como a da terceirização e a trabalhista apenas intensificaram a jornada e precarizaram as relações de trabalho”, afirma.
Kalil argumenta que a redução da jornada é mais do que uma questão de saúde e qualidade de vida: é uma resposta direta às desigualdades no mercado de trabalho. Ele aponta ainda que o Brasil permanece atrasado em relação a outros países.
“Nos Estados Unidos, que a extrema direita gosta de usar como referência, o limite semanal é de 40 horas. Aqui, ainda estamos discutindo como sair das 44 horas, o que demonstra o quanto ainda precisamos avançar”, destaca. Leia a entrevista completa.
Intercept – O que motivou o debate sobre a redução da escala 6×1 e qual a importância desse tema?
Renan Kalil – Esse tema surge de forma muito orgânica na sociedade porque há um excesso de jornadas de trabalho no Brasil. As pessoas trabalham muito. O Rick Azevedo conseguiu simbolizar e tocar num ponto que já estava no ar com o vídeo que viralizou no TikTok. Isso trouxe à tona uma demanda social importante, traduzindo em palavras algo que está presente nos mais variados ciclos sociais e tipos de trabalho.
Se olharmos para a PEC da deputada Erika Hilton, que foi apresentada em maio, ela não estava avançando. Foi só a partir do impacto do debate nas redes sociais, promovido pelo Rick Azevedo e pelo movimento Vida Além do Trabalho, que ela ganhou tração e se tornou um tema de debate no Congresso. Isso mostra como uma demanda social pode catalisar mudanças, especialmente quando há esse tipo de mobilização.
Como o conceito de liberdade está relacionado a essa discussão?
Essa questão está muito ligada à ideia de liberdade. Alguns defendem modelos como o “plataformizado” sob o argumento de que o trabalhador pode escolher quando vai trabalhar. Mas essa “liberdade” é, muitas vezes, voltada para a inserção e dominação do tempo profissional.
Ao mesmo tempo, existe o desejo do trabalhador de poder escolher momentos em que ele não fará nada relacionado ao trabalho, para se dedicar a estudar, praticar esportes, socializar ou participar de atividades religiosas. Essa é uma demanda legítima e significativa, que reflete um equilíbrio entre trabalho e vida pessoal, algo que muitas vezes é negligenciado.
Qual o papel da legislação trabalhista nessa discussão?
A legislação trabalhista é frequentemente criticada como rígida e inflexível, mas ela existe para proteger o tempo do trabalhador, permitindo que ele tenha uma vida além do trabalho. Por exemplo, a limitação de jornada garante que as pessoas possam se dedicar a outras atividades importantes em suas vidas.
No entanto, vimos uma flexibilização da legislação nos últimos 30 anos, o que intensificou as jornadas de trabalho. Isso resultou em uma situação paradoxal: em 2024, a principal pauta para os trabalhadores ainda é limitar a jornada de trabalho, algo que remonta ao surgimento do direito do trabalho no século 19.
Como a negociação coletiva pode contribuir para essas mudanças, e quais os desafios nesse contexto?
A negociação coletiva é, de fato, um instrumento moldado para promover mudanças como essa. Porém, nem todas as categorias têm sindicatos fortes e estruturados para negociar em condições favoráveis.
Por exemplo, sindicatos como os metalúrgicos do ABC, os bancários ou os petroquímicos têm uma forte representatividade. Já categorias como a do Rick Azevedo — trabalhadores de farmácia — enfrentam mais dificuldades devido à falta de organização sindical robusta.
Nesse contexto, estabelecer um limite máximo de jornada na Constituição ou na CLT tem um impacto simbólico importante. Isso fortalece o trabalhador na mesa de negociação, permitindo que ele avance na melhoria das condições de trabalho. Negociar com uma carga máxima de 44 horas é muito diferente de negociar com 40 ou 36 horas. Limites menores ampliam as possibilidades de acordos mais justos.
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Como você avalia o histórico recente das iniciativas legislativas relacionadas ao trabalho?
Nos últimos dez anos, com exceção da PEC das Domésticas, a maioria das iniciativas aprovadas no parlamento não foi pró-trabalhador. Vimos medidas como a ampliação da terceirização e a reforma trabalhista, que trouxeram mais desvantagens do que benefícios para os trabalhadores.
A pauta da redução da jornada, por outro lado, surge de forma orgânica e é a primeira iniciativa pró-trabalhador desse período. Isso marca um momento diferente, que contrasta com as tendências recentes.
Isso reforça a importância de pautas como a redução da jornada, que são verdadeiramente significativas e têm o potencial de tentar reequilibrar as relações de trabalho no Brasil.
Um dos argumentos contrários ao fim da escala 6×1 menciona uma suposta baixa produtividade do trabalhador brasileira. Como você enxerga isso?
Estudos do Dieese mostram que o aumento da produtividade do trabalhador brasileiro não foi acompanhado de ganhos salariais ou redução no tempo de trabalho.
A jornada de trabalho no Brasil demorou muito para ser reduzida, e essa redução foi mínima. Até 1988, o limite era de 48 horas semanais, reduzido para 44 horas com a Constituição. Hoje, vários países têm limites bem menores, como a França, com 35 horas, e os Estados Unidos, com 40 horas semanais.
A ideia de que o trabalhador brasileiro trabalha pouco é insustentável. O tema da redução da jornada só ganha a dimensão que tem porque reflete uma demanda real e urgente.
A redução da jornada é suficiente para melhorar as condições de trabalho?
A iniciativa da deputada Erika Hilton é importante, mas apenas mudar a Constituição será insuficiente. Isso porque a CLT foi alterada significativamente nos últimos anos, permitindo uma intensificação da jornada.
É necessário rever esses pontos na legislação para garantir que a redução da jornada resulte em menos tempo de trabalho e mais tempo para outras atividades. Além disso, a redução da jornada deve ser acompanhada pela manutenção dos salários. Qualquer redução proporcional de salário penalizará os trabalhadores.
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