Em 2002, o então presidente dos EUA, George W. Bush, sancionou uma lei que dava ao presidente dos EUA o poder de invadir a Holanda — ou qualquer outro lugar do planeta — para libertar um cidadão americano ou cidadão de um país aliado dos EUA detido por crimes de guerra pelo Tribunal Penal Internacional, que tem sede na cidade holandesa de Haia. Entre os parlamentares que votaram a favor do projeto de lei estava um senador pelo estado de Delaware: Joe Biden.
Embora o presidente ainda não tenha feito uso dessa ameaça militar, a lei, que permanece em vigor, serve como um bom resumo da relação entre os EUA e a instituição internacional de justiça. O objetivo do projeto de lei era afastar a ameaça de que soldados estadunidenses fossem julgados pelas atrocidades cometidas durante a incipiente “guerra ao terror”, mas a aversão dos EUA a Haia tem sua origem na tradicional política de apoio incondicional a Israel.
Naquele mesmo ano, Bush e o primeiro-ministro israelense, Ariel Sharon, retiraram as assinaturas dos EUA e de Israel do Estatuto de Roma, o tratado que criou o TPI. A oposição dos EUA e de Israel a qualquer tentativa do tribunal de responsabilizar Israel por possíveis violações ao Direito Internacional vem sendo ferrenha desde então.
O TPI emitiu na quinta-feira mandados de prisão contra o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, e o ex-ministro da Defesa, Yoav Gallant, sob a alegação de que as autoridades teriam barrado intencionalmente a entrada de ajuda humanitária em Gaza para atingir os civis palestinos, e que teriam direcionado ataques militares contra civis em Gaza. O órgão também emitiu um mandado contra Muhammad Deif, líder do Hamas, e cancelou os mandados contra Ismail Haniyeh e Yahya Sinwar, dois líderes do Hamas mortos por Israel. Israel também afirma ter matado Deif.
Os mandados, emitidos por uma turma de três juízes, exigem que os 124 estados-membros do Estatuto de Roma prendam Netanyahu e Gallant e os entreguem às autoridades de Haia no momento em que algum dos procurados pisar em seu território. Entre as fileiras dos países signatários estão muitos aliados dos EUA, como Alemanha, França, Reino Unido e Canadá, juntamente com a maior parte do resto do mundo.
Embora o governo Biden ainda não tenha comentado os mandados de prisão, quando o procurador do TPI, Karim Khan, solicitou os mandados em maio, o presidente chamou a ideia de “ultrajante”.
“Não importa o que o procurador possa insinuar, não existe equivalência — nenhuma — entre Israel e o Hamas”, continuou Biden, durante um evento da Casa Branca em comemoração ao Mês da Tradição Judaica. “Estaremos sempre ao lado de Israel contra ameaças à sua segurança.”
Biden manteve sua palavra nos meses seguintes, e continuou a enviar armas para Israel e votar na ONU contra todas as medidas internacionais que criticavam a conduta do país — ou mesmo exigiam um cessar-fogo. Em setembro, os EUA votaram contra uma resolução da ONU que exigia o fim da ocupação de Israel sobre os territórios palestinos na Cisjordânia, Jerusalém Oriental e Gaza, e que tinha 124 votos favoráveis na Assembleia Geral, entre os 181 estados-membros.
‘Penso que estamos caminhando para um confronto significativo sobre o direito internacional entre os Estados Unidos e o resto do mundo.’
Na quarta-feira, o governo Biden vetou mais uma resolução de cessar-fogo no Conselho de Segurança da ONU, a quarta a ser derrubada pelo voto contrário dos EUA. Robert Woods, embaixador dos EUA na ONU, alegou que a resolução não incluía a exigência de libertação imediata dos reféns levados pelo Hamas em 7 de outubro de 2023, embora o documento exigisse libertação incondicional de reféns. Entre os 15 países do Conselho, os EUA foram o único voto contrário.
“Penso que estamos caminhando para um confronto significativo sobre o direito internacional entre os Estados Unidos e o resto do mundo”, diz Michael Lynk, especialista em direito internacional que foi relator especial da ONU sobre a situação dos direitos humanos nos territórios palestinos ocupados. “Acho que isso vai abrir um fosso ainda maior entre os EUA, de um lado, e a maior parte do resto do mundo, de outro, no que se refere ao direito internacional.”
O mandado de prisão do TPI coloca os aliados dos EUA e de Israel em uma posição desconfortável: manter a parceria com os EUA ou respeitar as obrigações perante Haia e o direito internacional. Até agora, o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, declarou que seu governo “defenderá o direito internacional” e “cumprirá todas as normas e decisões dos tribunais internacionais”. A França e o Reino Unido manifestaram apoio semelhante, mas a Alemanha, que também fornece ajuda militar a Israel, ainda não emitiu uma declaração oficial dizendo como pretende responder.
O presidente da Rússia, Vladimir Putin, que também enfrenta um mandado de prisão do TPI, já precisou alterar seus planos de viagem para evitar ser detido. Em setembro, no entanto, ele conseguiu viajar ida e volta para a Mongólia, signatára do Estatuto de Roma, sem incidentes.
Além dos mandados do TPI, em setembro do ano que vem acaba o prazo da ONU para que Israel interrompa a ocupação da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental. Além disso, o principal tribunal da ONU, a Corte Internacional de Justiça, continua a avaliar o processo de genocídio que a África do Sul instaurou contra Israel, mas esse processo deve levar alguns anos.
“A aliança entre os Estados Unidos e Israel realmente manchou a imagem dos Estados Unidos para o resto do mundo”, diz Lynk. Ele comemorou o anúncio dos mandados do TPI, e disse que a medida é uma rara forma de responsabilização que falta à comunidade internacional em meio à guerra de Israel em Gaza e à ocupação dos territórios palestinos pelo país desde 1967.
“Não houve praticamente nenhum limite estabelecido para Israel que não tenha sido ultrapassado, e o país considera, ao ultrapassar todos esses limites, que a comunidade internacional não tem vontade política para exigir a responsabilização e o fim da impunidade”, diz.
Mas Lynk observa que a falta de responsabilização de Israel vem de longa data. Ele diz que, entre as razões que levaram os EUA a se oporem ao Estatuto de Roma e à criação do tribunal penal de Haia, estava a preocupação de que as normas do tribunal criminalizassem os assentamentos israelenses sobre as terras palestinas da Cisjordânia. Israel também citou o estatuto, que proíbe a movimentação forçada de populações civis por uma potência militar ocupante, entre as razões para se opor ao tratado.
Desde então, os EUA se opuseram a outras investigações sobre as supostas atrocidades israelenses, e também às tentativas do tribunal de responsabilizar militares estadunidenses por acusações de crimes de guerra no Afeganistão. O governo Trump também impôs sanções contra autoridades do TPI envolvidas em investigações passadas sobre a conduta israelense, bloqueando seus ativos e proibindo viagens aos EUA. Biden anulou a medida, mas continuou a manifestar seu apoio a Israel diante do aumento da pressão do TPI. Em junho, a Câmara dos Deputados dos EUA, de maioria republicana, aprovou um projeto de lei, com apoio de 42 deputados democratas, exigindo uma nova rodada de sanções contra o TPI.
‘Em última análise, não queremos política envolvida em uma instituição judicial: ela precisa poder fazer seu trabalho.’
Ao mesmo tempo em que condenam o devido processo legal do tribunal quando aplicado a Israel, os EUA já aplaudiram outras de suas ações, como a emissão de mandados de prisão contra autoridades russas, incluindo o presidente russo Vladimir Putin, pelas atrocidades cometidas na guerra contra a Ucrânia.
“Ou odiamos essa instituição, ou vamos cooperar nos casos de que gostamos”, diz Jennifer Trahan, professora de direito internacional e direitos humanos da Universidade de Nova York. “Inicialmente, Biden chamou esses mandados de ‘ultrajantes’ — mas é a mesma instituição que expediu mandados contra cidadãos russos e foi elogiada por isso. Em última análise, não queremos política envolvida em uma instituição judicial: ela precisa poder fazer seu trabalho.”
Ela também mencionou o apoio dos EUA a outras investigações do TPI, como o caso de 2012 contra o líder rebelde ugandês Joseph Kony, fundador do Exército de Resistência do Senhor. Em 2021, o Departamento de Estado de Biden ofereceu uma recompensa de 5 milhões de dólares (29 milhõse de reais) por informações que levassem a encontrar Kony, que permanece foragido. O governo Obama também apoiou o processo do TPI contra al-Bashir, o primeiro chefe de estado em exercício a ser denunciado pelo tribunal.
“É importante lembrar que é a primeira vez que os mandados de prisão do Tribunal Penal Internacional foram expedidos contra um aliado do Ocidente — até agora, haviam sido quase exclusivamente na África”, destaca Lynk.
Embora organizações de direitos humanos tenham aplaudido os mandados do TPI, algumas questionaram se o próprio Biden não deveria também ser responsabilizado pela cumplicidade na guerra genocida de Israel em Gaza. O governo Biden já concedeu mais de 20 bilhões de dólares (116 bilhões de reais) em ajuda militar a Israel, alimentando sua agressão militar em Gaza, onde mais de 44 mil palestinos já foram mortos, mais da metade, mulheres e crianças, e no Líbano, onde foram mais de 3.500 mortes. Na semana passada, o Departamento de Estado anunciou que vai continuar a enviar armas a Israel, mesmo depois que o país deixou de atender a maior parte das exigências do governo para facilitar a entrada de ajuda humanitária em Gaza.
Existe precedente legal para casos semelhantes contra fornecedores de armamentos, como o caso de Frans van Anraat, um empresário holandês que foi condenado por Haia em 2005 por cumplicidade em crimes de guerra, por seu papel na venda de materiais para o governo de Saddam Hussein, que foram usados na fabricação de armas químicas.
Lynk considera que tanto a CIJ quanto o TPI têm legitimidade para abrir um processo contra autoridades dos EUA por colaborarem com as atrocidades de Israel, mas dados os recursos judiciais limitados, essas acusações parecem improváveis.
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