O mundo esteve de olho no Brasil durante o G20. Líderes globais estiveram no Rio de Janeiro para criar propostas sobre temas de interesse do grupo que reúne as principais economias do mundo. À margem das reuniões principais, no G20 Social e Urban 20, a sociedade civil e gestores municipais debateram as demandas da ponta – e que nem sempre são ouvidas por quem senta na mesa principal e tem a caneta nas mãos.
Pouco antes das reuniões do G20, houve uma encontro de especialistas em segurança e crime organizado do Global Initiative Against Transnational Crime, o Gitoc, do qual faço parte. Focado em países do cone sul, o debate enfatizou o uso de tecnologia e dados para combater crimes ambientais, especialmente na Amazônia, tendo o Brasil como prioridade em pesquisas, análises e até abertura de um escritório. Os efeitos do crime organizado na democracia e os crimes ambientais estão no centro das preocupações.
Na ocasião, foram lançados dois estudos recentes, o “Crimes ambientais: uma ameaça ao nosso futuro” e o “A quinta onda: o crime organizado em 2040”. E eles são aterrorizantes: preveem que, em uma década e meia, “o crime organizado pode prosperar como nunca antes, explorando crises climáticas, conflitos geopolíticos e avanços tecnológicos”, com previsões assustadoras, “onde redes criminosas operam como governos sombra, protegidas por regimes autoritários e fortalecidas pela rápida evolução tecnológica”.
Você pode estar se perguntando o que uma coisa tem a ver com a outra. E eu te digo: no discurso de encerramento do G20, feito pelo presidente Lula na terça-feira, 19, nada disso apareceu. Não apareceu também nos debates das mesas centrais como deveria, mas esteve no G20 Social – pois quem está na ponta é quem também está na linha de tiro.
No discurso do presidente, os destaques principais foram a aliança global contra a fome e a pobreza, a taxação de super-ricos, igualdade racial, mudanças climáticas e mais alguns pontos, obviamente importantes. A questão é que estas desigualdades e crises climáticas são perpetradas com muita violência. Assassinatos, extorsão, mineração, invasão de terras quilombolas e indígenas, exploração num nível extremo por uma rede internacional de tráfico de armas, drogas, madeira, peixes raros, ouro, pessoas e tudo mais o que se possa sugar e vender.
Os relatórios mencionados pintam um cenário alarmante, especialmente para a América Latina. Mas, enquanto o G20 foca em pautas importantes como inteligência artificial, economia do cuidado e taxação de super-ricos, existe uma lacuna significativa no debate sobre segurança pública transnacional.
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É particularmente preocupante que, mesmo com o Brasil presidindo o G20 e tendo experiência direta com os desafios da criminalidade organizada – desde tráfico de drogas até crimes ambientais na Amazônia –, este tema não tenha tido maior destaque na agenda. O único evento relacionado foi a apresentação do Plano Pena Justa no G20 Social, que, embora importante, abordou apenas tangencialmente a complexidade do problema.
A ausência deste debate é ainda mais grave quando consideramos os dados do relatório “A Quinta Onda”: até 2040, veremos organizações criminosas operando em espaços híbridos, utilizando tecnologias avançadas e estabelecendo uma “governança criminal pervasiva” em áreas de estado ausente. Isto já é realidade em várias comunidades brasileiras, como evidenciado pelo G20 Favelas, que destacou a segurança como demanda prioritária das periferias.
O relatório sobre crimes ambientais da EIA complementa este cenário ao mostrar como o crime organizado está intrinsecamente ligado à destruição ambiental na região. Esta conexão deveria ser central nas discussões do G20, especialmente considerando o compromisso do Brasil com a agenda ambiental.
É fundamental que o G20, onde o Brasil tem um peso importante, aproveite os próximos encontros para estabelecer uma força-tarefa específica para combate ao crime organizado transnacional, desenvolver estratégias coordenadas para enfrentar crimes ambientais, criar mecanismos de cooperação tecnológica para combater cibercrimes e fortalecer iniciativas de desenvolvimento social em áreas vulneráveis.
Ressalto que qualquer estratégia de segurança pública que não leve em consideração as evidências científicas no campo da segurança está fadada ao fracasso e vai comprometer ainda mais os pilares da já convalescente democracia. A experiência nos mostra que abordagens puramente repressivas – que é basicamente o que fazemos – tendem a agravar as desigualdades sociais e fragilizar ainda mais comunidades vulneráveis. Não resolvem o problema.
O momento é oportuno para o Brasil liderar este debate, propondo uma visão integrada de segurança pública que considere as dimensões sociais, ambientais e tecnológicas do crime organizado. A ausência deste tema na agenda atual representa uma oportunidade perdida para construir consensos internacionais sobre um dos maiores desafios do Sul Global.
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